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sábado, 31 de agosto de 2013

Talking Book - Stevie Wonder (1972)


Após o surgimento do compartilhamento de arquivos e da música digital, é raro encontrar alguém que ainda compre discos, eu não sou exceção, nem tenho aparelho de som e toda a minha "coleção" de música é em mp3, praticamente. Contudo uma parte dessa nova cultura não me agrada, a das músicas individuais e playlists. Não é um grande problema, eu entendo que às vezes um artista tem seus hits e as outras músicas não agradam tanto, ainda assim não consigo ouvir música dessa maneira, eu ainda tenho o costume de ouvir álbuns, coisa que anda se perdendo hoje em dia. Pra quem não sabe, de tempos em tempos, um artista lança uma reunião de suas músicas novas, seja em disco ou formato digital, isso é um álbum (mais ou menos como um filme ou um livro), e eu gosto de ouvir esses álbuns do começo ao fim. Por isso decidi que vou dedicar esse mês a essas peças esquecidas da música - os álbuns. Mas Raphael, ainda estamos em agosto, qual mês você está falando? Ora, o período entre 31/8 e 30/9. E você só vai falar de música esse tempo todo? É, se não te agrada, faça seu próprio blog! Os álbuns que eu resenharei nesse período não são necessariamente uma lista dos meus favoritos - minha coleção tem mais de 2000 álbuns, de diferentes gêneros e épocas, não poderia escolher os favoritos. A lista será baseada na variedade, gente que eu ainda não mencionei aqui, de preferência de diferentes gêneros. Começando com o gênio em pessoa, Stevie Wonder, e seu clássico de 72, Talking Book.


Difícil falar desse disco, porque ele é impecável. Tem faixas de destaque, mas não tem uma faixa ruim sequer. Pode ser ouvido do começo ao fim, todas 10 músicas, todos os 45 minutos, sem pular nada - na verdade até repetindo algumas músicas. E começa assim, com a leve e animada You Are The Sunshine Of My Life, uma música bem romântica, mas nem um pouco melosa ou cheia de promessas vazias, é puro sentimento, e é nisso que o Stevie Wonder se separa dos outros compositores. Nessa época, década de 70 (antes de ele começar a gravar lixo como I Just Called To Say I Love You), a música do Stevie tinha alma, e Talking Book mesmo tem vários exemplos de músicas românticas que fogem do padrão açucarado e barato que o sistema musical tanto ama, como: You And I, I Believe (When I Fall In Love It Will Be Forever), Lookin' For Another Pure Love (com direito a Jeff Beck na guitarra).

Mas nem só de romantismo e baladas leves vive Talking Book, logo na segunda música o funk já começa a dar seus sinais, no peso do baixo sintético (Moog Bass, também tocado pelo Stevie Wonder, mas que parece muito real) e na guitarra distorcida do Ray Parker Jr. - "O" Ray Parker Jr. (I ain't afraid of no ghosts!). E até as músicas mais leves não se mantém leves o tempo todo, com momentos em que a batida vai acelerando - afinal a música não precisa ser igual do começo ao fim, como alguns artistas acreditam que deve ser.



Não tem uma música ruim no disco, eu repito, mas é nesse disco que está a icônica "Superstition". A música que todos pensam quando falam de Stevie Wonder. E a faixa merece toda essa atenção e respeito, é realmente tão boa assim, com uma linha de sopro sólida, um ritmo perfeito e tem a voz e o clavinet do Stevie, que já valem a música toda.



Uma coisa que vale mencionar quanto à produção do disco, quase todos os instrumentos foram gravados pelo próprio Stevie Wonder, assim como quase todas as letras e arranjos - lembram do tempo em que os músicos tinham compromisso com a sua obra...pois é, bons tempos. Sendo assim, faixas como Big Brother, I Believe e You and I, não tiveram participação de ninguém além do Stevie Wonder, que gravou todos os instrumentos, além de cantar e escrever a música. E ele era cego. E tinha 22 anos. Já está se sentindo mal consigo mesmo? Eu estou.




Talking Book é o trabalho de um gênio e deve ser ouvido do começo ao fim com muita atenção.

Nota: 5/5

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Down By Law [Daunbailó] - Jim Jarmusch (1986)


Não fui muito de ter ídolos na infância, talvez porque eu ainda não soubesse das coisas que viriam a realmente importar na minha vida. Mas às vezes eu vejo essa gente, não só crianças, mas de todas as idades, indo atrás de autógrafos e fotos, eu nunca me interessei por nada disso. Nunca vi ninguém famoso, nem procurei por ver, nem pretendo procurar. Contudo, desde que eu comecei a escrever, fui criando admiração por certas pessoas. Não só os mortos, Hemingway, Faulkner, Richard Yates, mas vivos também; tampouco somente escritores, gente de todas as artes. Alguns descobri da existência esse ano, como por exemplo Leos Carax, Haruki Murakami e agora Jim Jarmusch, artistas que vão contra moda em nome daquilo que lhes agrada e lhes é real.


Down By Law (aqui "traduzido" como Daunbailó por um estagiário ainda mais preguiçoso que o normal) trata da vida de três homens, de início não relacionados, mas que vêm a se encontrar no futuro. Jack (John Lurie, famoso pelos filmes do Jarmusch e pela série de pescaria "Fishing With John", que durou 9 capítulos, sendo que o primeiro teve como convidado o próprio Jarmusch) é um cafetão com um problema financeiro que recebe uma dica sobre uma nova puta, supostamente perfeita; Zach (cantor, compositor e gênio nas horas vagas, Tom Waits), um DJ de rádio fracassado que acaba de ser chutado pela namorada e recebe uma oferta de trabalho envolvendo dirigir um carro de um ponto A a um ponto B. Os dois são presos e se encontram na cela, a qual mais tarde é adicionado Roberto (Roberto Benigni, sim, aquele do A Vida é Bela), um italiano otimista, inocente e irritante, em outras palavras, o próprio Benigni, como sempre.


