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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uma Mulher É Uma Mulher [Une Femme Est Une Femme] - Jean-Luc Godard (1961)


Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.





Mais um filme do Godard pra coleção do blog, e mais um com a Anna Karina pra alimentar minhas taras, porque eu me recuso a largar minhas obsessões. Recentemente decidi que vou assistir todos os filmes (somente os longas) desse diretor - porque ele é um gênio, logo vocês verão por que -, tentando formar uma ordem cronológica. Seu primeiro longa foi Acossado, em 1960, que eu já vi, mas não resenhei - talvez o faça quando eu assisti-lo novamente -, o segundo foi esse, no ano seguinte, Une Femme Est Une Femme, conhecido no Brasil como Uma Mulher É Uma Mulher, que é uma tradução surpreendentemente exata. Só uma nota antes de eu começar, esse não é exatamente o segundo filme dele; o segundo foi Le Petit Soldat, de 60, primeira de suas várias colaborações com a esposa, Anna Karina, mas este foi censurado até 63, por causa do tom fortemente político. Sendo assim, resenhei esse primeiro.


Tudo começa com Angela (Anna Karina), dançarina (lê-se: stripper) em um bar de Paris - meio que uma forma cínica de Godard dizer: você pode viver cantando e dançando, mas vai ter que tirar a roupa e enfrentar os olhares de tantos homens. Ela é apaixonada por Émile (Jean-Claude Brialy). Émile é apaixonado por Angela, mas os dois brigam muito e não parecem conseguir se entender. Nesse contexto aparece Alfred (Jean-Paul Belmondo), que ama Angela e está disposto a ceder, dar a ela tudo que ela tanto exige, mas Émile não se importa o suficiente para suprir. Mas Angela não ama Alfred, apesar de admirar os esforços e gostar do cortejo, mas sempre que deixa Émile, sente falta e volta imediatamente para seu pequeno caos pessoal.

Nenhum outro par de olhos fala tanto.
Uma Mulher É Uma Mulher é a comédia musical de Jean-Luc Godard, e, como tudo que ele faz, transgride cada uma das regras do gênero. É um musical, mas a música é inconstante. Toca em determinadas cenas, satirizando as trilhas sonoras de manipulação emocional da década de 60, tocando músicas que nem sempre condizem com o tom da cena. Angela canta e dança, mas nunca ao som de uma banda; quando seus números musicais começam, toda a trilha é interrompida e os sons da cidade/bar/ambiente viram o acompanhamento. Só ela canta e dança, as participações que poderiam lembrar cenas de musical entre os homens são todas estáticas, literalmente, como uma pose.

O que? Um homem tem o direito de chafurdar nas suas obsessões de vez em quando.
Diz se tratar de comédia, mas é trágico, e diz ser trágico também, muito claramente. Tudo nesse filme é dito, não em subtexto, mas em exposição das mais claras. Isso serve de contraste para os relacionamentos modernos como os dos protagonistas, nos quais ninguém fala, ninguém se abre, é tudo conflito e mal-entendido, interrupções e falta de comunicação. Angela, Émile e Alfred recitam seus sentimentos, estilo que Godard iria adotar em vários de seus outros filmes, como Le Mepris e Pierrot Le Fou. É assim que ele amplia sua sátira, não se limitando à Hollywood que ele amava (a de D. W. Griffith, Howard Hawks, Billy Wilder e John Ford) e foi forçado a desprezar, mas a todas as relações humanas. Ele que vivera um casamento bastante conturbado com Anna Karina, principalmente nos últimos anos, incluindo traições e tentativas de suicídio.

Godard seu gênio sortudo e diabólico, eu sou seu fã.
Mas nessa anti-Hollywood bizarra que ele molda, tudo tem que dar certo, obrigatoriamente, mas o clima forçado e desconfortável não deixa a cena. Afinal, Godard quebra as regras, mas focaliza o clichê. Se Hollywood proíbe nudez, ele mostra uma dançarina nua sem nenhum motivo aparente, quase como uma provocação. Mas o final feliz não precisa ir embora por causa disso. Além disso, ele usa uma estrutura de roteiro improvisada, com alguns cortes mais longos em movimentos de câmera interessantes, contrabalançando com jumpcuts abruptos, interrompendo cenas; a música e as luzes, que deviam confortar, ele usa para incomodar o espectador, deixá-lo confuso; uma a uma, ele vai quebrando as regras e mostrando que a arte se mantém, talvez fique até mais poderosa e inovadora.


Uma Mulher É Uma Mulher é um filme muito mais complexo do que parece. De início, causa desconforto, pelo menos em mim, com toda a misoginia descarada que ele joga nas cenas, com Angela sendo uma versão moderna de Eva. Até que Adão começa a mostrar seus defeitos também e o problema se torna o ser humano e sua aparente inaptidão para relacionamentos. Quase um ensaio filosófico/sociológico/afetivo em forma de filme, isso misturado com a sátira nada sutil que quase parece não intencional, é um filme que te faz pensar bastante, ao mesmo tempo em que mantém o espectador entretido. Sim, esse é um filme divertido apesar dos conceitos complicados, principalmente porque o auteur parece estar amando seu trabalho, brincando com a música e destruindo as estruturas. Mesmo não sendo o melhor do Godard, é um ótimo filme da sua primeira fase, que é a que eu melhor conheço por enquanto.

Nota: 4/5


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Por que Não Dançam [Why Don't You Dance?] - Raymond Carver (1981)


Essa resenha vai ser um pouco diferente. Estou lendo essa coletânea de contos do Raymond Carver, Iniciantes, mas estou levando muito tempo para terminá-la. Acontece que um conto muito bom é capaz de entregar o mesmo peso emocional de um romance para o leitor, o que torna difícil, pelo menos pra mim, uma leitura em sequência contínua de vários contos do mesmo autor. Estou indo ao poucos, uns três por semana, revezando leituras, comecei também a ler os contos completos da Flannery O'Connor e estou em dúvida se começo um romance ou não, talvez espere minha edição de Medo e Delírio Em Las Vegas chegar. Por causa dessa lentidão e da profundidade das histórias curtas, decidi resenhar um conto por vez de Iniciantes, ao invés do livro como um todo. Começando pelo melhor até agora, "Por Que Não Dançam?"



Um jovem casal passeia pela rua, então vê, em frente a uma casa, o que parece ser uma venda de quintal, um monte de objetos, mobília, quase uma casa inteira, espalhados e postos a venda. Os dois, começando a vida de casados, decidem dar uma olhada. Precisam de uma cama, uma poltrona, mas ninguém parece estar tomando conta das coisas. Eles experimentam a cama e um homem de meia-idade, dono de tudo aquilo, aparece e diz para que eles fiquem a vontade. Ele lhes serve de umas bebidas, conversam, e os jovens dançam no quintal, enquanto a vizinhança assiste.

Uma história muito simples contada em um estilo ainda mais simples, bem no estilo iceberg à Hemingway. Não se sabe muito do homem de meia-idade, mas a forma curta do seu diálogo dá a entender uma certa tristeza e um olhar de nostalgia perante os jovens, que por sua vez são despreocupados e aproveitam os preços baixos dos objetos, sem pensar duas vezes, e bebem com esse homem.

Uma interpretação seria que o dono dos objetos acaba de ter sua vida arruinada. Considerando os outros contos do autor, provavelmente divórcio motivado por alcoolismo somado a toda a sequência de fracassos que se chama vida adulta. As ruínas são os objetos que ele vende indiferentemente, sem pensar no que fazer depois.

