Páginas

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Hard-Boiled Wonderland and the End of the World (Sekai no owari to Hādo-Boirudo Wandārando) - Haruki Murakami [1985]




Já fazia tanto tempo desde o último texto sobre Haruki Murakami aqui. Fazia tempo também que eu não lia nada dele. Depois que travei no terceiro livro de Wind-up Bird Chronicle, achei que tinha cansado dele, ultrapassado algum tipo de limite. Só precisava de umas férias, agora já está tudo bem e eu voltei a querer ler tudo que esse japonês maluco já escreveu. Não voltei a Wind-up Bird ainda, farei isso logo, antes de pegar 1Q84. Antes eu quis ler o livro que o próprio Murakami diz melhor representar seu estilo e ser o seu favorito dentre a sua obra (costumava ser, uns anos atrás, quando ele deu uma entrevista pra Paris Review, hoje eu não sei se ainda é). Se o meu problema com o Muraka era que ele estava começando a soar sempre como mais do mesmo, Hard-Boiled Wonderland and the End of the World (título bem longo e difícil de traduzir, eu sei. Seria algo como País das Maravilhas Cozido e o Fim do Mundo. Esse cozido sendo o termo culinário para Hard-Boiled, e não o literário, que era pra ser pra que o título faça sentido. Hard-Boiled é o gênero literário que Raymond Chandler e Dashiell Hammett ajudaram a definir, um tipo de história de detetive, violento e com personagens amorais etc. É um estilo bem popular no Japão e que influenciou bastante o estilo do Murakami.) serviu pra me mostrar todo um lado do autor que eu não conhecia e que pode ser o lado mais interessante dele.

Uma Tóquio que pode ser futurista (o texto não define nenhuma data) está dividida entre dois grupos em guerrilha, o Sistema, que é um grupo regulamentado quase governamental, e a Fábrica, grupo criminoso. O primeiro usa Calcutecs, processadores humanos de dados eletrônicos, para proteger informação. O outro faz uso de Calcutecs que se rebelaram pra roubar informação. Um Calcutec do Sistema, alienado de toda a briga, sem nome (como todos os outros personagens do livro), é contratado por um cientista recluso para  processar um monte de informação. Esse cientista pesquisa remoção e manipulação de som e  desenvolveu uma forma de ler o subconsciente das pessoas, tudo isso baseado no trabalho que ele realizava quando funcionário do Sistema. Trabalhando para o cientista, o Calcutec descobre que só tem mais 36 horas de vida.

No Fim do Mundo, cidade estranha e isolada (a edição americana vem com um mapa desenhado para melhor compreensão do leitor), chega um novo morador. Mas existe uma particularidade em Fim do Mundo, os moradores têm suas sombras removidas e largadas para morrem, fazendo que eles percam suas mentes. Cada morador tem uma função e é mencionado como tal pelo narrador (o Guardião do Portão, a Bibliotecária, o Coronel etc.). O lado de fora é cercado por bestas que são alimentadas e cuidadas pelo Guardião do Portão, que é um gigante. Durante o inverno, boa parte das bestas morrem, então suas caveiras são removidas e limpas para que seus sonhos sejam lidos. O narrador é o Leitor de Sonhos, o único que tem acesso às informações deixadas pelas bestas. Confortável que o narrador esteja com sua vida de Leitor de Sonhos, ele ainda deseja voltar para sua sombra e salvá-la, salvando sua própria mente, no entanto isso é proibido pelas leis do Fim do Mundo, que proíbe os moradores de terem sombras, saírem da cidade ou passarem muito tempo nas florestas.

Isso não fez o menos sentido, só que mais do que isso tiraria a graça de ler o livro e ir descobrindo aos poucos o que relaciona uma história com a outra e como as coisas se resolvem.

Em geral, é uma história do Haruki Murakami. Todos os ingredientes específicos dele estão aqui, mas acontece que, saídos do forno, o prato foi completamente diferente. Ou talvez tenha sido a mesma comida, mas com um sabor incomum. Aqui temos um personagem principal passivo e solitário, satisfeito com a própria vida, que se vê pego por algo maior que ele em circunstâncias que ele não consegue controlar. Como sempre nas histórias do Murakami, tem uma garota ali para guiá-lo nesse caminho novo e bizarro. No caso da linha narrativa de Hard-Boiled, tem duas. A garota gordinha (é o nome que o narrador dá pra ela), neta de dezessete anos do cientista, que só se veste de rosa e nunca sai do laboratório, mas, apesar do ambiente protegido em que cresceu, é muito mais forte do que parece; e a bibliotecária, a mulher por quem o narrador se apaixona, que tem um estômago sem fundo, estando sempre com fome e podendo comer o quanto quiser sem nunca engordar. Elas que cuidam do narrador em sua jornada. Já na linha do Fim do Mundo, existe apenas a bibliotecária (outra), nascida em Fim do Mundo, perdeu sua sombra e sua mente ainda criança. Acredita que sua mãe morreu ainda mantendo sua mente, mas não sabe ao certo. O narrador se apaixona por ela e fica tentado a largar sua sombra para viver com ela em Fim do Mundo.