O filme é muito bem filmado, deixando claro que, apesar da produção independente e de baixo orçamento - na época incomum nos EUA -, se trata de uma obra profissional e de altíssima qualidade. A começar pelo preto-e-branco bem utilizado, que acentua o peso dramático envolvendo as personagens e, de acordo com o diretor, faz com que o espectador tenha menos uma preocupação - as cores -, focando mais na história; outra coisa que ajuda é a ausência de música - salvo por algumas cenas específicas, com música do próprio Tom Waits - e as cenas longas, com poucos cortes, que permite que o espectador se insira na cela e faça parte daquele grupo de deslocados, marginais, mas inocentes de uma forma ou de outra.


Down By Law é um filme simples, honesto e forte, com uma mensagem não de todo negativa, considerando o modo em que termina. As atuações, apesar de não envolverem profissionais experientes, na época, é muito satisfatória e profunda em alguns momentos. A solidão de Zach após ser deixado pela namorada e o solilóquio de Roberto em frente à fogueira são duas cenas de destaque. Um filme surpreendente e diferente.

Nota: 5/5

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Avatar (2009) - James Cameron

Vocês adivinharam, a resenha de hoje será: Smurfs - O Filme
Deixe-me lhes contar uma pequena anedota que me ocorreu em janeiro de 2010. Caso vocês não lembrem, esse foi o ano que Avatar apareceu nos cinemas, revolucionando tudo ao reviver a tecnologia 3-D - só que agora com qualidade. Todo mundo queria ver essa porra desse filme naqueles dias, eu incluso. Se bem me lembro, estava de férias da faculdade e do estágio, então fui visitar meus pais por algumas semanas em minha cidade natal - Santos, pra quem não sabe. Era minha oportunidade de saber se a coisa seria tão boa quanto todo mundo dizia, sendo assim, chamei uns amigos do tempo de escola que eu não via há um ano e fomos todos assistir Avatar. Estava esgotado, o que pra mim foi um alívio, já que o ingresso ia custar R$17,00 - um assalto - e eu não estava carregando tanto dinheiro assim comigo. Conversamos por um instante para tentar descobrir o que veríamos no lugar. Um disse "Aconteceu em Woodstock" (que eu vi anos depois e achei bom, só bom), outro queria ver outra coisa e outro queria ver um concerto da OSESP na praia. No fim ninguém fez nada. 

Uma semana depois, voltei ao cinema, dessa vez com dinheiro e com antecedência. Não havia ninguém na cabine para compra de ingresso e isso me empolgou, contudo, em uma empolgação inversamente proporcional a minha, a mulher da cabine disse que os ingressos para Avatar estavam sendo vendidos separadamente e eu teria que ir até o final daquela fila - ela disse apontando para algo que parecia distante. Eu olho para trás e vejo um mar de pessoas, que por algum motivo misterioso eu não havia reparado anteriormente, confirmo com a atendente se ela se referia a tal multidão e ela reafirmou, perguntei se ainda teria algum ingresso sobrando quando fosse minha vez - meio que uma pergunta retórica - e ela disse que não fazia ideia e que os ingressos seriam vendidos até quando eles acabassem - o que pra mim foi um alívio, imagine se eles parassem de vender antes do fim dos ingressos que absurdo seria. De qualquer forma, desisti. Descrevendo assim parece preguiça, mas era gente pra caralho. Sério, pensa em uma multidão, agora bota toda essa gente desocupada em fila indiana, pois é, era um pouco maior que isso. Aí você me pergunta: mas Raphael, por que você não comprou o ingresso pela internet como todas as pessoas normais? Vá se foder, eu respondo.

Então mais uma semana se passou e eu tentei de novo, dessa vez numa segunda-feira a tarde, porque, puta que o pariu, se ainda assim estivesse cheio, eu ia roubar o ingresso de alguma criança - era minha última semana de férias e eu não tinha ido e voltado tantas vezes do cinema em vão, era uma promessa, eu veria esse filme. Realmente, segunda a tarde, não tinha ninguém comprando ingresso. Ainda assim, na fila antes de entrar na sala em que rodariam o filme, tinha uma família. Nessa família continha um adolescente retardado que já tinha visto o filme três vezes e decidiu comentar para seus pais, irmã, avó, cachorro, as melhores cenas do filme. Então uma cena de "Annie Hall", do Woody Allen, me veio a mente - e não pela primeira vez -, é, seria ótimo se a vida fosse daquele jeito (assista Annie Hall e entenda a referência, leitor preguiçoso, é melhor que Avatar, isso eu garanto). Se não bastasse, quando eu finalmente fui liberto dos comentários daquele idiota e pude entrar na sala e escolher minha cadeira, meus ouvidos captam mais um problema. Algo desagradável, cheio de gemidos e batidas eletrônicas. Uma voz francamente irritante, mas facilmente reconhecível. Era...porra, eu sempre esqueço o nome daquele gordo...qual o nome dele? Aquele chato pra caralho...Não, não é Fat Family, é só um...Lembrei! Ed Motta. Sendo sincero, nem sei se ele é tão ruim, mas aquelas músicas - aquelas que todo mundo conhece e todo mundo odeia - são uma tortura. Todas as vezes que eu fui naquele cinema, tocava Mozart ou Chopin antes do filme começar, naquele dia era o Ed Motta, e naquele dia eu nunca odiei tanto esse gordo. Odiei tanto que nem percebi que, antes da música parar e a sala escurecer, todas as cadeiras do cinema se ocuparam como que por mágica. E eu digo todas, até primeira fileira, isso porque não tinham ninguém comprando ingresso.

Mas por que eu estou contando essa história? Ah, pra justificar o porquê de eu estar resenhando um filme de 2009, que todo mundo viu, todo mundo conhece e muita gente ama, e, principalmente, explicar porque eu o detestei tanto. Então vamos pular para o enredo.

