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quarta-feira, 30 de julho de 2014

Asterios Polyp - David Mazzucchelli [2009]


Primeira vez que resenho uma HQ por essas bandas? É, primeira vez, embora eu estivesse certo de que já havia feito essa resenha antes - às vezes penso tanto no que escrever para um post que chego a acreditar que o pensamento tomou forma, infelizmente não acontece. Não sou um leitor assíduo de HQs, na verdade eu tive algumas experiências na infância e na adolescência com esse meio, mas muito superficialmente, nada memorável, por assim dizer. Um belo dia, e sei lá eu o motivo disso, decidi revisitar esse mundo dos quadrinhos e admito que fiquei fascinado. É um setor tão pouco explorado e tão cheio de possibilidades. Entre as artes, creio que o quadrinho está em ascensão, com vários nomes inovando o setor. A que mais me chamou atenção nesse retorno foi Asterios Polyp.


O personagem que dá título ao livro é um arquiteto, professor universitário, que, logo no primeiro quadrinho, é forçado a sair do seu apartamento, que pega fogo após a queda de um raio. Ele, então, pega um ônibus e vai até uma cidade bem distante no interior dos EUA, e lá ele arranja um emprego de mecânico. Partindo daí a narrativa da saltos entre o presente e o passado. É descrita a infância de Asterios, sua juventude, o sucesso acadêmico, o casamento conturbado, tudo ao mesmo tempo em que ele tenta descobrir a si mesmo na nova cidade.


Tem muitos detalhes interessantes para discutir nessa HQ, tanto que eu não sei bem por onde começar - também não ajuda que eu a tenha lido ano passado e só agora tenha decidido falar sobre. O que mais me pareceu interessante no começo foi o ponto de vista da narração. A história é contada pelo irmão gêmeo natimorto de Asterios, que, supõe-se, o acompanhou em espírito o tempo todo. Isso é particularmente interessante devido à personalidade de Asterios. Se o livro fosse em primeira pessoa, seria uma história totalmente narcisista, visto que Asterios é um tanto arrogante, esnobe e metido a intelectual. Se fosse em terceira, não seria pessoal o bastante. O ponto de vista de um irmão morto, além de eu nunca ter visto nada assim antes, também oferece esse meio termo entre o pessoal e o impessoal.


O maior dos temas explorados nessa HQ é a dualidade do ser humano. Durante todo o enredo Asterios fala sobre suas teorias perante razão/emoção, destino/livre arbítrio etc. Sua esposa, por exemplo, é um completo oposto dele. Enquanto ele é um acadêmico tão racional a ponto de ser chato, ela é uma artista plástica passional. Essa dualidade se reflete até nos traços, que por vezes fogem do padrão e assumem uma visão mais psicológica que física nas descrições das imagens - se é que isso faz algum sentido. Exemplo: nas várias brigas que Asterios tem com a esposa, quando ele fala os arredores tomam forma geométrica, como um esboço arquitetônico; quando ela fala, tudo toma forma de traços abstratos.


Até mesmo entre o presente e o passado há uma dualidade clara. No passado ele vivia na cidade grande, seguindo instintos materiais e hedonistas. No presente ele vive no interior, solitário e introspectivo, buscando alguma espiritualidade influenciada pela cultura nativo-americana. As cores também seguem esse padrão. Ora são usadas cores frias (passado, monólogos de Asterios), ora cores quentes (presente, brigas com a esposa).


Asterios Polyp recebeu vários prêmios na época de seu lançamento, incluindo 3 prêmios Eisner e 3 prêmios Harvey, foi muito aclamada pela crítica - incluindo esse humilde crítico que vos fala - e tudo muito merecidamente. Se você gosta de quadrinhos, vá em frente e leia. Se não conhece o meio, dê uma chance, pode quebrar alguns preconceitos.

