Seguindo a polêmica dos livros comerciais contra os livros com valor artístico, decidi, depois de Daniel Galera e Luiz Ruffato, fazer a resenha de outro nacional dessa linha. Esse não necessariamente contemporâneo, ele faz parte de uma geração mais antiga, só que mesmo assim atual. Páginas Sem Glória é o mais recente livro de Sérgio Sant'anna, que estou considerando como um dos melhores escritores vivos do Brasil. É um livro com foco na narrativa, mas, como vocês verão a seguir na resenha, não abandona o necessário experimentalismo.
São três narrativas que compõem Páginas Sem Glória, sendo duas delas contos e a outra novela. Começando pelo conto Entre as Linhas, que começa com Fernando, um escritor, falando sobre como ele confia apenas em uma de suas amigas para criticar seus manuscritos. Em seguida, essa amiga analisa detalhadamente a novela de Fernando, dizendo poucas coisas positivas.
Não sei quem foi que disse que um bom conto são dois contos, mas Entre as Linhas é um desses. A cada crítica dessa amiga, o leitor descobre um pouco mais sobre a personalidade de Fernando, refletida na novela da qual o leitor, ao fim da narrativa, acaba conhecendo quase que por completo, mas apenas por meio de fragmentos e comentários. Costumo me irritar com metaficção, mas a forma utilizada nesse conto do Sérgio Sant'anna é tão sutil que mal se percebe que se trata de uma história sobre uma história. De fato, como o próprio Fernando conclui, a análise de sua amiga e a forma como ela lança suas críticas cheias de ironia e, por que não dizer?, afeto e cuidado, acabam se tornando melhores que a novela em si.
O segundo conto é O Milagre de Jesus. Neste, um mendigo chamado Jesus - nome que ele adota, devido à sua aparência com a imagem padrão dessa figura religiosa -, em uma conversa de boteco, fala sobre o dia que ele realizou um milagre, convencendo uma mulher, que sofre de uma séria deformação, a não abortar o filho que ela concebeu por meio de um estupro, ou melhor, três - foram três os estupradores. Então ele é expulso da igreja pelo padre e encontra dois jovens que estão gravando um documentário.
Assim como o primeiro, esse conto me pareceu impecável, perfeito exemplar dessa forma literária tão ignorada nos dias de hoje, só que sem todo o "meta" do primeiro. A informalidade com a qual a história é contada - conversa de boteco - quase deixa que a violência do ato descrito passe desapercebida, mas não passa por completo, acerta no ponto.
E por último a novela que dá título ao livro, Páginas Sem Glória. Uma breve biografia do grande jogador de futebol fictício, José Augusto do Prado Almeida Fonseca, o Conde. Começando pelos seus esforços no futebol de areia, até a contratação para o time profissional, sua vida boêmia, seus escândalos, sucessos e fracassos, em uma típica tragicomédia rodriguiana.
De todas as três, se me for permitido passar uma opinião puramente pessoal - como se não fosse isso que eu sempre acabo fazendo..., como se não fosse essa a razão de ser desse blog egocêntrico -, essa foi a mais fraca. Acontece que eu nunca consegui gostar de futebol. Gostava quando criança, tentei jogar e não deu certo. Fui envelhecendo e perdendo o gosto pela coisa. Mas isso só fala positivamente pela obra, que, embora esteja centrada no mundo do futebol, fala muito mais que só do esporte, desde a hipocrisia social da década de 50 (que ainda está aqui, mas coberta por metros de pseudo-liberalismo) até questões existenciais e éticas. Se eu, que não gosto do esporte, li até o fim e não me entediei em momento algum, e se você tiver uma opinião diferente da minha quanto ao futebol, bem provável que veja nessa novela a mesma perfeição que eu vi nos primeiros contos. Se não gostar de futebol, vai acabar enxergando a qualidade da história de qualquer forma.
Mas do que eu sei? Aparentemente tem um grupo de escritores por aí falando que a crítica não respeita escritores com foco na narrativa, apenas aqueles que se dão o trabalho de fazer textos experimentais herméticos, então...devo estar errado, é o meu doutorado em literatura que eu não tenho que me permitiu compreender esse texto. Ou isso, ou aquele manifesto não faz o menor sentido, já que essa é uma obra acessível, aclamada e vencedora do Jabuti esse ano (desclassificada porque "Entre as Linhas" não é um conto inédito, mas mesmo assim, ganhou, só tiraram o prêmio).
Obs.: sairei à caça de mais livros desse autor. Já até arranjei uma edição antiga, em capa dura, de Simulacros, no Casa Aberta (sebo itajaiense que já mencionei aqui em posts passados).
Nota: 5/5 (ia dar 4,5 por causa do futebol, mas seria sacanagem)
Um vídeo do autor pra complementar o post.
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