É, se veste de turista/soldado, isso vai te ajudar a se enturmar...cretino.
O mundo utópico de Pandora é povoado por natureza e criaturas azuis nativas tão perfeitas quanto seu mundo, vivendo em tribos pacíficas e em perfeita conexão com o meio ambiente, sem conflitos, sem disturbios, tudo limpo e bonito e tranquilo, até que surge o ser humano para foder com tudo - como sempre, esses humanos filhos dumas putas. Aparentemente Pandora é rica em um mineral cujo nome eu não consigo me lembrar - eu vi esse filme em 2009 afinal de contas -, mas não importa porque ninguém sabe pra que ele serve mesmo, só se sabe que ele vale dinheiro e seres humanos são capitalistas malvados cretinos feios que não se importam com o perfeito balanceamento de Pandora e decidiram tocar o terror mesmo assim. Mas como eles vão invadir esse planeta tão avançado em sua primitividade? Ora, ao estilo Dança com Lobos/Pocahontas como sempre, jogando um humano disfarçado (esse é o tal avatar) no território deles para ganhar confiança, afinal é impossível que ele vá se apaixonar por uma das nativas e mudar sua visão de mundo, quando foi que isso já aconteceu? (Leia essa frase com o máximo de ironia possível.)

Se ainda não ficou claro o suficiente: É UMA METÁFORA. Viram como o James Cameron é genial, ele fez uma alegoria anti-consumismo, ao mesmo que criticando a atitude colonialista dos europeus dos séculos passados (convenhamos, Na'vi é qualquer etnia que o homem branco já tenha dizimado ou escravizado), e, enquanto isso, desenvolveu uma nova tecnologia e encheu o cu de dinheiro. Esse homem é um gênio, não é? Bom, até pode ser, mas o filme não deixa de ser uma merda.

Diferentemente do mundo dos Smurfs, Pandora tem várias fêmeas. James Cameron deve ter consciência da triste condição da Smurfette (A Triste Condição da Smurfette seria um ótimo título de livro, não?)
Começando pelo aspecto mais básico: o roteiro é preguiçoso. Simples assim, Jaiminho achou - com razão - que o 3-D seria distração o suficiente para que as massas não prestassem atenção no enredo, portanto reviveu a história de Dança com Lobos/Pocahontas, só que ainda mais clichê, na esperança que os cenários seriam bonitos o suficiente pra que ninguém reparasse. Colocou uns smurfs altos pra caralho como nativos - sabe-se lá por qual motivo -, colocou uma cantora pop medíocre à Celine Dion para cantar o tema principal à Titanic (outro desastre, na minha opinião - me desculpem o trocadilho) e pronto, está feita a mina de ouro. E o público caiu na armadilha e adorou, na maioria dos casos. Eu prometi nunca mais ver um filme 3-D de novo, e até hoje estou cumprindo essa promessa, afinal nem tem cinema 3-D na minha região - chupa essa, tecnologia!

Senhores, eu chamei essa reunião para deixar bem claro a todos que eu sou o vilão desse filme e eu não deixarei ninguém esquecer disso.
Como se não bastasse, os personagens são ainda piores que o enredo. Vejamos o protagonista, Jake Sully (ator que o interpreta: quero mais que se foda), notem que nem o nome dele tem muita personalidade; ele é o soldado ignorante, impulsivo, mas de bom coração, que meio que é o culpado por tudo de errado na história, mas tem uma deficiência pra criar empatia com o público e compensar pela falta de carisma - não sei vocês, mas eu nunca vi isso antes. O vilão, típico militar filho da puta, mau porque o roteiro quis assim, sem qualquer característica que o redima - do contrário ele ficaria mais interessante que o protagonista -, seguindo a risca todas as regras do livro: "Como Criar o Vilão de um Filme Medíocre". O interesse romântico, misteriosa, nativa, forte, independente, mas que sempre precisa ser salva pelo heroi. De início não quer saber do cara, mas vai ganhando confiança, e se entrega depois daquela típica troca de insultos. Percebam que eu não dei nome nem pro vilão nem pro interesse romântico, poderia ser qualquer um e eu já me esqueci. Tinha esquecido o do protagonista, mas decidi pesquisar e inserir na resenha, pois achei que a falta de personalidade do nome acrescentaria na definição do personagem. Tem mais uma série de secundários, mas ninguém liga. Se eu não me engano, um ou mais deles até morrem, mas quem se importa?

Michelle Rodriguez é macho pra caralho! Na verdade, o filme poderia muito bem ter sido resolvido com uma briga mano-a-mano entre ela e o vilão, mas teria sido fácil demais pra ela.
Acontece que eu nem teria me importado com nada disso, se o filme não fosse tão chato. Não serve nem pra desligar o cérebro, metade (das 3 exaustantes horas) do filme envolve masturbação sobre os cenários. É só o James Cameron mostrando o quanto aquela terra gerada por computador era bonita e o quanto o 3-D era eficiente. Não importa quantas dimensões tenha a filmagem se os personagens mal têm uma dimensão e a premissa não passa de uma releitura de uma das histórias mais chatas da que Hollywood tem para oferecer. É preguiçoso. Se o Sr. Cameron tivesse passado 10 anos trabalhando no roteiro ao invés de estudando uma maneira eficiente de jogar imagens na cara da platéia, talvez esse filme fosse bom e até inovador, mas do jeito que ficou, me surpreende que ele tenha sido tão aclamado. Avatar se tornou a minha nova definição para superestimado. É fato que minha má experiência antes de ver o filme deve ter afetado minha percepção da realidade, mas eu não me importo; eu sempre tive uma má experiência em filas de cinema, mas, se o filme fosse bom, ele compensaria.

Ainda a vida segue, Jaiminho está bilhões de dólares mais rico e eu continuo fodido e mal-pago, reclamando na internet.

Nota: 1,5/5 - pra fazer caridade.

sábado, 24 de agosto de 2013

Fear And Loathing in Las Vegas [Medo e Delírio] - Terry Gilliam (1997)

Em homenagem às moças que seguem esse blog: um close do Johnny Depp. Eu ouvi por aí que vocês gostam dele.

