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segunda-feira, 31 de agosto de 2015

O amor de uma boa mulher- Alice Munro



Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.




O livro é composto por oito contos e todos, de uma forma ou de outra, prosam sobre o papel da mulher na sociedade.
O primeiro conto é o que dá título ao livro, "O amor de uma boa mulher". Ele começa com uma informação aparentemente aleatória, a de que um museu preserva uma caixa de instrumentos de optometria, importante porque pertenceu a um médico que se afogou no rio. Logo após, a autora começa a nos dar mais informações. Aparece três garotos que descobrem o carro do optometrista afogado no rio e eles voltam para casa a fim de contarem sobre sua descoberta, então a autora destrincha a vida de cada um deles e nos faz conhecer como eles se relacionam com seus familiares e com as pessoas que os cercam, feito isso, a autora interrompe e parte para outra narração aparentemente sem ligação alguma com a primeira. Uma enfermeira cuida de uma paciente muito doente, que antes de morrer lhe revela um segredo envolvendo a morte do optometrista e assim, quando menos esperamos, as três histórias se entrecruzam e é genial.

Os contos que se seguem "Jacarta", "A ilha de cortes", "Salve o ceifador", "As crianças ficam","Podre de rica", "Antes da mudança" e "O sonho de mamãe", falam sobre traição, relacionamento entre pais e filhos, casamento, aborto e é surpreendente porque as histórias se passam ma década de 50 mas vemos que em alguns aspectos não evoluímos tanto a ponto de não termos nenhuma relação com aquele passado. Este último foi o que mais mexeu comigo. Ele é narrado por um bebê e achei fantástico como Munro construiu uma narrativa que prende o leitor da primeira palavra à última. Jill era casada com um piloto da Força Aérea que morreu na guerra quando ela estava grávida. Ela se viu sem alternativas a não ser passar a morar com a familia de seu marido, que consistia na mãe e as irmãs Ailsa e Iona. Quando a criança nasceu, Jill teve muita dificuldade em cuidar dela porque ela simplesmente não aceitava a mãe, só aceitava que Iona a alimentasse, mudando assim, toda a sua rotina. Quando Iona precisa se ausentar e Jill fica sozinha com seu filho, o bebê não para de chorar um minuto e a mãe não sabe o que fazer, tomada pelo desespero, dá remédio para a criança e ambas caem no sono, só despertando quando Iona volta, mas esta faz um escândalo porque acha que a criança está morta. É, de certo modo, agoniante acompanhar a narrativa, só pude respirar quando cheguei no último ponto final.
São histórias do cotidiano, mas a autora expõe de uma forma que até as coisas mais simples tomam proporções inimagináveis. É preciso ler disposto a se encantar, a se chocar e a se surpreender.

Alice Munro foi a décima terceira mulher a ganhar o Nobel. Ela ganhou em 2013, surpreendo porque foi a primeira vez que um autor só de contos ganhou o prêmio.  

No Brasil, temos seus livros pela Companhia das Letras: "Fugitiva" (2006), "Felicidade demais" (2010), "Vida querida" (2013) e "O amor de uma boa mulher" (2013). E pela Globo livros: "Ódio, amizade, namoro, amor, casamento" (2004).

domingo, 23 de agosto de 2015

Os dez melhores poemas brasileiros: na minha opinião de merda



1 — O primeiro poema que escolhi foi um poema do Affonso Sant’anna. Esse tipo de poesia que tem um tom de exaltação em voz alta sempre me atraiu.


Parem de Jogar Cadáveres na Minha Porta
 

Parem de jogar cadáveres na minha porta
Tenho que sair
   - respirar.
Estou seguindo para os jardins de Allambra
a ouvir o que diz a água daquelas fontes
e acompanhar o desenho  imperturbável dos zeliges.

Não me venham com jornais sangrentos sob os braços.
Parem de roubar meu gado, de invadir meu teto
e de semear pregos  por onde passo.

Estou em Essauíra, na costa do Marrocos
olhando o mar. Ou em Minas
contemplando as montanhas ao redor de Diamantina.

Não me tragam o odorento lixo da estupidez urbana.
Parem de atirar em minha sombra
e abocanhar meu texto.
Estou tornando a Delfos
naquela manhã de neblinas
ouvindo o que me diz o oráculo em surdina.

Ainda agora embarquei para o Palácio Topkapi 
frente ao Bósforo,
quando tentaram me esfaquear na esquina.
Jamais permitirei que quebrem as porcelanas
e roubem a gigantesca esmeralda na real vitrina.

Não me chamem para a reunião de condomínio.
Estou nos  campos da Toscana
onde a gigante mão de Deus penteia os montes
e minha alma se sente pequenina.