Os jovens são um reflexo invertido. Estão começando, sem tantos meios financeiros, mas cheios de esperança. E, vale apontar, o rapaz bebe pouco ainda, cai com poucas doses de uísque, claramente por falta do hábito. Hábito que pode ter arruinado a vida do homem que lhes vende os objetos. É o novo se construindo sobre as ruínas, basicamente. A nova esperança surgindo após o fracasso e o fim dos sonhos. Tudo isso em pouquíssimas páginas.

No fim, ainda - e me perdoem, mas acho spoiler frescura -, a forma que a jovem conta para seus amigos sobre o encontro com o homem fracassado, tem um tom de "isso nunca vai acontecer conosco". Esse "conosco", não apenas ela e seu marido recente, mas o casal de amigos também, que vivem a mesma situação. Eles escutam os discos que o homem os cedeu, sentados sobre o sofá que ele os vendeu pelo preço mais baixo possível, e conversam sobre como os dois dançaram no quintal, em frente a toda a vizinhança.

É o conto inicial da coletânea e já estabelece a força de todos os contos que seguem. Tanto que, em comparação, alguns outros acabam decepcionando. Até hoje, essa é uma das histórias mais famosas do Raymond Carver e até foi meio adaptada para o cinema no filme, Pronto Para Recomeçar (Everything Must Go), que eu não vi, nem me interessei em ver e não acho que seja um bom  ponto de referência para a história. Não seja preguiçoso e adquira Iniciantes, mesmo que seja só para essa história, embora eu adiante, não será.

"Por que não dançam?" foi primeiramente publicado na coletânea "Do que falamos quando falamos de amor", primeiro livro de Carver e severamente editado. Iniciantes é a republicação na integra dos contos antes fatiados. No link a seguir, uma amostra de Por que não dançam?, oferecida pela Veja:
http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/trechos/iniciantes.html

Nota: 5/5

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Sol Também Se Levanta [The Sun Also Rises] - Ernest Hemingway (1926)



Hoje eu descobri que tem um monte de resenha que eu podia jurar que tinha feito, mas não fiz. Coisa de memória, será? Estou tão velho? Por algum motivo, tinha toda a certeza que, em algum lugar nesse blog, havia um post sobre esse livro. É um dos meus favoritos, se não o próprio, afinal. Vi que não, quando, hoje por volta do meio dia (meu horário de almoço) vi a nova capa que a Bertrand escolheu para o relançamento de O Sol Também se Levanta, que é o primeiro romance publicado por Ernest Hemingway, em 1926. A capa está no fim do post, assim como meu parecer sobre ela. Sabia que a Bertrand estava relançado toda a obra traduzida do Hemingway, mas, tendo visto a capa de O Velho e o Mar, achei que eles iam fazer um bom trabalho - não foi o caso. Esse toureiro aí mais parece o Liberace* versão "El Matador". Sorte que eu já tenho minhas cópias em edição antiga e que só pretendo comprar os livros que ainda não tenho (assim como uns que já tenho) em edição importada, no idioma original. Mas eu deveria estar falando do livro por agora, não?

Era uma vez Jake Barnes. Ele é um jornalista americano, expatriado em Paris após a primeira guerra. (Por que Paris? Naqueles tempos, devido à taxa de câmbio, era uma cidade barata para se viver e era onde todas as pessoas interessantes estavam - James Joyce, T. S. Eliot, Picasso, Salvador Dali, Scott Fitzgerald etc. Hoje a situação é outra, a cidade é cara e pessoas tão interessantes já não existem, não nessas proporções.) Ele passa seus dias com os amigos, alguns deles artistas, todos boêmios, bebendo Pernod nos cafés e deixando a vida passar. Jake ama a duas vezes divorciada - informação relevante na década de 20 - Brett Ashley, mas, depois da guerra, ele já não podia demonstrar esse amor. Brett, portanto, é noiva de Mike Campbell, um homem de negócios totalmente quebrado, que sabe que sua noiva o trai com todo mundo, mas não se importa. Exceto quando Robert Cohn, um judeu, romancista medíocre, mas ótimo boxeador, Mike o despreza - não só Mike - sempre que pode, nem sempre com motivo. Em meio a essa tensão sexual, todos eles decidem viajar para Pamplona para assistir a corrida dos touros e para se embriagarem, logicamente. Lá conhecem o jovem toureiro Pedro Romero, o melhor em seu meio e, conforme descrito por Jake, um verdadeiro artista. Romero também se encanta por Brett e a leva consigo. É esse o clima do romance, uma sequência de conflitos reprimidos e, conforme os capítulos avançam, se aproximando de uma explosão.

O Sol Também se levanta é um ícone da literatura modernista. Mínimo em todos os aspectos, o livro definiu o que viria se tornar o estilo do Hemingway, que o próprio descrevia como Iceberg. A teoria diz que, se um escritor conhece o suficiente de sua própria história, ele não terá o menor problema em esconder a maior parte de seu conteúdo do leitor, e este, por sua vez, se a escrita for de fato sincera, será capaz de sentir todo o conteúdo omitido.

Visto somente pela sua sinopse - ponta do iceberg -, O Sol Também Se Levanta é um livro superficial, sobre gente superficial, gastando suas vidas superficiais em autodestruição. Não é tão simples. Cada personagem representa um fator, e essa discussão já é antiga entre os críticos, na verdade. Jake pode ser o representante da maior "vítima" de seu tempo. Vindo da guerra, sem país e sem esperança, ele é privado até mesmo do amor por culpa de um ferimento, e isso ainda jovem. Todas as coisas que seu governo lhe dissera que viria se eles ganhassem a guerra, bom, não vieram para ele. Ele apenas perdeu e chegou a um ponto em sua vida em que a vitória simplesmente não estava no horizonte. Portanto ele desiste da única forma que realmente vale a pena, vivendo pelo hedonismo. Aproveitando o ambiente e as pessoas ao seu redor sem nunca se envolver com nada, nem consigo mesmo.

Cohn, o desprezado, é o único que não é veterano de guerra, por consequência, o único que ainda mantém algum sinal de idealismo inocente. Ele não é tão esperto, não tem confiança, não tem talento, nem é amado, mas é forte e vive dessa força, apesar de tudo.

Brett representa os valores da época. Representa o caminho para o qual estes pareciam estar se encaminhando e as consequências disso. E ela não é a única que representa isso, Jake, Mike e alguns de seus outros amigos também têm isso dentro deles. Mas Brett é mulher e, novamente, na década de 20, isso era grande coisa. A mulher não é mais a esposa/mãe/enfermeira, e assume uma forma mais "pré-hawksiana" (vindo do tipo de mulher que o diretor Howard Hawks passou a usar em seus filmes, algumas décadas depois desse livro) como mais um dos caras, tão bêbada e promíscua - apesar de eu detestar essa palavra, é a que melhor se encaixa - quanto os homens com quem ela convive.

O minimalismo da prosa é consequência desse estilo de vida, de certa maneira. A recusa pelos enfeites e pelos padrões estéticos do passado, a "desconfiança" perante os adjetivos, a brevidade e a velocidade. Tudo comparável à vida da chamada geração perdida, que só por esse nome já diz tudo. Os personagens desse livro, que é um roman à clef (história real, com nomes trocados e só uma pitada saudável de ficção), são trágicos, consequências de tempos difíceis e sem esperança, gente sem adornos e romantismos e, muito menos, idealismos.