Ano passado resenhei a adaptação de 2011, Diário de Um Jornalista Bêbado, do livro de Hunter S. Thompson, que na época eu não o havia lido e até hoje não li, não por falta de vontade, mas por ser difícil de achar a um preço razoável. Lembro que teci vários elogios à Medo e Delírio (outra adaptação de um livro do autor que eu não li, mas quero muito), mas achei Diário de Um Jornalista Bêbado medíocre. Nem ruim, nem bom, Johnny Depp fazendo uma boa imitação do Hunter e destaque para a presença de Amber Heard, não tanto pela atuação, mas apenas por ela existir. Não sei, acho que com o passar dos anos Johnny Depp foi perdendo a personalidade. Antes ele fazia personagens excêntricos e meio doidos, agora ele faz Jack Sparrow em diferentes cenários. Mas Medo e Delírio foi feito em outros tempos, quando Depp era famoso por filmes como "Ed Wood", "Dead Man", "Donnie Brasco"...outros tempos realmente, mas não é disso que se trata esse texto.

Tobey Maguire antes da fama...como eu queria que tivesse continuado assim. Ainda, a cena é hilária. 
"Nós tínhamos dois sacos de maconha, setenta e cinco pastilhas de mescalina, cinco folhas de papel mata-borrão com ácido de alta potência, um saleiro meio-cheio de cocaína, e toda uma galáxia de uppers, downers, screamers, laughers multi-coloridos... Também, um litro de tequila, um litro de rum, uma caixa de cerveja, um quartilho de éter puro, e duas dúzias de amilas." - extrato de uma cena do filme. Texto retirado do IMDB e traduzido por mim. (É sobre isso que esse filme trata.)

Raoul Duke (alter ego de Hunter S. Thompson, interpretado por Johnny Depp) e seu advogado, Dr. Gonzo (Benicio del Toro), têm de cobrir uma matéria em Las Vegas. Para isso eles levam todas as substâncias descritas no parágrafo acima, não porque elas eram necessárias, mas pra tornar a coisa interessante. Essa viagem acaba se tornando um estudo sobre as consequências do "American Dream", assim como uma análise da realidade por trás da cultura das drogas e sua proibição.

Las Vegas já é surreal para os sóbrios.
Comentei isso na resenha de Jornalista Bêbado e repito aqui, não existe diretor melhor para interpretar uma obra de Hunter Thompson que Terry Gilliam. Ele tem o humor (foi um Monthy Python, afinal), a criatividade, a visão e a coragem de tornar um livro dessa categoria em algo visual - e que visual, já que estamos tocando nesse ponto. Do começo ao fim, as imagens te prendem. De início é engraçado ver a visão deformada dos dois e a percepção modificada, mas com o tempo vai ficando perturbador e parece te afetar fisicamente, mesmo você estando sóbrio enquanto assiste. Durante os créditos, acredite em mim, você vai se sentir de ressaca e vai ter dificuldade para a andar. As cores vibrantes de Las Vegas, as luzes, as distorções, as pessoas monstruosas (tanto pelo efeito da droga quanto na realidade), o espectador é inserido nesse meio com maestria, ficando ainda mais forte quando o diretor nos mostra o ponto de vista de Raoul, cheio de ácido e mescalina atacando o cérebro, e a realidade ao seu redor. Essas duas percepções são tão divergentes que deixam até o espectador em dúvida, o que é real e o que são drogas.

Senhoras e senhores: dinossauros - sem mais.
Medo e Delírio é surreal, mas não de modo que impede o espectador de entender o que está acontecendo ou torna a história não-relacionável. Apesar da paranoia recorrente, o filme é cheio de alívio cômico, com cenas hilárias envolvendo Raoul e Gonzo, assim como algumas participações especiais, por exemplo: Penn Jillette (mágico/comediante), Flea (músico) e Gary Busey (maníaco). Não é uma experiência leve ou coerente, mas diverte e é muito bem executado. Precisaria ler o livro para verificar a fidelidade com o material de origem, mas parece fiel e o próprio Hunter S. Thompson aprovou a adaptação, sendo assim, eu recomendo.

Nota: 4/5



terça-feira, 20 de agosto de 2013

The Room - Tommy Wiseau (2003)

Antes de ler essa resenha, vá ao espelho mais próximo e tente fazer essa cara. É impossível...sério.
O que dizer de um filme que é tão ruim, mas tão ruim, que meio que você acha que está ficando bom, mas logo fica horrível? Se você não sabe, The Room (que não foi traduzido para o português, mas que eu sei que ficaria entre "A Sala" ou "Uma Traição do Barulho") é um filme independente lançado em 2003, produzido, escrito, dirigido e estrelado, pela criatura mal-formada do cartaz chamado Tommy Wiseau. Não é incomum que um cineasta execute todas essas funções, mas só funciona quando o artista tem talento, e isso é uma coisa que passou longe do Sr. Wiseau, mas muito longe e, considerando o número de repetições de palavras no roteiro, talvez ele nem conheça a palavra. Tendo apresentado o contexto dessa...obra, vamos ao enredo.

Ah! A mais eficiente das preliminares - luta de travesseiros.
Johnny (Tommy Wiseau, famoso por The Room) trabalha em um banco, tem uma noiva, uma vida confortável, sem falar de sua mania de sempre cumprimentar todo mundo e rir, da forma menos natural possível, de exatamente qualquer coisa, até do que não deveria ter graça. Ele aparentemente é feliz com essa noiva, Lisa (Juliette Danielle, famosa por...The Room), mas ela não é feliz com ele e, portanto o trai com seu melhor amigo, Mark (Greg Sestero, famoso por...isso mesmo, The Room), que aceita ser amante, depois não aceita, aí aceita de novo, depois esquece de tudo, mas aceita mais uma vez, até negar de novo e aceita e nega e aceita e nega... Além disso, existem uma série de personagens secundários que não adicionam nada ao enredo, como um moleque pervertido chamado Denny (Phillip Haldman, famoso por...não, não por The Room, ele não é famoso por nada), que meio que é como um filho para Johnny, mas na verdade não é; a mãe da Lisa, que sofre de câncer, mas ninguém se importa, nem mesmo ela; uns amigos de Johnny, umas amigas de Lisa e...foda-se.