Dei de mão comendas e insígnias
não tenho mais que na praça erguer protestos
e distribuir  esmolas não é mais a minha sina.
Acabo de entrar no Pavilhão da Harmonia Preservada
e me liberto
-na Cidade Proibida na China.


 Não adianta o clamor de burocráticos compromissos
nem vossa ira.  Tenho oito anos
saí para  nadar naquele açude atrás dos morros
e vou pescar a minha única e  inesquecível traíra.



Parem de jogar cadáveres na minha porta
na minha mesa
              na minha cama
dificultando
                 que alcance o corpo da mulher que amo.


Afastem de mim  
   o meu 
   o vosso cálice.
Impossível ficar no tempo que me coube
o tempo todo
preciso repousar num campo de tulipas
reaprendendo a ver o que era o mundo
antes de
       como um Sísifo moderno
    desesperado
 julgar
          -que o tinha que carregar.




2 — Esse é um poema do Ivan Junqueira que sempre que leio sinto a sua intensidade controlada (desculpa, não achei outra palavra melhor para me expressar), e todo o seu sentimento simples.

E Se Eu Disser

E se eu disser que te amo - assim, de cara,
sem mais delonga ou tímidos rodeios,
sem nem saber se a confissão te enfara
ou se te apraz o emprego de tais meios?
E se eu disser que sonho com teus seios,
teu ventre, tuas coxas, tua clara
maneira de sorrir, os lábios cheios
da luz que escorre de uma estrela rara?
E se eu disser que à noite não consigo
sequer adormecer porque me agarro
à imagem que de ti em vão persigo?
Pois eis que o digo, amor. E logo esbarro
em tua ausência - essa lâmina exata
que me penetra e fere e sangra e mata.


3 — Essa poesia do Paulo Leminski dificilmente (nunca) fica entre as favoritas dos sites, listas etc. Eu gosto por que ela tem uma estrutura bem feijão com arroz, o poema consegue trazer a sensação daquilo que ele sente na sua essência, nos transporta para essa nostalgia que ele sente.  

O velho Leon e Natália em Coyoacán

desta vez não vai ter neve como em petrogrado aquele dia
o céu vai estar limpo e o sol brilhando
você dormindo e eu sonhando

nem casacos nem cossacos como em petrogrado aquele dia
apenas você nua e eu como nasci
eu dormindo e você sonhando

não vai mais ter multidões gritando como em petrogrado
aquele dia
silêncio nós dois murmúrios azuis
eu e você dormindo e sonhando

nunca mais vai ter um dia como em petrogrado aquele dia
nada como um dia indo atrás do outro vindo
você e eu sonhando e dormindo


4 — O poema do Mário Quintana é direto como um naufrágio de pensamentos. Esse poema foi um dos primeiros que li muito jovem, o resto vocês já sabem. Ou não?

A rua dos Cataventos

Da vez primeira em que me assassinaram,
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha.
Depois, a cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha.

Hoje, dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada.
Arde um toco de vela amarelada,
Como único bem que me ficou.

Vinde! corvos, chacais, ladrões de estrada!
Pois dessa mão avaramente adunca
Não haverão de arrancar a luz sagrada!

Aves da noite! Asas do horror! Voejai!
Que a luz trêmula e triste como um ai,
A luz de um morto não se apaga nunca!


5 — Esse poema é do Jáder de Carvalho, e fala da minha terra. Foi eleito o melhor poema que exalta o Ceará.


Terra Bárbara

Na minha terra,
as estradas são tortuosas e tristes
como o destino de seu povo errante.
Viajor, 
se ardes em sede, 
se acaso a noite te alcançou, 
bate sem susto no primeiro pouso:
— terás água fresca para sua sede,
— rede cheirosa e branca para o teu sono.
   
Na minha terra,
o cangaceiro é leal e valente:
jura que vai matar e mata.
Jura que morre por alguém — e morre.
 
(Brasil, onde mais energia:
na água, que tem num só destino
do teu Salto das Sete Quedas
ou na vida, que tem mil destinos, 
do teu jagunço aventureiro e nômade?)
Ah, eu sou da terra do seringueiro,
— o intruso
que foi surpreender a puberdade da Amazônia.
 
Eu sou da terra onde o homem, seminu, 
planta de sol a sol o algodão para vestir o Brasil.
Eu nasci nos tabuleiros mansos de Quixadá
e fui crescer nos canaviais do Cariri,
entre caboclos belicosos e ágeis.
 
Filho de gleba, fruto em sazão ao sol dos trópicos, 
eu sou o índice do meu povo:
se o homem é bom — eu o respeito.
Se gosta de mim — morro por ele.
Se, porque é forte, entender de humilhar-me, 
— ai, sertão!
Eu viveria o teu drama selvagem,
eu te acordaria ao tropel do meu cavalo errante,
como antes te acordava ao choro da viola...