*Liberace - o rei do camarote original -,
 porque eu sei que vocês não têm idade
 pra entender a referência do começo do texto.
Eu também não tenho, mas minha cultura inútil
 extrapola os limites do aceitável.
Me diz se não parece a foto da capa?

Toureiro: o membro perdido do Village People.
Eu juro, vão abrir o túmulo do Hemingway
e achar um novo tiro em seu crânio.


Não importa o quanto eu escreva, contudo, esse texto ainda não passa da superfície. O Sol Também Se Levanta é eterno justamente por isso. Pode ser lido várias vezes e estudado, e eu li somente uma vez e não foi ontem. Sei que perdi muita coisa e que em futuras leituras já prometidas eu voltarei a perder tantas coisas novas que eu só vou achar na terceira leitura, mas que nela vou perder ainda outras para uma quarta leitura. É um dos meus livros favoritos, nunca prometi imparcialidade nesse blog, e por isso eu indico a todos que tenham ficado curiosos com a resenha.

Nota: 5/5


sexta-feira, 29 de novembro de 2013

Birdemic: Shock and Terror [..Passarêmico"???": Choque e Terror] - James Nguyen (2010)

A qualidade escorre pelo pôster.

Meu povo, nossa busca está terminada. O pior filme já feito foi encontrado. Não! Não é The Room (Cristo, esse é uma obra prima digna de Oscar, se for comparar). Não! Não é Sharknado, seus tolos! Apenas uma palavra (mais exatamente duas mescladas em uma) intraduzível: Birdemic (o qual eu apelidei carinhosamente de Passarêmico - Pássaro + Epidêmico, porque ninguém se deu ao trabalho de criar um título em português, nem mesmo o estagiário filho da puta que traduziu "Airplane" como "Apertem os cintos o piloto sumiu"), senhoras e senhores! Nada mais. Apenas Passarêmico é capaz de ultrapassar o nirvana de má atuação de nomes como Tara Reid e Tommy Wiseau.

Para de chorar, porra! Você teve sua chance, agora é a vez do James Nguyen ser o pior.
Apenas Passarêmico contém diálogos mais sem noção que os de Tommy Wiseau. Apenas uma direção é mais incompetente que a de Tommy Wiseau e até, por que não dizer, de Uwe Boll. Inaptidão e falta de talento, seu nome é James Nguyen. Sim, este homem nascido em Da Nang, uma das maiores cidades do Vietnã, em 1966. Este homem tinha um sonho, senhoras e senhores. Este homem queria fazer um filme. Mas não só um filme. Não, não, de forma alguma. Este homem queria fazer uma obra tão forte que seu nome seria lembrado por gerações, que suas falas seriam repetidas por pessoas de todas as idades, que só a menção do título seria capaz de trazer um sorriso nostálgico no rosto de todo e qualquer ser humano com um coração, uma história grandiosa o suficiente para eternizar o nome de seu criador entre os dos grandes auteurs da história do cinema. Howard Hawks, Billy Wilder, Alfred Hitchcock, Ingmar Bergman, Luis Buñuel, Akira Kurosawa, Ed Wood, John Waters, ...James Nguyen - lembrem-se desse nome!

Ele começou em 2003 com Julie e Jack. Um filme que ninguém nunca ouviu falar. Depois fez Replica, que tampouco ficou conhecido, mas, dizem as más línguas, é vergonhosamente ruim. Precisou vir Passarêmico, em 2010, para que esse grande gênio tivesse sua voz ouvida e sua obra vista.

A venda pode ter sido de 1 milhão de dólares, mas o cubículo continua o mesmo. Culpa do desconto de 50%.
Apenas em Passarêmico você conhecerá Rod (Alan Bagh; eu sei o que você está pensando: Alan quem? - eu também não sei). Rod trabalha em uma firma de software e, algumas semanas antes do ataque dos pássaros, ele realiza uma venda de 1 milhão de dólares, depois de dar um desconto de 50% ao cliente. E eu não farei nenhum comentário sobre isso, apenas lançarei a informação e deixarei que você, caro leitor, a processe. E esse não é o fim da maré de sorte profissional de Rod, não senhor. Na mesma semana, a empresa de software para a qual ele trabalha é comprada por uma empresa de tecnologia por 1 bilhão de dólares (provavelmente a oferta foi de 2 bilhões, mas eles ganharam 50% de desconto também). E não é só isso. Ainda na mesma semana, Rod prepara uma apresentação de slides incrivelmente vaga sobre energia solar e, mesmo assim, recebe 10 milhões de dólares de uma empresa para poder financiar seu projeto ecológico. Aí você comenta: nossa, esses são números infantilmente redondos. Eu respondo: pois é, né? Só que não acabou, ainda nessa mesma longuíssima e cheia semana, enquanto Rod toma café da manhã (tendo recebido um café, um suco de laranja e uma água antes mesmo da garçonete aparecer para anotar o pedido), ele reencontra uma antiga colega de escola, Nathalie (Whitney Moore, também não sei quem ela é, mas gostaria de saber).

Qual o problema desse filme mesmo? Ah, é! Todas as outras cenas.
Nathalie é modelo. Mesmo tirando suas fotos em uma lojinha de foto 3x4 e trabalhando para uma agência que claramente é apenas fachada para algum negócio obscuro de turismo sexual (é o que se pensa de uma empresa que tem uma folha de papel sulfite na recepção servindo de placa com o nome da agência), ela consegue um emprego como capa da Victoria's Secret. Isso a tornaria instantaneamente uma das mulheres mais famosas dos EUA, mas não, não é isso que acontece. Ela simplesmente segue sua vida normal, encontra Rod que a convida para ir a um restaurante vietnamita (sem nome, nem endereço, é só um restaurante vietnamita mesmo) e os dois ficam juntos, porque maus atores se atraem aparentemente.

Olhem lá no seu! É um pássaro? É um avião? Não, é uma imagem gif! Que na verdade representa um pássaro, então...tá bom, é um pássaro, mais ou menos.
Então o filme acompanha os outros encontros de Rod e Nathalie. Como a vez que eles vão assistir o documentário "Uma Verdade Inconveniente" - eu sei que foi esse o filme que eles viram porque Rod faz questão de anunciar, mesmo que ele esteja conversando com outras duas pessoas que acabaram de sair do cinema com ele, como se eles não soubessem o que tinha acabado de ver -, do Al Gore, com um outro casal de pessoas desinteressantes que só servem pra morrer mesmo (ah! e a mulher desse casal é garota propaganda do site da Yoko Ono, e, por algum motivo, anda por aí com uma camiseta na qual está escrita "imaginepeace.com"; isso nunca é abordado, só está lá). Aí você pergunta, mas o que o documentário do Al Gore tem a ver com Passarêmico? Aguarde, infelizmente os dois estão relacionados.

Uma cama barrando a janela, isso vai impedir as águias assassinas de invadirem.

Também tem a vez que Rod e Nathalie vão ao Festival da Abóbora, na cidade deles. Afinal, não é só porque Rod acaba de se tornar um empreendedor milionário e Nathalie uma das modelos mais famosas dos EUA, que eles não vão poder se divertir na feirinha da cidade, não é? Depois eles vão pra praia, e Nathalie tenta tocar num pássaro morto (que pode ser ou uma águia ou um abutre) - por que não? -; e depois vão para um bar totalmente vazio, no qual o músico Damien Carter (que pelo jeito é real) toca ao vivo com uma banda invisível, enquanto o casal dança de um jeito estranho para a música R&B mais amigável e incestuosa da história - Hangin' out, hangin' out, hangin' out with my family, havin' ourselves a par-tay...(ainda está na minha cabeça e se recusa a sair)

Choque e terror!!! ...quase...eu acho...(eu admito que a cena da dança é genuinamente engraçada, mas só porque os atores decidiram tirar sarro do filme e a música é basicamente construída em torno de um tuíte do cantor.)