Nada de muito errado no enredo, certo? Pois é, mas espere só para ver a execução. Os diálogos são construídos como se o roteirista não tivesse qualquer conhecimento de como seres humanos conversam, cenas acontecem sem qualquer sentindo e se resolvem sem qualquer explicação (uma hora Denny deve dinheiro para um traficante, até que, depois de uma cena emocionalmente vazia, o traficante some, literalmente, ele nunca mais aparece). A cada duas cenas, o filme para e mostra uma longa cena da paisagem de San Francisco - filmes costumam usar esse tipo de cena para estabelecer local, mas o local nunca muda, então não são necessárias 25 pausas para estabelecimento de cenário. A atuação é digna de filmes caseiros de tão ruim, talvez pior, principalmente Tommy Wiseau, que não sabe falar inglês, que dirá atuar ou demonstrar emoção. Personagens aparecem, mas nunca são apresentados, ainda assim eles parecem ter alguma influência na história. Os problemas são indescritíveis. Certo, parece que eu os estou descrevendo, mas isso não é nem 10%, nem 5%, é preciso ver pra crer, mas ver essa abominação é uma das experiências mais dolorosas que um filme pode proporcionar.

Parece um derrame, mas é só um boquete. E não, os envolvidos não são os protagonistas, só dois personagens secundários que nunca são apresentados, mas que decidiram transar no apartamento de Johnny. Outra coisa, todas as cenas de sexo - e elas são muitas, e longas, e chatas - são acompanhadas de música R&B lenta ao estilo Softcore anos 90.
Para que minhas reclamações pareçam mais lógicas, vou descrever algumas cenas. As traduções são de minha autoria e as cenas eu tirei do IMDB:
Exemplo 1:
Mark e Johnny estão tomando café numa espécie de Starbucks genérica.
Mark: Como foi o trabalho hoje?
Johnny: Muito bem. Arranjamos um novo cliente e o banco vai ganhar muito dinheiro.
Mark: Qual cliente?
Johnny: Não posso te dizer; é confidencial.
Mark: Ah, qual é. Por que não?
Johnny: Não, eu não posso, como vai sua vida sexual?
(Sutileza - seu nome é Wiseau!)

Exemplo 2:
Johnny: Eu te amo, eu estou bêbado...eu te amo querida.
(executado sem qualquer emoção)

Exemplo 3:
Johnny entra no terraço.
Johnny: Eu não bati nela, não é verdade! É mentira! Eu não bati nela. (Johnny atira uma garrafa de plástico no chão) Eu não BATI! Oh, oi Mark.
(Distração - seu nome é Wiseau!)

E tem muito mais, muito pior que isso, mas eu não quero estragar a experiência dos meus leitores teimosos que vão insistir em assistir essa merda apesar dos meus avisos, o filme já se estraga por si.

Sim, eles estão jogando futebol de terno. Não é por causa de uma festa, nem casamento ou comemoração que exija o traje. Não tem motivo. A cena acontece, termina, mas nunca é explicada.
Eu vou admitir, quando escolhi que ia assistir The Room, eu já tinha sido avisado da tragédia, ainda assim eu insisti, pensando não sei em quê. Sei lá, talvez pudesse ser engraçado, o que realmente foi, mas não é o suficiente e, mesmo que fosse, não é o objetivo do filme, logo meu julgamento seria tão cruel quanto. Pelo que andei vendo - sim, porque eu precisei pesquisar qual foi a razão de ser desse desastre -, a ideia era fazer um drama com toques de humor negro. Tem drama, mas não tem emoção, tem humor, mas não é negro - se ri do filme e não com o filme -, sendo assim, ele falhou em cumprir com seus objetivos. E o pior de tudo, até poderia ter potencial, se não fosse a incompetência de todos os envolvidos.

Todos os defeitos até poderiam ser vistos com humor, se o filme não se levasse tão a sério. Claramente é uma obra muito pessoal, que fala sobre os problemas amorosos de seu "auteur", mas o tom que a obra usa para carregar o dilema é tão juvenil que beira a misoginia. Os diálogos mais "psicológicos" do roteiro parecem uma rotina de comédia stand-up da década de 80, só que sem a piada - "eu não entendo as mulheres, huh", ninguém entende as mulheres, ha ha", "as mulheres são manipuladoras e destroem a sua vida" - Ora, deixe de viadagem e dê logo esse cu, se é assim que você pensa! A propósito, toda vez que você ouvir um "huh" ou um "ha ha" nesse filme, tome uma dose de tequila. Tome uma dose e entre em coma alcóolico na primeira meia hora!

Tá bom, o filme acontece em San Francisco, já entendi, não precisa continuar apontando.
Com toda a derrota, The Room conseguiu, desde 2009-2010, arranjar uns fãs. Não fãs no sentido de "gente que ama o filme", mas no sentido de "gente que gosta de se reunir para ver o filme e tirar sarro dele". Sendo assim, ele ainda é exibido em salas de cinema nos EUA, e se tornou uma espécie de Cidadão Kane dos filmes ruins. Mesmo tendo reclamado durante toda essa resenha - não por falta de motivos - aconselho que o assistam. De novo, não como um filme interessante, mas como um filme para ver com os amigos, se embriagando e fazendo piadas. 

Nota: -2/5

Amostras da desgraça:




segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Em Defesa da Literatura como Arte (Best Sellers x Alta Literatura)



De início, juro que tinha a intenção de escrever um artigo sério e regrado, sem opiniões pessoais e devidamente embasado, mas pra isso eu digo: foda-se! Escreverei como eu bem entender e você que procure outro blog, ou um livro, ou uma porra de uma enciclopédia, pra verificar se o que eu escrevo faz sentido ou não. E não há jeito melhor para se dar início a um texto que de forma defensiva e ofensiva, não concordam? O negócio é que eu ando lendo muito sobre uma determinada discussão que se passa em meio à literatura, não sei dizer se internacionalmente ou só por aqui, mas vou julgar que é uma coisa mundial, e acontece que nenhum dos lados dessa discussão me agrada, e eu quero falar sobre isso. Como eu não me planejo, chances são que eu vou me perder por completo, sendo assim, segurem-se e tentem me acompanhar.