Nota: 5/5  


terça-feira, 22 de julho de 2014

Lolita - Vladimir Nabokov (1955)

Eu sei, feia pra cacete a foto. Mas não tenho câmera pra ficar tirando foto do meu livro e essa era a única disponível no Pai Google.
Resenhar clássicos é uma coisa que eu sempre quis evitar. Digamos que o motivo principal da resenha é a divulgação, e Nabokov, principalmente em se tratando de Lolita, não precisa ser divulgado. Quando a resenha não tem por objetivo divulgar, mas analisar - território que eu também já trafeguei com minhas resenhas -, sua obra também já foi dissecada por dezenas, centenas, de críticos, todos, possivelmente, muito mais competentes que eu. E isso não serve só para Lolita, mas qualquer outro clássico. Ainda assim, esse blog anda escasso de resenhas literárias justamente por causa dessa minha regra pessoal, então vou abrir uma exceção e escrever sobre Lolita. Mas que isso já sirva de aviso que a resenha se trata de uma breve opinião pessoal, um texto no mínimo vulgar - como diria o próprio Humbert Humbert -, feito sem pretensões analíticas e acadêmicas.

"Lolita, luz de minha vida, fogo de meus lombos. Meu pecado, minha alma. Lolita: a ponta da língua fazendo uma viagem de três passos pelo céu da boca, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro aos dentes. LO.LI.TA”. (O tão famoso e aclamado início.)

A começar pela sinopse - e gostaria de acrescentar ao leitor desse humilde blog que já estou cansado dessa estrutura de resenha: introdução/sinopse/x parágrafos de análise/veredicto; somente sigo com ele por não conhecer método melhor; por mim, largaria as resenhas, mas se o fizesse o blog morreria - talvez conhecida universalmente. Humbert Humbert é um russo de meia-idade, acadêmico, culto, poliglota, mas com uma fraqueza moral - as garotas que ele chama "nymphets" (ninfetas, apesar da minha edição não ter traduzido o termo). Há uma justificativa para esse desvio, quando ele próprio era um menino, se apaixonou por uma garota de 12 anos, mas ela morreu antes que o amor dos dois fosse efetivado (embora ele tenha chegado perto algumas vez). Essa frustração da infância é a causa da sua obsessão adulta, ele argumenta ao falar com o leitor como se falasse a um juiz. E desse ponto de partida, ele segue descrevendo sua história, seu primeiro casamento na Rússia, seus muitos problemas envolvendo psiquiatras, sua vinda aos EUA, seu encontro com Charlotte Haze, cuja filha, Dolores (Lô, Lola, Dolly, Lolita...), é o alvo principal da obra e a obsessão de Humbert. O resto do livro trata das tentativas de Humbert realizar seu romance com Lolita, mas pra saber o que se passa você vai ter que ler o livro.

“Lolita, light of my life, fire of my loins. My sin, my soul. Lo-lee-ta: the tip of the tongue taking a trip of three steps down the palate to tap, at three, on the teeth. Lo. Lee. Ta.” (O início em inglês, para referência.)

A primeira coisa que você precisa saber antes de atacar a leitura de Lolita é que Humbert Humbert é aquilo que chamamos de narrador não confiável, mais que isso, ele é o rei dos narradores não confiáveis. Ao longo da história, não só ele vai fazer uso de toda a espécie de artifício literário para desviar a cabeça do leitor do crime que ele descreve no livro (pedofilia, pra começar), ele vai tentar nos convencer de que suas atitudes não só não são tão graves, como também poderiam até ser vistas como corretas. E para isso ele vai lançar todo o tipo de referência acadêmica obscura, linguagem rebuscada e até mesmo vai mentir diretamente para o leitor, fazendo que, até o fim da obra, este não saiba exatamente no que acreditar. Puta merda, que livro bom.


"Em tardes particularmente tropicais, na pegajosa intimidade da sesta, eu gostava de sentir o frescor da poltrona de couro contra minha nudez maciça enquanto a tinha em meu colo. Lá ficava ela, como qualquer criança, a enfiar o dedo no nariz enquanto lia as seções menos exigentes do jornal, tão indiferente a meu êxtase como se estivesse sentada sobre um objeto qualquer – um sapato, uma boneca, o cabo de uma raquete de tênis – e fosse preguiçosa demais para afastá-lo".