Agora os pássaros entram em cena? Ainda não, primeiro Rod e Nathalie têm que ir ao motel mais meia boca da cidade, mesmo eles sendo milionários e mesmo eles morando sozinhos, afinal um quarto de motel barato é sempre...mais...sexy. Não é? Só depois deles transarem - aparentemente sem tirarem a roupa, visto que Rod acorda com calça, cinto, meia e sapato -, aí sim, na manhã seguinte, que começa o ataque das águias.gif. Sim, as águias são uma imagem gif colada na tela. CHOQUE E TERROR!!! MUAHAHAHAHAHAHA!

Um ataque de águias. Rápido! Peguem os cabides!

Depois de 45 minutos de filme - quarenta e cinco minutos de filme, sendo esse filme apenas uma série de encontros entre o casal de protagonistas -, é que os pássaros finalmente atacam. E não são só pássaros, eles são kamikazes também e tem um vomito tóxico-explosivo (sendo as explosões e chamas também gif, como todos os outros efeitos especiais - e quando eu digo especiais, na verdade eu quero dizer retardados). As águias parecem ter como alvo os carros e postos de gasolina. O que fazem nossos heróis, então? Encontram um outro casal e fogem de carro com eles. Convenientemente, o homem do outro casal lutou no Iraque (e em determinado momento do filme, ele pergunta para Rod: "por que não dar uma chance à paz?") e, portanto, carrega todo um arsenal consigo, cheio de armas mágicas que nunca precisam ser recarregadas, até que as balas acabam quando o enredo assim exige - que nem na vida real.

Sem palavras. Sem palavras pra descrever o terror! Bu!

Então eles encontram um monte de gente morta; duas crianças ainda vivas e que não demoram para se acostumar a morte dos pais; um velho numa ponte, que usa a "ciência" para explicar que os ataques das águias estão interligados ao aquecimento global - eu falei que Birdemic estava relacionado a Uma Verdade Inconveniente, viram, faz todo o sentido do mundo... -; encontram um hippie (?) com uma peruca muito bizarra, que mora em uma árvore no meio de uma floresta. E chegando aí eu devo ter pego no sono umas quatro vezes, porque eu não faço ideia de como isso tudo aconteceu em tão pouco tempo. As águias se cansaram também, pelo jeito, porque chega uma hora que elas decidem ir embora, mesmo que os efeitos especiais dos pássaros partindo não respeitem nem a mais básica noção de perspectiva (eles voam no mesmo lugar por horas). Então Rod e Nathalie vivem felizes para sempre? Não, o filme lançou uma continuação esse ano, com o mesmo elenco e com os mesmos personagens.

Oh não, é o fim de alguns pequenos pontos específicos do mundo (ou dessa cidade, melhor dizendo). Salvem-se quem puder...

Eu desconheço um insulto forte o suficiente para descrever esse filme de forma apropriada. Mas ele não é só horrível, ele é tão ruim, mas tão ruim, que fica hilário; até que vai ficando chato e, no fim, você já não sabe mais no que pensar, nem no que acreditar; tudo que fica é um leve entorpecimento mental, a sensação de que você foi além, conheceu um mundo desconhecido e separado do nosso, outra realidade. Passarêmico é tão ruim que chega a ser inacreditável, tanto que, pela primeira vez nesse blog, vou deixar aqui o filme na integra, por meio do Youtube, para que vocês entendam bem do que eu estou tentando falar.

A imagem da esperança.

Chega a ser triste, porque o Passarêmico não é ciente de si. Não é uma sátira ou uma diversão entre amigos. James Nguyen, especialmente agora que seu filme adquiriu status cult e ganhou uma continuação, dá a entender que é um cineasta sério, que ama cinema tanto quanto o meio ambiente e seu ídolo, Alfred Hitchcock. Disse em entrevista que a única coisa que mudaria no filme todo seria o realismo dos pássaros. Sério mesmo, James Nguyen? Só o realismo dos pássaros? E o realismo das pessoas que você contratou, e da sequência de absurdos que você ousa chamar de enredo? Isso não é um problema pra você? Constato que conversar com esse diretor deve ser como conversar com uma criança de 10 anos, em posse de uma câmera e muito tempo livre. É essa a impressão que o próprio filme causa.

Conforme o tempo passa, a atuação vai de ruim para totalmente indiferente. Para vocês terem uma ideia, em uma cena, Rod e Nathalie estão em uma loja de conveniência. Reparem que tem sempre uma loja de conveniência nesses filmes...é tão conveniente. Lá, Nathalie (digo o nome da personagem, mas tenho certeza que não foi a personagem que fez isso e sim a própria Whitney Moore em total desconhecimento de que estava sendo filmada) pega uma garrafa de champagne e a mostra para Rod e os dois parecem estar em uma conversa bem interessante, embora o áudio não capture nada dela para o filme (isso acontece várias vezes, nem sempre de maneira intencional). Aí algo chama atenção dela, a cena começando talvez, e ela larga a garrafa. Vamos recapitular. Você está no meio do apocalipse aviário, encontra uma loja sem dono (a dona aparece assassinada uma cena depois), você vê uma garrafa de champagne e demonstra interesse em levá-la, mas decide pôr de volta quando uma "coisa" chama a sua atenção. Explica isso. Explica qual motivo poderia ser, além de "aquela cena não era parte do filme".

Coisas assim, que acontecem mais de uma vez, fazem com que eu visualize James Nguyen como um cara bem chato, insistindo o tempo todo para que seus amiguinhos do bairro se comportem para a sua filmagem "muito importante". Entendem o que eu quero dizer?

Nosso Hitchcock do Vietnã.
 Fica pior quando você fica sabendo que James Nguyen tem um título. Isso mesmo, ele se deu um título. Ele é "Mestre dos Thrillers Românticos". E esse título é registrado, pode procurar no google e mais de uma vez você vai encontrar o nome dele disposto da seguinte forma: James Nguyen, Master of Romantic Thrillers™. Seria hilário, se esse fosse o objetivo, mas não. Ele parece querer carregar uma mensagem com a sua obra e deseja ser levado a sério. Tommy Wiseau também, quando ele lançou The Room, queria ser comparado a Tennessee Williams, mas quando sua obra foi lançada e, consequentemente, ridicularizada, ele baixou a bola e se aceitou como comediante. Por que Nguyen não faz o mesmo? Será que ele assistiu Passarêmico e mesmo assim disse para si mesmo: sim, esse é um bom filme. Ou ele é apenas o Ed Wood da nossa geração, fingindo se levar a sério ao mesmo tempo que rindo dos críticos e alimentando sua conta bancária. Vou torcer pela segunda opção, porque, se a primeira for verdadeira, posso ser acusado de estar tirando sarro de um deficiente mental.

Ainda assim, independente de tudo o que eu acabei de dizer, assim como Sharknado, assim como The Room, eu indico esse filme. Não para ser visto como uma obra prima, nem mesmo serviria como um filme medíocre. Só serve para diversão mesmo. Eu ri muito durante o filme todo, mesmo que esse não fosse o objetivo. Tanto que vou ver a continuação, sério mesmo. E nessa categoria de filmes (categoria: chame os amigos e encha a cara enquanto assiste), não há obra melhor que Passarêmico. Talvez haja, admito que ainda nem cheguei no fundo do poço em se tratando de filmes ruins - ou talvez tenha chegado, mas ainda tenho que cavar para ver o que existe além da terra. Mas atualmente, considerando meu conhecimento cinematográfico, esse é o melhor pior filme da atualidade.