Livro comercial (literatura de massa, best-sellers, ou como queira chamar) contra literatura de conteúdo, existe um problema em trabalhar com qualquer uma dessas formas ou ler somente uma delas? Bom, pra começo de conversa, o que são esses tipos de livros? Pelo que eu andei ouvindo por aí, literatura comercial é aquela que se vê em todo lugar, produzida quase que de maneira industrial e padronizada, tendo em vista um público em particular, mais especificamente adolescentes, leitores iniciantes e pessoas com medo de livros. Às vezes vista como uma literatura de entrada, que abre espaço para obras mais complexas. Enquanto isso, literatura de conteúdo é feita para agradar aos críticos e aos padrões estéticos de sua época. É capaz de gerar mais discussão do que a literatura de massa, mas pode ser vista como pretensiosa ou somente chata, embora as pessoas que a vejam dessa forma são comumente vistas como burras ou inexperientes. Eu, particularmente, tenho meus problemas com ambas, e logo mais me justificarei, mas antes quero explorar exemplos, principalmente de literatura de conteúdo, já que esta eu tenho mais dificuldade de identificar.


Comercial é bem simples de ver exemplos: todas essas séries que lançam por aí, com vampiros, lobisomens, amores adolescentes, sadomasoquismo leite com pêra, bruxos, ou todas essas coisas juntas. Sem falar dos romances pré-fabricados, auto-ajuda e livros com mensagens tão parecidas que parecem ter só trocado os nomes dos personagens.

Conteúdo normalmente é visto como o clássico, livros dos velhos autores normalmente brasileiros, já que os clássicos estrangeiros até são bem vistos - vide Jane Austen -, obrigatórios para a escola. O que dificulta minha classificação desses livros como "eruditos" é que a maior parte dos clássicos foram "comerciais" em seus dias de glória - uma espécie de comercial com conteúdo, mas ainda assim comercial. Outros exemplos são livros que usam linguagem rebuscada, invenções nas estruturas da narração, não-linearidade, e tudo isso não por gosto, mas pra agradar o crítico e os "intelectuais" sejam eles quem forem. Muitas vezes confundem estilo com conteúdo.

Deixando claros os conceitos, vamos dar uma olhada nos argumentos usados por aí. Em defesa do comercial, é dito que, se não fosse bom, não venderia tanto; que vender muito não é sinônimo de baixa qualidade; que eles são mais fáceis e agradáveis de se ler, até atraindo mais pessoas à leitura. Quanto a isso eu digo: pra começar, não confunda tamanho de cheque com tamanho de talento, os dois raramente são diretamente proporcionais; segundo, realmente, ganhar dinheiro com seu trabalho não é pecado, contudo, partindo do momento em que o autor forja seu trabalho com o objetivo de agradar consumidores (note que não digo leitores) e vender mais, o livro deixa de ser arte e se transforma em produto, logo merecendo a perda de respeito, não só pelos críticos, como pelos leitores que sabem das coisas; e por último, vender muito não significa baixa qualidade, mas tampouco significa alta.

Isso quer dizer que um escritor devia ser proibido de fazer livros comerciais? Obviamente não, só significa que este não deveria se surpreender ao ouvir críticas quanto à integridade do seu trabalho. Vejamos, se usarmos como conceito de arte "expressão física objetiva ou abstrata da consciência ou visão de quem a constrói ", logo a forma como são feitos os livros comerciais não os encaixam nesse meio. É um produto, talvez até um bom produto, mas não é arte, e é disso que reclamam muitos dos críticos da literatura de massa. Não se pode preparar um trabalho sincero se a todo momento é necessário se preocupar com a sua recepção pelo grande público, número de vendas e uma série de outros fatores. Em outras palavras, dinheiro não deveria vir em primeiro lugar; não quando se quer fazer uma obra honesta e capaz de sobreviver ao seu tempo.

Tendo dito tudo isso, a literatura acadêmica não é de todo inocente. Tampouco é honesto moldar um trabalho de acordo com a visão estética dos críticos. Críticos raramente entendem de algo que vá além do seu tempo, na maioria das vezes eles apenas seguem padrões definidos por obras do passado. Se um escritor tem por objetivo apenas impressionar o mundo com a sua técnica e vocabulário extenso, ele não é um artista, só é metido e chato pra caralho. Prêmios também são tanto um sinal de talento quanto número de vendas - Jorge Luis Borges não é nobel; Nelson Rodrigues não foi membro da ABL, nem Ferreira Gullar, mas Paulo Coelho e José Sarney estão muito bem "imortalizados", e num sentido muito mais literal do que a maioria de nós desejaria que fosse.

Esses argumentos não se limitam à literatura. Qualquer forma de arte passa por isso, principalmente cinema e música, mas só mudam as formas de apresentação, os argumentos são os mesmos. Se um escritor vende milhões escrevendo sobre dragões em um mundo medieval fantástico, em seguida surgirão milhares de livros sobre dragões em mundos medievais fantásticos, ou fadas, ou zumbis, ou bruxos. Se um diretor faz um filme sobre robôs gigantes bons lutando contra robôs gigantes maus, destruindo uma metrópole no processo, pode ter certeza que ele vai ser copiado à exaustão. Isso quer dizer que todo o livro sobre dragões (filme de robôs) é caça-níquel explorador da inocência cultural das massas? Não, de forma alguma. É possível ser popular e artisticamente honesto ao mesmo tempo, e eu percebo isso em muitos autores atuais. Não posso sair citando com exatidão, pois não sou especialista no meio, não gosto de fantasia e posso muito bem falar merda, mas é uma intuição. Dá pra perceber honestidade de artista só no discurso. Já outros deviam largar a arte e virar pro marketing.



O que me deixa puto e motiva a existência desse texto é o discurso anti-intelectual que alguns desses autores insistem em fazer toda a vez que um best-seller é, muitas vez com razão, arrasado pela crítica. Pedem por liberdade, mas repreendem o eruditismo, que é uma forma de expressão como qualquer outra. E tem mais, é possível ser artístico e intelectualmente estimulante, sem se deixar cair no eruditismo barato - que eu tampouco defendo ou faço uso nas minhas tentativas de escrever ficção. Veja Haruki Murakami, Carlos Heitor Cony (este, por sinal, membro da ABL), Nelson Rodrigues, Ernest Hemingway; no cinema, Woody Allen (que tornou a psicanálise freudiana e o existencialismo de Dostoiévski - e o próprio Dostô é fascinante - e Sartre, motivos de comédia), Godard (na década de 60, assim como o resto da Nouvelle Vague), e até Ingmar Bergman. Todos esses nomes fizeram arte popular, mas sincera e estimulante, tanto que foi capaz de agradar ambos os lados, os críticos e o público - em parte, logicamente.

