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segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Uma Mulher É Uma Mulher [Une Femme Est Une Femme] - Jean-Luc Godard (1961)


Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.





Mais um filme do Godard pra coleção do blog, e mais um com a Anna Karina pra alimentar minhas taras, porque eu me recuso a largar minhas obsessões. Recentemente decidi que vou assistir todos os filmes (somente os longas) desse diretor - porque ele é um gênio, logo vocês verão por que -, tentando formar uma ordem cronológica. Seu primeiro longa foi Acossado, em 1960, que eu já vi, mas não resenhei - talvez o faça quando eu assisti-lo novamente -, o segundo foi esse, no ano seguinte, Une Femme Est Une Femme, conhecido no Brasil como Uma Mulher É Uma Mulher, que é uma tradução surpreendentemente exata. Só uma nota antes de eu começar, esse não é exatamente o segundo filme dele; o segundo foi Le Petit Soldat, de 60, primeira de suas várias colaborações com a esposa, Anna Karina, mas este foi censurado até 63, por causa do tom fortemente político. Sendo assim, resenhei esse primeiro.


Tudo começa com Angela (Anna Karina), dançarina (lê-se: stripper) em um bar de Paris - meio que uma forma cínica de Godard dizer: você pode viver cantando e dançando, mas vai ter que tirar a roupa e enfrentar os olhares de tantos homens. Ela é apaixonada por Émile (Jean-Claude Brialy). Émile é apaixonado por Angela, mas os dois brigam muito e não parecem conseguir se entender. Nesse contexto aparece Alfred (Jean-Paul Belmondo), que ama Angela e está disposto a ceder, dar a ela tudo que ela tanto exige, mas Émile não se importa o suficiente para suprir. Mas Angela não ama Alfred, apesar de admirar os esforços e gostar do cortejo, mas sempre que deixa Émile, sente falta e volta imediatamente para seu pequeno caos pessoal.

Nenhum outro par de olhos fala tanto.
Uma Mulher É Uma Mulher é a comédia musical de Jean-Luc Godard, e, como tudo que ele faz, transgride cada uma das regras do gênero. É um musical, mas a música é inconstante. Toca em determinadas cenas, satirizando as trilhas sonoras de manipulação emocional da década de 60, tocando músicas que nem sempre condizem com o tom da cena. Angela canta e dança, mas nunca ao som de uma banda; quando seus números musicais começam, toda a trilha é interrompida e os sons da cidade/bar/ambiente viram o acompanhamento. Só ela canta e dança, as participações que poderiam lembrar cenas de musical entre os homens são todas estáticas, literalmente, como uma pose.

O que? Um homem tem o direito de chafurdar nas suas obsessões de vez em quando.
Diz se tratar de comédia, mas é trágico, e diz ser trágico também, muito claramente. Tudo nesse filme é dito, não em subtexto, mas em exposição das mais claras. Isso serve de contraste para os relacionamentos modernos como os dos protagonistas, nos quais ninguém fala, ninguém se abre, é tudo conflito e mal-entendido, interrupções e falta de comunicação. Angela, Émile e Alfred recitam seus sentimentos, estilo que Godard iria adotar em vários de seus outros filmes, como Le Mepris e Pierrot Le Fou. É assim que ele amplia sua sátira, não se limitando à Hollywood que ele amava (a de D. W. Griffith, Howard Hawks, Billy Wilder e John Ford) e foi forçado a desprezar, mas a todas as relações humanas. Ele que vivera um casamento bastante conturbado com Anna Karina, principalmente nos últimos anos, incluindo traições e tentativas de suicídio.

Godard seu gênio sortudo e diabólico, eu sou seu fã.
Mas nessa anti-Hollywood bizarra que ele molda, tudo tem que dar certo, obrigatoriamente, mas o clima forçado e desconfortável não deixa a cena. Afinal, Godard quebra as regras, mas focaliza o clichê. Se Hollywood proíbe nudez, ele mostra uma dançarina nua sem nenhum motivo aparente, quase como uma provocação. Mas o final feliz não precisa ir embora por causa disso. Além disso, ele usa uma estrutura de roteiro improvisada, com alguns cortes mais longos em movimentos de câmera interessantes, contrabalançando com jumpcuts abruptos, interrompendo cenas; a música e as luzes, que deviam confortar, ele usa para incomodar o espectador, deixá-lo confuso; uma a uma, ele vai quebrando as regras e mostrando que a arte se mantém, talvez fique até mais poderosa e inovadora.


