Páginas

domingo, 13 de julho de 2014

Ghost Dog: The Way of the Samurai [Ghost Dog] - Jim Jarmusch (1999)


Mais uma aparição do Jim Jarmusch por aqui. Ele está se tornando um dos meus cineastas favoritos. Não digo no que se refere à importância dele para o cinema, mas pelo meu gosto pessoal. E é claro que ele tem sua importância, afinal não dá pra falar da cena independente do cinema americano sem falar do Jarmusch, que foi um dos primeiros a buscar fontes alternativas de financiamento (incluindo o próprio bolso), tudo em busca de manter ao máximo o controle criativo. Tendo visto cinco dos filmes dele, seu estilo está ficando mais claro para mim, principalmente as brincadeiras com os gêneros dos filmes - nesse caso, filmes de assassinos de aluguel/artes marciais.


Tantos anos atrás, um mafioso chamado Louie (John Tormey), salva um jovem negro de um espancamento em um beco de Nova York. Os anos passam, o jovem se tornou um assassino de aluguel indetectável, que atende pelo nome Ghost Dog (Forest Whitaker). Depois de cumprir um serviço para Louie, Ghost Dog se vê perseguido pela máfia intimidada de italianos de Nova York, que desejam queimar os arquivos do assassinato - incluindo o assassino.


Acontece que o enredo desse filme não significa nada. Pois é, os assassinatos, a caça humana, os tiroteios, nada disso é foco no filme, e as cenas de ação que de fato ocorrem vez ou outra são quase que por esbarrão. Um modo do diretor dizer, vocês querem ação, então toma aí um pouco, agora deixem eu voltar pro meu filme. O que realmente interessa é o conceito de câmbio cultural, conceito esse presente em todos os filmes de Jim Jarmusch, e cada vez mais claro nos mais recentes.


Ghost Dog é um estudioso do Hagakure (livro sobre Bushido escrito no século XVIII, época em que o papel do samurai estava em decadência), portanto as cenas são divididas com citações desse livro. Eis o primeiro símbolo de câmbio cultural - um americano do século XX se dedicando ao estudo de uma filosofia e código de honra japoneses, do século XVIII. Após o primeiro assassinato, a filha do chefão da máfia, Louise Vargo (Tricia Vessey), entrega uma cópia de Rashomon (conto clássico da literatura japonesa, formado de vários pontos de vista diferentes sobre um mesmo caso). Esse talvez seja o maior dos símbolos, pois o livro, após ser lido, é passado para uma menina que Ghost Dog conhece na praça, e que com ele desenvolve uma amizade - câmbio cultural, não só entre países, mas entre pessoas.


Então existe o câmbio cultural apenas entre as personagens. Ghost Dog, americano, é contratado pela máfia italiana presente em Nova York - máfia essa em decadência, mais ou menos como o samurai na época do Hagakure. Esses italianos tem dificuldades pra entender a diversidade cultural de Nova York, dando sinais de racismo em algumas cenas. O melhor amigo de Ghost Dog - que tem amigos, apesar da vida reclusa - é um francês, Raymond (Issach de Bankolé), provavelmente - pelo sotaque -, filho de imigrantes africanos. Raymond não fala inglês, Ghost Dog não fala francês; eles não exatamente se entendem - os diálogos dos dois são intencionalmente cômicos -, ainda assim existe uma compreensão além da linguagem.


Aí seguimos para o câmbio cultural entre o filme e o espectador. Muitas das cenas de Ghost Dog foram inspiradas pelo filme Le Samouraï (já resenhado aqui), dirigido por Jean-Pierre Melville, no fim da década de 60. Um dos assassinatos é uma referência direta ao filme A Marca do Assassino (1967), de Seijun Suziki. Esse filme foi o primeiro a contar com uma trilha sonora feita por um rapper (RZA, do Wu-Tang Clan), em ritmo de rap. Até mesmo autorreferência, ao mostrar Nobody, personagem indígena de outro filme do Jarmusch, Homem Morto (1995), recitando sua famosa frase: "Stupid fucking white man." E inúmeras outras mais sutis.


Enfim, o que eu quero dizer com tudo isso, é que existe um enredo em Ghost Dog, e a forma que ele é executado é muito interessante e divertida. Mas é apenas 15% do filme. A intenção de Jarmusch provavelmente foi mostrar as diversas trocas culturais pelas quais nós humanos passamos durante nossas interações. O filme em si é uma grande troca cultural, o jeito que o diretor descobriu de entreter o espectador e ao mesmo tempo o deixar interessado por literatura clássica e cinema japonês, filmes franceses, rap, e tantas outras coisas. Que fique bem claro, sem deixar que o filme se torne uma sequência de referências gratuitas, porque não é. Agora vocês não querem, obviamente, que eu faça um texto inteiro recontando o filme. Assistam, só isso, não só esse filme, mas às referências também. Esse blog, afinal, também não passa de um grande meio de intercâmbio cultural.

Nota: 4/5


Nenhum comentário:

Postar um comentário

caixa do afeto e da hostilidade