Nota: -6/5 (porque ele é assim tão ruim)


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Playlist Nova



Talvez alguns de vocês nem soubessem, mas esse blog tinha uma playlist. Tava bem bacana, mas eu quis mudar. Então eu fiz. No começo achei que tava mexendo em time que tava ganhando, mas gostei do resultado final. Na playlist vocês vão encontrar desde clássicos como Hendrix e Coltrane, até jóias perdidas da década de 60, como Black Merda e Elephants Memory. Aproveitem.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

The Derek Trucks Band - Joyful Noise (2002)

Basta ver a capa pra ter a impressão de que a música é boa, né?

Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.




Há algumas semanas (meses?), eu fiz um  post falando das melhores bandas da década de 90 em uma tentativa frustrada de repetir a maravilha gerada pelo meu post sobre as melhores bandas de rock atuais, que de longe se tornou meu post mais visto (aproximadamente 40% das visualizações totais do blog). Nesse post da década de 90 estava The Derek Trucks Band, mas falei muito pouco deles, então tomei como objetivo falar um pouco dos discos deles, se não todos, ao menos um.

Antes de passar para as faixas, um pouco de história. Quem é esse Derek Trucks e por que ele é tão foda. Tudo começou em 1969, com The Allman Brothers Band, uma das melhores bandas de rock em geral, responsável por toda uma repaginação do gênero, conhecida principalmente pelos seus longos períodos de improvisação entre as músicas, podendo durar mais de 20 minutos em um frenesi instrumental. Um dos irmãos Allman era o genial guitarrista, Duane Allman, famoso pelo seu virtuosismo no slide. Infelizmente ele morreu cedo, a banda, por outro lado, ainda está na ativa. Mas não foi até 1999 que eles conseguiram replicar o talento de Duane, nem de perto; só com o surgimento de Derek Trucks - que é bom deixar claro que tinha apenas 20 anos quando entrou na banda formada por senhores de 60 -, capaz de assustar com seus solos em surtos espontâneos e o timbre suave e melancólico de sua guitarra que remete, não só ao próprio Duane, como até ao do sax tenor de seu ídolo, John Coltrane[1]. 

E é a Coltrane que o título do disco e a primeira faixa, Joyful Noise, homenageiam, ao homem que dizia passar a vida buscando a música tão perfeita que ele só poderia chamar de Joyful Noise. É uma faixa quase instrumental, com quase nenhuma letra que o valha, lembrando um pouco o funk de James Brown. Um ritmo repetitivo, cercado de solos imprevisíveis, como se os músicos estivessem apenas se apresentando e ao propósito da banda em si. Perfeita em todos os aspectos e, logo de cara, um dos pontos altos do disco.


A segunda faixa é outro instrumental, So Close, So Far, que talvez tenha seu brilho ofuscado pela primeira música, mas que é de um estilo tão oposto que não deixa dúvidas quanto a sua qualidade. Mas lenta que a antecessora e melódica, um contraste bem interessante. A lentidão, contudo, não dura muito, quando logo em seguida vem a primeira das várias participações especiais do disco, Solomon Burke[2], o rei Salomão do Soul em pessoa, na primeira faixa realmente cantada. Um soul mais tradicional que as faixas anteriores, que mesclavam rock, jazz e funk. A voz do velhinho mostra por que ele não era chamado de rei à toa. Outro grande destaque do disco.

(não achei a faixa no youtube, mas não importa, porque vocês vão baixar esse disco logo depois de terminarem a resenha, talvez antes disso)

Então o álbum dá uma reviravolta de estilo e se envolve em um ritmo mais exótico e raríssimo de se achar em álbuns ocidentais. A segunda participação especial, Rahat Nusrat Fateh Ali Khan[3], em Maki-Madni, um Qwwali tradicional ao islamismo Sufista[4], "corrompido" pelo jazz de Derek Trucks, mas mantendo total fidelidade ao ritmo árabe. Uma das faixas mais belas do disco, talvez a melhor, que vale por cada um dos seus oito minutos de duração.


Mas esse não é o fim da volta ao muito em tantos ritmos de Joyful Noise, agora é a vez da lenda da salsa panamenha e do jazz latino, Ruben Blades, cantar uma música composta em parceria com os membros da Derek Trucks Band, Kam-Ma-Lay. Uma faixa que não deve nada a sua antecessora e compete quase cabeça com cabeça pela posição de melhor faixa. 




Só então voltamos aos EUA e a voz de Solomon Burke, em sua segunda participação, agora cantando uma composição própria da Derek Trucks Band (Home In Your Heart é um cover de uma canção tradicional). Like Anyone Else é suave, flutua pelos ouvidos. Não tem o lado exótico das anteriores, mas tem toda a personalidade da banda, que, apesar de levar o nome de um de seus membros como "líder", não é sinal de egocentrismo. Cada músico tem seu espaço e o preenche com perfeição, principalmente o tecladista/flautista/vocalista, Kofi Burbridge, que aproveita para roubar a cena vez ou outra.

Every Good Boy, a faixa seguinte, é um instrumental que infelizmente não se destaca. Tem um jogo bacana entre as teclas e a guitarra e um ritmo marcante, mas no meio de tantas músicas impecáveis, ela meio que se perde - o que não é de forma alguma um insulto à faixa. Só que essa impressão de insatisfação - fundamentada apenas pela qualidade altíssima de todas as músicas - logo passa com o cover da canção de James Brown, Baby You're Right, cantada pela esposa de Derek Trucks, a guitarrista e vocalista, Susan Tedeschi[5]. Que exibe as suas qualidades vocais nessa quase declaração de amor em forma de música.




Mas chega de romantismo, porque a faixa que vem a seguir, Lookout 31, um instrumental meio bebop meio jazz fusion, vem, mais uma vez, demonstrar o virtuosismo dos músicos, caso ainda restasse dúvida. E Frisell, mais um instrumental lento, vem para fechar o disco, com as notas quase cantadas da guitarra de Derek Trucks.


O disco acaba e você fica meio que querendo que tivesse mais, porque tudo passa muito rápido. Esse é, provavelmente, um dos melhores discos da década passada, que mostra aos poucos de nós que não se contentam com a música industrializada de hoje, que ainda é possível fazer arte e que existe um público para ela, mesmo que pequeno.

Nota: 5/5, porque mesmo os momentos mais fracos são fortes o suficiente.

Notas:
1 - John Coltrane foi um dos principais saxofonistas da história, apesar de ter tido uma vida relativamente curta. Seu estilo e inventividade musical influenciaram toda uma sequência de músicos de todos os gêneros e épocas. Seus álbuns mais conhecidos são A Love Supreme, My Favorite Things e Giant Steps, para citar uns poucos.

2 - Solomon Burk, também conhecido como King Solomon, foi um dos principais músicos de soul de seu tempo, muito embora não tenha tido nem de perto o sucesso comercial de seus contemporâneos Wilson Pickett e Otis Redding, digamos que a competição era forte. De qualquer maneira ele se tornou uma lenda, se não conhecido pelo público, mais que reconhecido e admirado pelos seus iguais e pelas gerações de músicos que seguiram seus passos. 