Uma Mulher É Uma Mulher é um filme muito mais complexo do que parece. De início, causa desconforto, pelo menos em mim, com toda a misoginia descarada que ele joga nas cenas, com Angela sendo uma versão moderna de Eva. Até que Adão começa a mostrar seus defeitos também e o problema se torna o ser humano e sua aparente inaptidão para relacionamentos. Quase um ensaio filosófico/sociológico/afetivo em forma de filme, isso misturado com a sátira nada sutil que quase parece não intencional, é um filme que te faz pensar bastante, ao mesmo tempo em que mantém o espectador entretido. Sim, esse é um filme divertido apesar dos conceitos complicados, principalmente porque o auteur parece estar amando seu trabalho, brincando com a música e destruindo as estruturas. Mesmo não sendo o melhor do Godard, é um ótimo filme da sua primeira fase, que é a que eu melhor conheço por enquanto.

Nota: 4/5


quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Por que Não Dançam [Why Don't You Dance?] - Raymond Carver (1981)


Essa resenha vai ser um pouco diferente. Estou lendo essa coletânea de contos do Raymond Carver, Iniciantes, mas estou levando muito tempo para terminá-la. Acontece que um conto muito bom é capaz de entregar o mesmo peso emocional de um romance para o leitor, o que torna difícil, pelo menos pra mim, uma leitura em sequência contínua de vários contos do mesmo autor. Estou indo ao poucos, uns três por semana, revezando leituras, comecei também a ler os contos completos da Flannery O'Connor e estou em dúvida se começo um romance ou não, talvez espere minha edição de Medo e Delírio Em Las Vegas chegar. Por causa dessa lentidão e da profundidade das histórias curtas, decidi resenhar um conto por vez de Iniciantes, ao invés do livro como um todo. Começando pelo melhor até agora, "Por Que Não Dançam?"



Um jovem casal passeia pela rua, então vê, em frente a uma casa, o que parece ser uma venda de quintal, um monte de objetos, mobília, quase uma casa inteira, espalhados e postos a venda. Os dois, começando a vida de casados, decidem dar uma olhada. Precisam de uma cama, uma poltrona, mas ninguém parece estar tomando conta das coisas. Eles experimentam a cama e um homem de meia-idade, dono de tudo aquilo, aparece e diz para que eles fiquem a vontade. Ele lhes serve de umas bebidas, conversam, e os jovens dançam no quintal, enquanto a vizinhança assiste.

Uma história muito simples contada em um estilo ainda mais simples, bem no estilo iceberg à Hemingway. Não se sabe muito do homem de meia-idade, mas a forma curta do seu diálogo dá a entender uma certa tristeza e um olhar de nostalgia perante os jovens, que por sua vez são despreocupados e aproveitam os preços baixos dos objetos, sem pensar duas vezes, e bebem com esse homem.

Uma interpretação seria que o dono dos objetos acaba de ter sua vida arruinada. Considerando os outros contos do autor, provavelmente divórcio motivado por alcoolismo somado a toda a sequência de fracassos que se chama vida adulta. As ruínas são os objetos que ele vende indiferentemente, sem pensar no que fazer depois.

Os jovens são um reflexo invertido. Estão começando, sem tantos meios financeiros, mas cheios de esperança. E, vale apontar, o rapaz bebe pouco ainda, cai com poucas doses de uísque, claramente por falta do hábito. Hábito que pode ter arruinado a vida do homem que lhes vende os objetos. É o novo se construindo sobre as ruínas, basicamente. A nova esperança surgindo após o fracasso e o fim dos sonhos. Tudo isso em pouquíssimas páginas.