São compreensíveis as reclamações contra as leituras forçadas na escola, e eu apoio essa reclamação, pois me fechei a leitura, nessa época, justamente por causa disso; mas forçar literatura popular não vai resolver o problema - é como trocar uma ditadura por outra. Não funcionaria porque nem todo o jovem está aberto a literatura popular. Eu li Harry Potter aos 13 anos - depois de ter dormido no cinema durante o primeiro filme poucos anos antes disso - e não suportei o tédio. Eu não dava a mínima para aqueles moleques e suas lições batidas de amizade, sinto muito. Se esse livro ou suas cópias genéricas me fossem forçados tanto quanto Iracema o foi, o resultado seria o mesmo - eu lendo um resumo na internet, sem nem pensar em tocar em outros livros.

Por que não deixar o aluno decidir? Depois, para método de avaliação, pede-se um resumo e opinião do livro escolhido por cada um. É uma proposta razoável. Fico pensando como teria sido minha vida se uma oportunidade assim me fosse apresentada. Talvez eu não tivesse lido pela primeira vez por vontade própria aos 19 anos. Talvez, sendo incentivado a escolher, tivesse conhecido Bukowski mais cedo e descoberto o quão variável e desregrada é a literatura.



No fim das contas, tudo termina dependendo do gosto. Enquanto houver gente lendo 50 Tons de Cinza e achando ótimo, livros assim vão continuar povoando as estantes, e a questão é que não há nada de errado com isso. Deixe que povoe. Mas não restrinja a literatura ao seu gosto, nem tente transformar padrões comerciais em regras editoriais. E acima de tudo, não se esqueça que um livro é mais que uma válvula de escape para um fim de semana chuvoso, mas também uma obra de arte, um pedaço da alma do autor e sua visão. Entregar essa arte por completo à uma industria de massa só servirá para monopolizar o setor e fechá-lo ainda mais, dando mais e mais desculpas para as editoras se burocratizarem. Todo mundo quer vender, dinheiro é muito bom, mas os tais padrões que andam sendo passados por aí não passam de prostituição. Foi o que o artista se tornou - e não só de hoje - uma puta das mais baratas, que implora por clientes e pede desculpas por sua condição. 


sábado, 10 de agosto de 2013

Vagabundos Iluminados - Jack Kerouac (1958)

Não consegui achar nenhuma foto da edição nacional da L&PM em boa resolução...Então vai essa, já que eu não tenho câmera pra tirar foto do meu livro.
Ray Smith (alter-ego de Jack Kerouac, nesse livro, já que ele foi impedido pela editora de usar sempre os mesmos nomes para os personagens reais de suas histórias) é um vagabundo poeta que, em suas várias viagens escondido em trens pelos Estados Unidos, encontra o hippie monge budista poeta vagabundo gênio Japhy Ryder (baseado no poeta e ensaísta Gary Snyder, tanto que o autor "erra" o nome do personagem em um momento da história, usando seu nome real). Impressionado pela figura de Japhy, Ray tenta se unir ao mundo dele, cheio de jazz, poesia, álcool e a busca pelo Nirvana. Não seguindo nenhuma forma regular de enredo, pulando de acontecimento em acontecimento, sem seguir qualquer ordem lógica.

Vagabundos Iluminados é o On the Road zen-budista de Jack Kerouac, mostrando uma maior maturidade do autor, ao mesmo tempo que um leve desgosto pela sua própria vida e imperfeições. Ray Smith descreve os bares de jazz que ele frequentava, os saraus poéticos dos quais ele timidamente fazia parte, suas orgias e viagens pelo mundo, assim como seus amigos na época, que formavam a geração hoje conhecida como Beat. Além disso, mostra os conflitos religiosos internos de Kerouac, que estava apaixonado pela visão budista do mundo, mas preso às suas origens católicas e, portanto, enterrado pela culpa.


Nesse livro, é visível o que Kerouac chamava de prosa espontânea, escrita de forma contínua, cheia de adjetivos e sempre flertando com a poesia. Como muitos sabem, o autor escrevia em grandes rolos de papel, pra que não fosse interrompido pelas trocas de páginas que a máquina de escrever exigia, assim sua escrita era como um longo momento de meditação, com pouquíssimas pausas e buscas pelas palavras certas. A palavra certa, na obra de Kerouac, é a palavra que vem, simples como a inspiração inexplicável. Isso também justifica as frases e os parágrafos enormes (muitas vezes mais de uma página), que pode atrapalhar a leitura, mas é tudo uma questão de ritmo, era assim que a mente de Kerouac funcionava e é trabalho do leitor se adaptar ou jogar a toalha, tornando a prosa espontânea uma versão mais poética do fluxo de consciência.

Não é uma leitura rápida e fácil, mas não chega a ser complexa, só fica pesada em certos pontos, mais especificamente no final, quando já se está quase sem fôlego. Alguns críticos dizem que é um livro inapto e sem qualquer entendimento das bases do budismo, mas essa era a ideia. Kerouac não se encaixava entre os beats, e isso se tornou óbvio no fim de sua vida, quando ele se entregou ao conservadorismo político, ao desprezo contra os hippies que o cercavam (seu velho amigo Allen Ginsberg incluso nesse meio) e à bebida. Ele queria encontrar a tal iluminação da qual todos falavam, mas não conseguia. No entanto, ele já não se via entre os católicos de sua família. Ele estava perdido naquela loucura, sem necessariamente entendê-la, mas sem ter para onde ir, e por isso Vagabundos Iluminados é um livro perdido, mas que a todos os momentos busca alguma coisa. Alguma coisa que ele não sabe o que é, mas parece perto. Um livro desesperado, desesperador e difícil de compreender, justamente porque nem ele se compreende.

Nota: 4/5 

domingo, 4 de agosto de 2013

Le Samouraï [O Samurai] - Jean-Pierre Melville (1967)



Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.