3 - Rahat Nusrat Fateh Ali Khan é sobrinho e foi aprendiz de Nusrat Fateh Ali Khan, um dos principais cantores de Qwwali do Oriente Médio. Seu tio era conhecido pelo alcance vocal e fôlego, capaz de manter a apresentação de um canto por mais de uma hora, sendo a média de um Qwwali em torno de 20, 30 minutos.

4 - Sufismo é uma corrente do Islamismo Sunita mais devota ao misticismo interno, crente em uma forma de unitização divina. Alguns dizem ser uma filosofia perene mais antiga que a religião em si. Vista como uma variação mais pacífica e apolítica do Islã entre os ocidentais, e como herética entre os islâmicos mais radicais. Qwwali são os cantos devocionais dessa religião.

5 - Susan Tedeschi, além de ser esposa do Derek Trucks, também formou com ele, em 2011, a Tedeschi Trucks Band, que já gravou 3 discos, um deles ao vivo. Acho que logo, quando ouvir algum deles com mais atenção, resenharei aqui.

Obs.: O que vocês acharam das notas? Foi uma forma que eu achei de manter minhas digressões, que eu percebi, em resenhas passadas, que são muitas. Assim os textos podem ser menos superficiais, com todas as referências necessárias, sem causar grandes fragmentações nos argumentos da crítica. Baseei essa ideia vagamente no estilo do David Foster Wallace de escrever artigos, não sei se serviu aqui e não pretendo usar em todos os textos, somente quando estritamente necessário para a compreensão geral da resenha (ou qualquer outra forma de post que seja feito). Nesse caso específico, gostei do resultado final.

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Sharknado (...Tubarãonado?) - Anthony C. Ferrante (2013)

Vejamos o histórico desse blog: Béla Tarr (cineasta artístico e obscuro da Hungria), Erik Satie (músico e compositor vanguardista francês) e Sharknado. Está confirmado que eu não tenho nenhum padrão de qualidade ou bom senso.

Eu sei o que você está pensando, "porra Raphael, agora você se superou, o que é essa merda e por que você decidiu resenhá-la?" Bom, deixe eu me explicar. Isso não é exatamente um filme. Quer dizer, é um longa-metragem, tecnicamente, mas foi feito exclusivamente para televisão. Na verdade, esse tipo de filme é bem comum e bem infame, mas esse, Sharknado (que, por falta de tradução melhor, será denominado por mim de agora em diante como Tubarãonado, porque foda-se), acabou ganhando muito mais fama do que o normal, porque é um tornado...com tubarões, o que mais vocês querem?

Eu tentei tirar um screenshot pra cada cena inacreditável demais para ser descrita...foram muitas fotos, mesmo.
E como que eu vou explicar o enredo dessa porra? Acho que dá pra começar pelo básico. Tem um tornado vindo em direção à Los Angeles. No meio do caminho esse tornado se enroscou com uns tubarões - tubarãonado!

Eu sabia! Tornados transformam tubarões em computação gráfica mal-feita. E, sim, eu cortei esse parágrafo só para poder encaixar mais uma foto.
Só que isso não basta pra um filme inteiro, supostamente, então eles precisaram colocar uns personagens no meio pra encher o enredo. Tem o dono de um bar que aparentemente foi uma lenda do surf, Fin - trocadilho intencional - Shepard (Ian Ziering, não se preocupe, também não sei quem ele é); sua garçonete gostosa, Nova (Cassie Scerbo, famosa por Sharknado); um amigo do Fin, Baz (não precisa dizer quem é o ator, porque ninguém nunca ouviu falar), cuja personalidade gira em torno do fato dele ser neozelandês; George (John Heard, que, de acordo com IMDB, já fez 151 filmes, incluindo Esqueceram de Mim - ele é o pai), um cliente do bar; aí aparece a ex-esposa (Tara Reid) do Fin, os filhos, mas nada disso importa porque Tubarãonado está fodendo a cidade.

Fala a verdade John Heard, você não foi contratado pra esse filme. Ele só, por acaso, foi filmado no mesmo bar que você frequenta e você meio que deixou rolar. Só pode ter sido isso.
Esse filme é uma merda. Sério, esse filme fez The Room parecer elaborado de tão comicamente ruim que ele é. É tão ruim que nem mesmo o tubarãonado parece querer fazer parte dele, só aparecendo em duas cenas separadas por uns 40 minutos. E tudo que preenche esse tempo sem tubarãonado não deveria existir. O diálogo é péssimo, os personagens tem toda a profundidade e carisma de uma folha de papel sulfite, os cortes acontecem a cada 2 segundos, impedindo que qualquer um dos ataques de tubarão sejam compreendidos, e a computação gráfica faz o filme Tubarão 3-D (Jaws 3-D, isso existe, eu juro) parecer realista.

Esse figurante foi contratado para um filme chamado Sharknado, mas a causa da sua morte foi uma roda-gigante desgovernada. Que merda, hein?
Como eu fiz questão de citar The Room, vou fazer aqui o mesmo que eu fiz naquela resenha, redigir alguns diálogos para que você, leitor, entenda por que o filme é tão ruim, já que só palavras não causam o efeito completo. Lembrando que todas as cenas são tiradas do IMDB e as traduções são minhas.

Depois de Fin salvar um monte de crianças presas dentro de um ônibus escolar, uma ventania destrói aquele letreiro "Hollywood" e faz com que as letras voem pra todo lado. O motorista, que também foi salvo, assim como todo o grupo do protagonista, consegue se esquivar das letras assassinas, até que ele diz:
Robbie, o motorista de ônibus: Minha mãe sempre disse que Hollywood ia me matar! (então uma das letras o esmaga, porque a ironia é engraçada, aparentemente, ou deveria ser.)

Pois é Robbie, sua mãe tinha razão...que engraçado.
Os heróis encontram uma loja de conveniência (muito conveniente por sinal) para se reabastecerem de suprimentos. Lá, somos agraciados com essas pequenas falas seguindo um anúncio do jornal que dizia que alguns grupos religiosos estão tomando o tubarãonado como um sinal do apocalipse:
Caixa da loja de conveniência: Apocalipse é o cacete! Isso não é fim do mundo! Deuses, eles não estão bravos com a gente, aliens não estão descendo aqui! É o governo! Com "G" maiúsculo! Eles estão por trás de TUDO! Eles sabem o que nós compramos, sabem o que comemos, quando nós vamos ao banheiro. Eles sabem que tipo de QUEIJO eu gosto...Pepper Jack [sussurra].
Caixa da loja de conveniência: Eles controlam tudo! Controlam o tempo também! Só que eu tenho que admitir, TUBARÕES? Por ESSA eu não esperava.
Fin: É.
(Porque essa conversa era necessária para o andamento do filme, senhoras e senhores...)

Passando por uma rua, Nova percebe que tem um asilo perto do aeroporto e pergunta:
Nova: Por que tem um asilo ao lado de um aeroporto?
Claudia (filha do Fin): Porque gente velha não ouve direito.
(Alguém entregue um Oscar e um Nobel pra essa garota, agora.)

Esses são só exemplos, o filme é cheio desses pequenos momentos de preciosidade cômica.

Vocês nunca vão adivinhar o que acontece depois disso.
Tá bom, se esse filme é tão ruim, como que eu vou justificar o fato de eu ter gostado dele... Não é tão difícil de acreditar. O filme se chama Sharknado! É sobre tornados que carregam tubarões assassinos por aí. Com esse enredo, o que você esperava, Cidadão Kane? É claro que o filme é uma merda e é por isso mesmo que ele é bom.