No fim, ainda - e me perdoem, mas acho spoiler frescura -, a forma que a jovem conta para seus amigos sobre o encontro com o homem fracassado, tem um tom de "isso nunca vai acontecer conosco". Esse "conosco", não apenas ela e seu marido recente, mas o casal de amigos também, que vivem a mesma situação. Eles escutam os discos que o homem os cedeu, sentados sobre o sofá que ele os vendeu pelo preço mais baixo possível, e conversam sobre como os dois dançaram no quintal, em frente a toda a vizinhança.

É o conto inicial da coletânea e já estabelece a força de todos os contos que seguem. Tanto que, em comparação, alguns outros acabam decepcionando. Até hoje, essa é uma das histórias mais famosas do Raymond Carver e até foi meio adaptada para o cinema no filme, Pronto Para Recomeçar (Everything Must Go), que eu não vi, nem me interessei em ver e não acho que seja um bom  ponto de referência para a história. Não seja preguiçoso e adquira Iniciantes, mesmo que seja só para essa história, embora eu adiante, não será.

"Por que não dançam?" foi primeiramente publicado na coletânea "Do que falamos quando falamos de amor", primeiro livro de Carver e severamente editado. Iniciantes é a republicação na integra dos contos antes fatiados. No link a seguir, uma amostra de Por que não dançam?, oferecida pela Veja:
http://veja.abril.com.br/livros_mais_vendidos/trechos/iniciantes.html

Nota: 5/5

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Sol Também Se Levanta [The Sun Also Rises] - Ernest Hemingway (1926)



Hoje eu descobri que tem um monte de resenha que eu podia jurar que tinha feito, mas não fiz. Coisa de memória, será? Estou tão velho? Por algum motivo, tinha toda a certeza que, em algum lugar nesse blog, havia um post sobre esse livro. É um dos meus favoritos, se não o próprio, afinal. Vi que não, quando, hoje por volta do meio dia (meu horário de almoço) vi a nova capa que a Bertrand escolheu para o relançamento de O Sol Também se Levanta, que é o primeiro romance publicado por Ernest Hemingway, em 1926. A capa está no fim do post, assim como meu parecer sobre ela. Sabia que a Bertrand estava relançado toda a obra traduzida do Hemingway, mas, tendo visto a capa de O Velho e o Mar, achei que eles iam fazer um bom trabalho - não foi o caso. Esse toureiro aí mais parece o Liberace* versão "El Matador". Sorte que eu já tenho minhas cópias em edição antiga e que só pretendo comprar os livros que ainda não tenho (assim como uns que já tenho) em edição importada, no idioma original. Mas eu deveria estar falando do livro por agora, não?

Era uma vez Jake Barnes. Ele é um jornalista americano, expatriado em Paris após a primeira guerra. (Por que Paris? Naqueles tempos, devido à taxa de câmbio, era uma cidade barata para se viver e era onde todas as pessoas interessantes estavam - James Joyce, T. S. Eliot, Picasso, Salvador Dali, Scott Fitzgerald etc. Hoje a situação é outra, a cidade é cara e pessoas tão interessantes já não existem, não nessas proporções.) Ele passa seus dias com os amigos, alguns deles artistas, todos boêmios, bebendo Pernod nos cafés e deixando a vida passar. Jake ama a duas vezes divorciada - informação relevante na década de 20 - Brett Ashley, mas, depois da guerra, ele já não podia demonstrar esse amor. Brett, portanto, é noiva de Mike Campbell, um homem de negócios totalmente quebrado, que sabe que sua noiva o trai com todo mundo, mas não se importa. Exceto quando Robert Cohn, um judeu, romancista medíocre, mas ótimo boxeador, Mike o despreza - não só Mike - sempre que pode, nem sempre com motivo. Em meio a essa tensão sexual, todos eles decidem viajar para Pamplona para assistir a corrida dos touros e para se embriagarem, logicamente. Lá conhecem o jovem toureiro Pedro Romero, o melhor em seu meio e, conforme descrito por Jake, um verdadeiro artista. Romero também se encanta por Brett e a leva consigo. É esse o clima do romance, uma sequência de conflitos reprimidos e, conforme os capítulos avançam, se aproximando de uma explosão.