Agora que o leitor dessa resenha não se intimide quando falo de linguagem rebuscada. Ela chega a ficar complicada em certos momentos, mas é proposital. O uso de termos e referências desconhecidas ou estrangeiras (ele, como professor de poesia francesa, usa termos franceses o tempo todo - muitas vezes não traduzidos na edição da Abril, de 1974) é propositalmente confuso, um jeito de diminuir a percepção do leitor e ao mesmo tempo encantá-lo, já que os termos não diminuem o tom poético da narrativa. Esse é o ponto forte de Lolita, o ritmo, o lirismo, a beleza da linguagem tão cuidadosamente esculpida por Nabokov. Lolita não é considerado um dos melhores livros da literatura sem motivo.

"Sou suficientemente orgulhoso de saber alguma coisa para ter a modéstia de admitir que não sei tudo".

É tão perfeito, que chega a ser frustrante. Essa foi a impressão que ele causou entre os críticos da época - quer dizer, depois de todo o choque causado pela pedofilia. Era sem precedentes um russo expatriado que escrevesse tão bem em segunda língua, sem pegar emprestado do estilo de nenhum outro autor escrevendo na época. O único termo para definir Nabokov é gênio, e eu quase decidi aposentar essa minha ideia de escrever ficção ao terminar de ler esse livro - só não aposentei porque sou muito cara de pau.

"Teve, acaso, uma precursora? Sim, teve-a, de fato. Na verdade, bem poderia não ter havido Lolita alguma, não houvesse eu amado, num certo verão, uma certa garotinha inicial. Num principado junto ao mar. Oh, quando? Cerca de tantos anos antes de Lolita ter nascido quantos contava eu naquele verão? Pode-se sempre esperar, de um criminoso, uma prosa de estilo extravagante".

Uma coisa eu tenho que acrescentar de negativo. A minha edição é da Abril, lançada em 1974. A tradução a cargo de Brenno Silveira é excelente. Verdade que ele mantém diversos termos em inglês, julgando que o leitor os reconheceria, e não traduz nem em nota de rodapé os termos franceses - caso você não tenha nenhum conhecimento de inglês ou de francês e tenha essa edição para ler (uma edição comum em sebos e barata, por isso indico), leia com o google tradutor disponível. O maior defeito dessa edição são os erros de revisão, muitas letras trocadas, deixando claro que o revisor dormiu no trabalho. Não sei se isso é coisa da época, se os editores brasileiros eram mais relaxados na década de 70, mas fica feio um livro tão cuidadoso ao mesmo tempo tão errado. Lógico que isso não vai prejudicar a nota, mas tenham ciência disso caso peguem essa edição (que, repito, apesar dos erros, é recomendável pela precisão e fluidez). Se você sabe inglês, leia o original - é o que eu pretendo fazer no futuro próximo.

Nota: 5/5

domingo, 13 de julho de 2014

Ghost Dog: The Way of the Samurai [Ghost Dog] - Jim Jarmusch (1999)


Mais uma aparição do Jim Jarmusch por aqui. Ele está se tornando um dos meus cineastas favoritos. Não digo no que se refere à importância dele para o cinema, mas pelo meu gosto pessoal. E é claro que ele tem sua importância, afinal não dá pra falar da cena independente do cinema americano sem falar do Jarmusch, que foi um dos primeiros a buscar fontes alternativas de financiamento (incluindo o próprio bolso), tudo em busca de manter ao máximo o controle criativo. Tendo visto cinco dos filmes dele, seu estilo está ficando mais claro para mim, principalmente as brincadeiras com os gêneros dos filmes - nesse caso, filmes de assassinos de aluguel/artes marciais.