Logo de cara uma coisa já se destaca. Uma das linhas narrativas é um suspense, fortemente inspirado na ficção científica da época (Blade Runner, a cultura do Cyberpunk, ainda recém-nascida nesses dias) e, obviamente, dos livros Hard-Boiled, com seus capangas de um terceiro partido que quer se meter no meio da briga entre o Sistema e a Fábrica, femmes fatales, conspirações que dizem que o Sistema e a Fábrica são controlados pela mesma pessoa, e mistérios complicados que nem sempre encontram explicação. A outra é muito mais próxima da fantasia e usa uma linguagem muito mais formal e descritiva que a outra linha narrativa. O tom é bem mais poético e contemplativo que a correria tecnológica de Hard-Boiled. No Fim do Mundo não há guerras, estão todos bem e iguais e é isso que enche o narrador de medo.

Não é necessário dizer que também há música e cultura pop. Se não houvesse, seria o livro de outro autor que eu estaria resenhando. Lógico que na linha narrativa do Fim do Mundo não tem cultura pop, mas Hard-Boiled é cheio. E uma das coisas que cativa o narrador em Fim do Mundo é a presença de instrumentos musicais perdidos, que ele não sabe exatamente o que são, mas gosta do som que eles emitem, não por ser bonito - ele não sabe tocar -, mas por ser algo que ele nunca ouviu antes.

A repetição dos temas nos livros do Murakami é um defeito, isso não tem como negar. Outro é o fato dos narradores dele serem tão passivos que é como se o enredo os pegasse pela mão e os puxasse pelos acontecimentos. Isso vai irritar alguns. Na verdade eu creio que toda a parcela da população de leitores que não gosta de Murakami não gosta por causa disso. Eu me identifico. Ler uma história do Murakami é quase sempre como ler uma história feita sob medida pra mim. Isso não é muito saudável pra um leitor, mas é difícil de evitar. Hard-Boiled talvez tenha os narradores menos passivos. Solitários, silenciosos, flexíveis, pode ser. Mas eles tomam controle da situação uma hora ou outra, o que pra mim foi uma novidade. Por isso digo que foi o livro mais diferente dele dentre os que eu li e só isso já valeu a leitura. 

Se você nunca leu Murakami, eu não diria pra começar por esse. Por mais que eu ache esse o melhor livro dele, as traduções americanas são de doer. A prosa não é ruim, mas a revisão é abaixo da média. Devia ter contado o número de erros gramaticais que eu, que apesar de ser fluente em inglês não tenho o idioma como língua materna, consegui pegar, mas o imbecil do editor deixou passar, só que depois de um tempo eu fui perdendo a conta. Só isso basta pra vocês entenderem que foram muitos. Isso vai desagradar. É uma pena que a Alfaguara não tenha planos pra lançar esse livro ainda. (Ei! Se algum funcionário da Alfaguara passar por aqui, anotem essa dica! Esse é um livro do Muraka que não pode faltar no acervo de vocês, viram? - vai que cola.) Então, vocês que não sabem nada do autor, vão ler Norwegian Wood. Fiquem longe dos livros americanos traduzidos pelo Alfred Birnbaum e olhem torto pra Wind-up Bird Chronicle, traduzido pelo Jay Rubin (esse a culpa é da editora americana que mandou cortar sei lá quantas páginas do livro e mudar a ordem de alguns capítulos - queria eu entender essas editoras que compram os direitos pra traduzir um livro, mas exigem que o tradutor o desfigure por completo...). Apesar disso tudo, Hard-Boiled esse se tornou meu livro favorito dele, eu acho. Tá bem ali ao lado de Norwegian Wood. Os dois tão quase empatados. Uma boa edição brasileira de Hard-Boiled pode desempatar.

Aqui o resultado do Murakami Bingo:
Acho que eu já falei que esse quadro é do Grant Snider, mas nunca joguei o site do cara aqui. Pronto: http://www.incidentalcomics.com/ - Podem passar lá, o cara tem umas tiras - que não são bem tiras, mas eu não sei o termo - excelentes. (Agora vocês me digam quantos blogs indicam duas coisas em uma resenha. O que seria de vocês sem mim?)
E a nota: 5/5

Nenhum comentário:

Postar um comentário

caixa do afeto e da hostilidade