O Sol Também se levanta é um ícone da literatura modernista. Mínimo em todos os aspectos, o livro definiu o que viria se tornar o estilo do Hemingway, que o próprio descrevia como Iceberg. A teoria diz que, se um escritor conhece o suficiente de sua própria história, ele não terá o menor problema em esconder a maior parte de seu conteúdo do leitor, e este, por sua vez, se a escrita for de fato sincera, será capaz de sentir todo o conteúdo omitido.

Visto somente pela sua sinopse - ponta do iceberg -, O Sol Também Se Levanta é um livro superficial, sobre gente superficial, gastando suas vidas superficiais em autodestruição. Não é tão simples. Cada personagem representa um fator, e essa discussão já é antiga entre os críticos, na verdade. Jake pode ser o representante da maior "vítima" de seu tempo. Vindo da guerra, sem país e sem esperança, ele é privado até mesmo do amor por culpa de um ferimento, e isso ainda jovem. Todas as coisas que seu governo lhe dissera que viria se eles ganhassem a guerra, bom, não vieram para ele. Ele apenas perdeu e chegou a um ponto em sua vida em que a vitória simplesmente não estava no horizonte. Portanto ele desiste da única forma que realmente vale a pena, vivendo pelo hedonismo. Aproveitando o ambiente e as pessoas ao seu redor sem nunca se envolver com nada, nem consigo mesmo.

Cohn, o desprezado, é o único que não é veterano de guerra, por consequência, o único que ainda mantém algum sinal de idealismo inocente. Ele não é tão esperto, não tem confiança, não tem talento, nem é amado, mas é forte e vive dessa força, apesar de tudo.

Brett representa os valores da época. Representa o caminho para o qual estes pareciam estar se encaminhando e as consequências disso. E ela não é a única que representa isso, Jake, Mike e alguns de seus outros amigos também têm isso dentro deles. Mas Brett é mulher e, novamente, na década de 20, isso era grande coisa. A mulher não é mais a esposa/mãe/enfermeira, e assume uma forma mais "pré-hawksiana" (vindo do tipo de mulher que o diretor Howard Hawks passou a usar em seus filmes, algumas décadas depois desse livro) como mais um dos caras, tão bêbada e promíscua - apesar de eu detestar essa palavra, é a que melhor se encaixa - quanto os homens com quem ela convive.

O minimalismo da prosa é consequência desse estilo de vida, de certa maneira. A recusa pelos enfeites e pelos padrões estéticos do passado, a "desconfiança" perante os adjetivos, a brevidade e a velocidade. Tudo comparável à vida da chamada geração perdida, que só por esse nome já diz tudo. Os personagens desse livro, que é um roman à clef (história real, com nomes trocados e só uma pitada saudável de ficção), são trágicos, consequências de tempos difíceis e sem esperança, gente sem adornos e romantismos e, muito menos, idealismos.

*Liberace - o rei do camarote original -,
 porque eu sei que vocês não têm idade
 pra entender a referência do começo do texto.
Eu também não tenho, mas minha cultura inútil
 extrapola os limites do aceitável.
Me diz se não parece a foto da capa?

Toureiro: o membro perdido do Village People.
Eu juro, vão abrir o túmulo do Hemingway
e achar um novo tiro em seu crânio.


Não importa o quanto eu escreva, contudo, esse texto ainda não passa da superfície. O Sol Também Se Levanta é eterno justamente por isso. Pode ser lido várias vezes e estudado, e eu li somente uma vez e não foi ontem. Sei que perdi muita coisa e que em futuras leituras já prometidas eu voltarei a perder tantas coisas novas que eu só vou achar na terceira leitura, mas que nela vou perder ainda outras para uma quarta leitura. É um dos meus livros favoritos, nunca prometi imparcialidade nesse blog, e por isso eu indico a todos que tenham ficado curiosos com a resenha.

Nota: 5/5