"Não há solidão maior que a do samurai, exceto pela do tigre na selva...Talvez..." - Bushido (Livro do Samurai)

É com essa citação que começa O Samurai, clássico de Jean-Pierre Melville. Frase muito apropriada e que define o clima para o resto do filme, que até hoje serve de influência para tantos outros filmes e diretores, como John Woo, Quentin Tarantino, Luc Beson e Jim Jarmusch, este último que chegou a fazer uma adaptação desse filme pelo nome de Ghost Dog. 



Jef Costello (Alain Delon) é um assassino profissional e solitário com a missão de matar o dono de uma casa noturna de Paris. Pela primeira vez, ele comete erros, é visto e levado pela polícia como suspeito e, mesmo mantendo um álibi perfeito graças à Jane Lagrange (Nathalie Delon), os detetives tentam de todas as formas, lícitas ou ilícitas, descobrir se ele é ou não o culpado. Ao mesmo tempo em que ele é perseguido por toda uma investigação, seus empregadores também estão atrás dele e, portanto, se tornam o próximo alvo.


Essa é a sinopse de um filme de ação como outro qualquer, no entanto, em 1967, era muito original e pode-se dizer que foi ele quem criou todos os clichês usados hoje em dia até a exaustão. Criar talvez seja uma expressão muito forte, já que o cinema é uma arte antiga, e muito de O Samurai vem dos velhos filmes noir de Hollywood na década de 40 e 50, mas foi ele quem estilizou o gênero e transformou naquilo que hoje é algo tão influente. O assassino silencioso, contemplativo e mortal, essa figura arquetípica veio da interpretação icônica de Alain Delon, que se tornou um ídolo de seu tempo e até hoje mantém seu respeito na indústria cinematográfica.


Falando de estilo, antes de Melville, o cinema francês passara pela Nouvelle Vague, que havia acabado de passar pelo seu auge, com Jean-Luc Godard, François Truffaut e Jacques Rivette, com seus orçamentos baixos, cenas silenciosas e longas, e cigarros. Foi isso que ele trouxe aos filmes de ação e é por isso que é difícil classificar O Samurai como um filme desse gênero, afinal, pouca coisa acontece nele. Até com relação ao diálogo, a primeira palavra só é dita após uns quinze minutos de filme, e a segunda só acontece dez minutos depois disso. O Samurai tem um clima silencioso, calmo e contemplativo, tal qual o assassino que protagoniza o enredo, contudo em nenhum momento ele fica chato.


A atuação é a parte mais interessante. Jef Costello é um personagem frio e solitário, por isso ele exprime pouquíssimas emoções durante a história, mesmo assim ele não parte nem um pouco do seu carisma. O espectador é levado a se importar com o personagem, mesmo ele não tendo nenhuma qualidade que o redima. O fato é que os heróis (polícia) são tão ruins quanto ele, levando em consideração seus métodos para arranjar um culpado. Chega ao ponto que é preferível o assassino sair impune do que ver aqueles cretinos tendo algum sucesso em suas operações. O que pode ter sido uma crítica social de Melville, mais não quero exagerar na análise.


O Samurai é entretenimento que não perde o valor artístico, nem peca ao valorizar mais o estilo sobre o conteúdo. É equilibrado, bem feito e suficientemente interessante. Meio que uma aula de cinema para o mundo moderno, que tem milhões para gastar em efeitos, mas esquecem o quanto pode ser feito com menos.

Nota: 5/5 (preciso assistir um filme ruim urgentemente, minhas notas estão muito caridosas nessas últimas resenhas)


sábado, 3 de agosto de 2013

Smultronstället [Morangos Silvestres] - Ingmar Bergam (1957)


Primeira aparição da lenda do cinema sueco nesse blog e o segundo filme dele que eu assisto, e já adianto, Ingmar Bergman está se tornando meu cineasta favorito. Morangos Silvestres (Smultronstället) é um dos principais títulos da extensa filmografia desse artista e talvez o mais aclamado, salvo por Sétimo Selo, seu predecessor. 


Dr. Isak Borg (interpretado pelo pai do cinema sueco, Viktor Sjölström, e é notável a grandiosidade de sua pessoa devido às duas tremas em seu nome), velho médico e intelectual, passa os últimos dias de sua vida em total isolamento, exceto por sua empregada, Agda (Jullan Kindahl), com a qual ele divide uma relação platônica quase-conjulgal, e sua nora Marianne Borg (Ingrid Thulin), que o despreza por motivos pessoais. Isak sonha com a morte se aproximando, até que é convidado a receber um prêmio em homenagem aos seus tantos anos como doutor, então ele segue viagem até a cidade em que se realizará a entrega, junto de sua nora e três jovens que ele conhece no caminho, que pretendem ir até a Itália. Nesse trajeto, Isak busca o perdão de Marianne e tem a chance de rever, por meio do sonho, toda a sua infância, juventude, e até o momento do seu julgamento final.


Muito como a obra completa de Ingmar Bergman, Morangos Silvestres é um exame do envelhecimento, da morte, da existência de deus e as implicações de sua possível não existência, e da inutilidade desse debate (deus ou não-deus), exemplificada durante a briga física entre os dois jovens que vão de carona com Isak (um ateu o outro católico), finalizada pela frase dita pela terceira jovem (que vive uma espécie de triângulo amoroso inocente com os dois), Sara (Bibi Anderson): "queria que eles brigassem desse jeito por mim." Além de tratar também da estrutura da família, desde as tradições desprezadas por Bergman, que tratavam a criança como um objeto incapaz de opinar e o pai como um controlador absoluto abaixo apenas da igreja e do rei (nessa ordem).


O filme inteiro é um espetáculo visual, principalmente nas partes de sonho. Intensamente emocional, mas ao mesmo tempo divertido e até engraçado em alguns momentos. A ironia da escrita de Bergman quebram o clima denso da temática (morte) deixando a obra leve de se assistir, deixando de lado aquela fama do cinema arte de ser tedioso. Morangos Silvestres entretém, espanta e faz pensar, ao mesmo tempo que oferecer atuações impecáveis e reais, merecedora de todos os anos de respeito e clamor.

Nota: 5/5