Tantos anos atrás, um mafioso chamado Louie (John Tormey), salva um jovem negro de um espancamento em um beco de Nova York. Os anos passam, o jovem se tornou um assassino de aluguel indetectável, que atende pelo nome Ghost Dog (Forest Whitaker). Depois de cumprir um serviço para Louie, Ghost Dog se vê perseguido pela máfia intimidada de italianos de Nova York, que desejam queimar os arquivos do assassinato - incluindo o assassino.


Acontece que o enredo desse filme não significa nada. Pois é, os assassinatos, a caça humana, os tiroteios, nada disso é foco no filme, e as cenas de ação que de fato ocorrem vez ou outra são quase que por esbarrão. Um modo do diretor dizer, vocês querem ação, então toma aí um pouco, agora deixem eu voltar pro meu filme. O que realmente interessa é o conceito de câmbio cultural, conceito esse presente em todos os filmes de Jim Jarmusch, e cada vez mais claro nos mais recentes.


Ghost Dog é um estudioso do Hagakure (livro sobre Bushido escrito no século XVIII, época em que o papel do samurai estava em decadência), portanto as cenas são divididas com citações desse livro. Eis o primeiro símbolo de câmbio cultural - um americano do século XX se dedicando ao estudo de uma filosofia e código de honra japoneses, do século XVIII. Após o primeiro assassinato, a filha do chefão da máfia, Louise Vargo (Tricia Vessey), entrega uma cópia de Rashomon (conto clássico da literatura japonesa, formado de vários pontos de vista diferentes sobre um mesmo caso). Esse talvez seja o maior dos símbolos, pois o livro, após ser lido, é passado para uma menina que Ghost Dog conhece na praça, e que com ele desenvolve uma amizade - câmbio cultural, não só entre países, mas entre pessoas.


Então existe o câmbio cultural apenas entre as personagens. Ghost Dog, americano, é contratado pela máfia italiana presente em Nova York - máfia essa em decadência, mais ou menos como o samurai na época do Hagakure. Esses italianos tem dificuldades pra entender a diversidade cultural de Nova York, dando sinais de racismo em algumas cenas. O melhor amigo de Ghost Dog - que tem amigos, apesar da vida reclusa - é um francês, Raymond (Issach de Bankolé), provavelmente - pelo sotaque -, filho de imigrantes africanos. Raymond não fala inglês, Ghost Dog não fala francês; eles não exatamente se entendem - os diálogos dos dois são intencionalmente cômicos -, ainda assim existe uma compreensão além da linguagem.


Aí seguimos para o câmbio cultural entre o filme e o espectador. Muitas das cenas de Ghost Dog foram inspiradas pelo filme Le Samouraï (já resenhado aqui), dirigido por Jean-Pierre Melville, no fim da década de 60. Um dos assassinatos é uma referência direta ao filme A Marca do Assassino (1967), de Seijun Suziki. Esse filme foi o primeiro a contar com uma trilha sonora feita por um rapper (RZA, do Wu-Tang Clan), em ritmo de rap. Até mesmo autorreferência, ao mostrar Nobody, personagem indígena de outro filme do Jarmusch, Homem Morto (1995), recitando sua famosa frase: "Stupid fucking white man." E inúmeras outras mais sutis.


Enfim, o que eu quero dizer com tudo isso, é que existe um enredo em Ghost Dog, e a forma que ele é executado é muito interessante e divertida. Mas é apenas 15% do filme. A intenção de Jarmusch provavelmente foi mostrar as diversas trocas culturais pelas quais nós humanos passamos durante nossas interações. O filme em si é uma grande troca cultural, o jeito que o diretor descobriu de entreter o espectador e ao mesmo tempo o deixar interessado por literatura clássica e cinema japonês, filmes franceses, rap, e tantas outras coisas. Que fique bem claro, sem deixar que o filme se torne uma sequência de referências gratuitas, porque não é. Agora vocês não querem, obviamente, que eu faça um texto inteiro recontando o filme. Assistam, só isso, não só esse filme, mas às referências também. Esse blog, afinal, também não passa de um grande meio de intercâmbio cultural.

Nota: 4/5