Talvez vocês tenham adivinhado. Desculpem os spoilers mesmo assim. Eu sei o quanto vocês queriam ser surpreendidos pelo final dessa obra-prima.
Sim, o filme ultrapassa a barreira do inaceitável para qualquer tipo de padrão de qualidade cinematográfica; usa dos clichês mais batidos que um roteiro pode oferecer; ignora por completo a física e até a biologia; exagera no uso de trocadilhos e piadas sem graça; usam computação gráfica da pior qualidade; usam atores que nem mesmo se esforçam para atuar de maneira competente. Mas é essa a graça do negócio.

Só dá pra entender essa assistindo. Talvez nem assim vocês entendam.
 O filme é hilário, e é bem provável que essa tenha sido a intenção - o filme dá vários sinais de ser ciente de si. Claro que, se você está esperando uma obra de arte, Sharknado não é o que você procura, mas vai me dizer que isso te surpreende. Tubarãonado é um filme divertido, perfeito pra chamar os amigos e encher a cara.

Nota: -5/5 - porque é o lixo perfeito!



E antes que você vá embora:

Sim, é real. Vai acontecer.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Erik Satie [Momento Cultural]


Uma das coisas que eu mais gosto nessa vida é música clássica. Mas como eu não ouso resenhar peças eruditas por não ter o conhecimento técnico necessário para abordar esse estilo musical de maneira apropriada e interessante, nunca tive a chance de escrever sobre aqui no blog. Então, outro dia estava trabalhando no meu livro e em determinada cena uma música de Satie é tocada. O personagem se vê arrebatado pela composição e seus sentimentos são descritos, baseados nos meus próprios, que ouvia a música enquanto escrevia.

Sendo assim, decidi escrever esse post por uma série de motivos. Um, precisava falar sobre música erudita em algum momento. Dois, Erik Satie não é conhecido no Brasil, pelo menos não tanto quanto deveria ser - falarei sobre isso mais a frente no post. Três, não faria mal escrever um texto, desde que esse não fosse crítico ou analítico, restringindo-se a falar apenas de impressões, emoções e história (esta retirada de diversas fontes, mas redigidas sem qualquer cópia ou referência - ou seja, terão que confiar em mim ou descobrir se estou certo ou não).

Erik Satie foi um pianista e compositor francês nascido em 1866, conhecido por ser um dos precursores do minimalismo na música e na arte em geral. Devido as suas excentricidades, acabou se tornando conhecido na vanguarda francesa de seu tempo, fazendo amizade com artistas contemporâneos e influenciando os que vieram depois. Em vida, contudo, nunca obteve sucesso crítico ou financeiro, o que para ele não interessava.

Para provocar os críticos que ele odiava - o ódio era mútuo -, Satie dava nomes estranhos às suas composições (como "Peças Refrigeradas", "Pecadinhos Indesejáveis" e "Embriões Secos"), que por outro lado atraía a atenção de compositores jovens.

Sua música buscava a simplicidade e a beleza da repetição. Algumas de suas composições eram iguais, mas feitas para serem ouvidas de ângulos diferentes; outras não eram feitas para serem ouvidas, e sim para enfeitar o ambiente (a musique d'ameublement, ou mobília). Seguindo um estilo sempre experimental e fora dos padrões críticos de seu período.

Viveu na pobreza, mas não deu a mínima. Encheu a cara o quanto pôde, principalmente de absinto, e, em 1925, aos 59 anos, morreu. Seu nome voltaria a chamar atenção de artistas durante a década de 60, com o surgimento da contracultura e artistas que tomavam seu estilo de vida como um padrão moral.

Entre suas peças mais conhecidas estão as Gnossiennes, divididas em 3 partes similares, repetitivas, com foco na leveza das mãos do pianista, por vezes lenta e bela, por outras intensa.


Anos mais tarde foram lançadas mais 3 Gnossiennes.




As outras peças mais conhecidas dele são as Gymnopédies:


Como eu disse, esse post é um pouco diferente do normal. Meio que um retorno àqueles meus primeiros posts denominados "Momento Cultural", não necessariamente com objetivo crítico, apenas servindo de sugestão, principalmente porque música erudita tem fama intimidadora e chata. Eu estou aqui pra tirar esse medo, mostrar que qualquer imbecil é capaz de ouvir e apreciar esse tipo de música, sem a necessidade de um diploma ou nível superior de percepção. Espero que tenham gostado.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

2 poemas curtos, sem título, que não deveriam existir e podem ser apagados logo

1

Existem palavras em meu peito
- trancadas -
falando de você,
confusas corridas incoerentes.
Elas devem gritar ou explodir
logo.
Mas antes,
precisam saber por que existem.

***
2

Inexplicável
a vontade imediata,
repentina,
de querer te escrever como obra de arte.
Tornar-te as palavras certas
da verdadeira poesia que eu nunca escrevi.

---------------------------------------------------------------------------------------------------
Justo quando eu tinha me prometido parar com isso. Não é bom, nem me faz bem, então por que eu teimo?
São as últimas poesias desse blog, e podem ser apagadas logo, quando eu me decidir se vou apagar posts antigos ou não.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Páginas Sem Glória - Sérgio Sant'anna (2012)


Seguindo a polêmica dos livros comerciais contra os livros com valor artístico, decidi, depois de Daniel Galera e Luiz Ruffato, fazer a resenha de outro nacional dessa linha. Esse não necessariamente contemporâneo, ele faz parte de uma geração mais antiga, só que mesmo assim atual. Páginas Sem Glória é o mais recente livro de Sérgio Sant'anna, que estou considerando como um dos melhores escritores vivos do Brasil. É um livro com foco na narrativa, mas, como vocês verão a seguir na resenha, não abandona o necessário experimentalismo.

São três narrativas que compõem Páginas Sem Glória, sendo duas delas contos e a outra novela. Começando pelo conto Entre as Linhas, que começa com Fernando, um escritor, falando sobre como ele confia apenas em uma de suas amigas para criticar seus manuscritos. Em seguida, essa amiga analisa detalhadamente a novela de Fernando, dizendo poucas coisas positivas. 

Não sei quem foi que disse que um bom conto são dois contos, mas Entre as Linhas é um desses. A cada crítica dessa amiga, o leitor descobre um pouco mais sobre a personalidade de Fernando, refletida na novela da qual o leitor, ao fim da narrativa, acaba conhecendo quase que por completo, mas apenas por meio de fragmentos e comentários. Costumo me irritar com metaficção, mas a forma utilizada nesse conto do Sérgio Sant'anna é tão sutil que mal se percebe que se trata de uma história sobre uma história. De fato, como o próprio Fernando conclui, a análise de sua amiga e a forma como ela lança suas críticas cheias de ironia e, por que não dizer?, afeto e cuidado, acabam se tornando melhores que a novela em si.

O segundo conto é O Milagre de Jesus. Neste, um mendigo chamado Jesus - nome que ele adota, devido à sua aparência com a imagem padrão dessa figura religiosa -, em uma conversa de boteco, fala sobre o dia que ele realizou um milagre, convencendo uma mulher, que sofre de uma séria deformação, a não abortar o filho que ela concebeu por meio de um estupro, ou melhor, três - foram três os estupradores. Então ele é expulso da igreja pelo padre e encontra dois jovens que estão gravando um documentário.

Assim como o primeiro, esse conto me pareceu impecável, perfeito exemplar dessa forma literária tão ignorada nos dias de hoje, só que sem todo o "meta" do primeiro. A informalidade com a qual a história é contada - conversa de boteco - quase deixa que a violência do ato descrito passe desapercebida, mas não passa por completo, acerta no ponto.

E por último a novela que dá título ao livro, Páginas Sem Glória. Uma breve biografia do grande jogador de futebol fictício, José Augusto do Prado Almeida Fonseca, o Conde. Começando pelos seus esforços no futebol de areia, até a contratação para o time profissional, sua vida boêmia, seus escândalos, sucessos e fracassos, em uma típica tragicomédia rodriguiana.

De todas as três, se me for permitido passar uma opinião puramente pessoal - como se não fosse isso que eu sempre acabo fazendo..., como se não fosse essa a razão de ser desse blog egocêntrico -, essa foi a mais fraca. Acontece que eu nunca consegui gostar de futebol. Gostava quando criança, tentei jogar e não deu certo. Fui envelhecendo e perdendo o gosto pela coisa. Mas isso só fala positivamente pela obra, que, embora esteja centrada no mundo do futebol, fala muito mais que só do esporte, desde a hipocrisia social da década de 50 (que ainda está aqui, mas coberta por metros de pseudo-liberalismo) até questões existenciais e éticas. Se eu, que não gosto do esporte, li até o fim e não me entediei em momento algum, e se você tiver uma opinião diferente da minha quanto ao futebol, bem provável que veja nessa novela a mesma perfeição que eu vi nos primeiros contos. Se não gostar de futebol, vai acabar enxergando a qualidade da história de qualquer forma.

Mas do que eu sei? Aparentemente tem um grupo de escritores por aí falando que a crítica não respeita escritores com foco na narrativa, apenas aqueles que se dão o trabalho de fazer textos experimentais herméticos, então...devo estar errado, é o meu doutorado em literatura que eu não tenho que me permitiu compreender esse texto. Ou isso, ou aquele manifesto não faz o menor sentido, já que essa é uma obra acessível, aclamada e vencedora do Jabuti esse ano (desclassificada porque "Entre as Linhas" não é um conto inédito, mas mesmo assim, ganhou, só tiraram o prêmio).

Obs.: sairei à caça de mais livros desse autor. Já até arranjei uma edição antiga, em capa dura, de Simulacros, no Casa Aberta (sebo itajaiense que já mencionei aqui em posts passados).

Nota:  5/5 (ia dar 4,5 por causa do futebol, mas seria sacanagem)

Um vídeo do autor pra complementar o post.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

A Torinói Ló [O Cavalo de Turim] - Béla Tarr, Ágnes Hranitzky (2011)


Em 1889, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche presenciara, em sua viagem à Turim, um camponês chicoteando seu cavalo. Então ele saiu do seu veículo e se atirou ao pescoço do cavalo, aos prantos, para protegê-lo. Um mês depois ele foi diagnosticado com uma séria doença mental e passou os últimos onze anos de sua vida numa cama de hospital, em silêncio. O que ninguém sabe é o que aconteceu com o cavalo. Essa é a história do cavalo de Turim, a história fictícia do cavalo protegido por Nietzsche.


O fazendeiro Ohlsdorfer (János Derzsi) e sua filha (Erika Bók) vivem com o que têm. Alimentam-se uma vez por dia, com uma batata - que eles nunca chegam a comer até o fim -, bebem a água do poço e ganham dinheiro com seu fiel cavalo. O cavalo, por sua vez, anda agindo estranho. Não quer andar, o que frustra Ohlsdorfer e o faz querer chicoteá-lo, até sua filha proteger o animal. Ele não come mais, não bebe mais água, está morrendo, e a família deve encarar esse  fato.

Ele gosta de um pouco de sal em suas batatas, ela prefere sem.
A história, co-escrita por Béla Tarr (que dizia querer ter sido um filósofo, sendo o cinema apenas um hobbie, no entanto ele acabou se tornando um dos maiores nomes contemporâneos dessa arte) e seu amigo, o romancista húngaro Laszlo Krasznahorkai (que escreveu vários dos livros que Béla Tarr adaptou para filme) acompanha essa família por alguns dias, a rotina - a filha acorda, pega água, veste o pai, limpa o estábulo, prepara as batatas, come e vai dormir -, as dificuldades e o tédio em conjunto da angústia causada pela morte iminente da única fonte de renda da família.


Assistir O Cavalo de Turim é como assistir a um quadro em movimento. Os cortes são longuíssimos - apenas 30, durante 2h e 26min de filme - e a câmera se move apenas quando necessário, o que realmente insere o espectador nas cenas, fazendo que este sinta tudo que o diretor quer passar. O que o diretor quer passar, por outro lado, já não é tão claro.


Muito pouco acontece durante o filme. Ele faz questão de separar cada dia, conforme o tempo passa, mas os dias são extremamente parecidos e quase exaustivos, mas essa é a intenção, essa é a vida. O diretor, Béla Tarr - que anunciou que O Cavalo de Turim seria seu último filme -, disse que a obra trata do peso da existência humana, e é isso que o filme realmente passa - peso. Não é uma obra fácil, exige paciência e vontade, mas a beleza das imagens compensa. Por mais repetitivas que as cenas fossem, era tudo tão bem filmado e cuidadosamente fotografado, que eu não conseguia desviar a atenção da tela, e é justamente essa a primeira obrigação de um filme - prender o espectador. Se entretém ou não, isso é outra história.


Béla Tarr vai encher sua cabeça de perguntas, mas, obviamente, não responderá nenhuma delas. Nem mesmo deixará claro se de fato ele está perguntando alguma coisa. Em meio ao tédio do dia-a-dia, a família recebe duas visitas. Uma de o que parece ser um amigo, Bernhard (Mihály Kormos), que representa uma expressão nietzscheniana da vida durante seu breve monólogo sentado à mesa de Ohlsdorfer. A outra visita é a de um bando de ciganos, que invadem a propriedade e tentam usar a terra e a água, mas são logo expulsos. Ao partir, desferindo insultos à família, eles entregam à filha um livro, que Tarr descreve como uma anti-Bíblia, do qual ela lê uma passagem durante a noite. Pode  significar que a família está sendo julgada por Deus por seus pecados; pode significar que a família representa toda a humanidade; pode significar uma série de coisas que nunca ficam claras e talvez nem possam ficar, pois iria contra todo o sentido do filme.


O último ato, então, é como uma peça existencial de Samuel Beckett. O poço da família seca, sem qualquer explicação, o fogo não acende, e os dois sentam à mesa, cada qual com sua batata agora crua. Então o pai exige que a filha coma, porque isso é o mais importante, comer (embora filmes nunca deem atenção à alimentação).


Dessa vez falei mais do enredo do que me é de costume, mas só o fiz por achar essencial para minha análise e por ter certeza de que não influenciará negativamente a impressão de quem, depois de ler essa resenha, decidir assisti-lo. Não é, eu repito, um filme fácil. É extremamente cansativo e, talvez, o mais difícil da filmografia desse diretor (que ficou famoso por ter filmado Satantango, um filme de 7 horas de duração, que um dia, quando eu tiver muito tempo livre, assistirei e resenharei, mas antes quero ler o livro o qual ele adapta), mas o esforço vale a pena. Nem tudo deve entreter, mas nem tudo que não entretém é forçosamente chato, existe uma diferença sutil aqui. E O Cavalo de Turim não é, em momento algum, chato ou vazio, pelo contrário. É uma obra complexa, mas, ao mesmo tempo, uma das mais interessantes do cinema contemporâneo.

Nota: 5/5