6 — E foi com Augusto dos Anjos que eu me rendi a poesia.

Psicologia de um Vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.


Profundíssimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.


Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,


Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!


7 — Manoel de Barros foi onde eu descobri que as palavras são livres. Foi difícil escolher algum, mas peguei no meu bolso um... achei esses.


Seis ou Treze Coisas que Aprendi Sozinho

Gravata de urubu não tem cor.
Fincando na sombra um prego ermo, ele nasce.
Luar em cima de casa exorta cachorro.
Em perna de mosca salobra as águas se cristalizam.
Besouros não ocupam asas para andar sobre fezes.
Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
No osso da fala dos loucos têm lírios.


Tem 4 teorias de árvore que eu conheço.
Primeira: que arbusto de monturo agüenta mais formiga.
Segunda: que uma planta de borra produz frutos ardentes.
Terceira: nas plantas que vingam por rachaduras lavra um poder mais lúbrico de antros.
Quarta: que há nas árvores avulsas uma assimilação maior de horizontes.


Uma chuva é íntima
Se o homem a vê de uma parede umedecida de moscas;
Se aparecem besouros nas folhagens;
Se as lagartixas se fixam nos espelhos;
Se as cigarras se perdem de amor pelas árvores;
E o escuro se umedeça em nosso corpo.


Em passar sua vagínula sobre as pobres coisas do chão, a
lesma deixa risquinhos líquidos...
A lesma influi muito em meu desejo de gosmar sobre as
palavras
Neste coito com letras!
Na áspera secura de uma pedra a lesma esfrega-se
Na avidez de deserto que é a vida de uma pedra a lesma
escorre. . .
Ela fode a pedra.
Ela precisa desse deserto para viver.


Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade
nem de desejos reprimidos
nem de proibições na infância,
etc. (essas coisas que acham os
reveladores de arcanos mentais)
Não.
Parede que me seduz é de tijolo, adobe
preposto ao abdomen de uma casa.
Eu tenho um gosto rasteiro de
ir por reentrâncias
baixar em rachaduras de paredes
por frinchas, por gretas - com lascívia de hera.
Sobre o tijolo ser um lábio cego.
Tal um verme que iluminasse.


Seu França não presta pra nada -
Só pra tocar violão.
De beber água no chapéu as formigas já sabem quem ele é.
Não presta pra nada.
Mesmo que dizer:
- Povo que gosta de resto de sopa é mosca.
Disse que precisa de não ser ninguém toda vida.
De ser o nada desenvolvido.
E disse que o artista tem origem nesse ato suicida.


Lugar em que há decadência.
Em que as casas começam a morrer e são habitadas por
morcegos.
Em que os capins lhes entram, aos homens, casas portas
a dentro.
Em que os capins lhes subam pernas acima, seres a
dentro.
Luares encontrarão só pedras mendigos cachorros.
Terrenos sitiados pelo abandono, apropriados à indigência.
Onde os homens terão a força da indigência.
E as ruínas darão frutos


8 — Eu poderia botar vários aqui, mas escolhi só um, que sempre quando me sinto “irracional” eu penso nele e tudo fica mais calmo. Um haicai do Millôr.

Haicai

Nunca se esqueça:
A vida também
Perde a cabeça


9 — As minhas principais influências são daqui do Ceará. Assim não podia faltar um poema que sempre me toca. Na verdade esse poeta é o mais pulsante de todos. Patativa do Assaré.

Menino de Rua



Menino de Rua, garoto indigente
Infanto Carente,
Não sabe onde vai
Menino de Rua, assim maltrapilho
De quem tu és filho
Onde anda o teu pai?

Tu vagas incerto não achas abrigo
Exposto ao perigo
De um drama de horror
É sobre a sarjeta que dormes teu sono,
No grande abandono
Não tens protetor

Meu Deus! Que tristeza! Que vida esta tua
Menino de Rua,
Tu andas em vão
Ninguém te conhece, nem sabe o teu nome
Com frio e com fome
Sem roupa e sem pão

Ao léu do desprezo dormes ao relento
O teu sofrimento
Não posso julgar,
Ninguém te auxilia, ninguém te consola,
Cadê tua escola,
Teus pais teu lar?

Seguindo constante teu duro caminho
Tu vives sozinho
Não és de ninguém
Às vezes pensando na vida que levas
Te ocultas nas trevas
Com medo de alguém

Assim continuas de noite e de dia
Não tens alegria
Não cantas nem ri
No caos de incerteza que o seu mundo encerra
Os grandes da terra
Não zelam por ti
Teus olhos demonstram a dor, a tristeza,
Miséria, pobreza
E cruéis privações
E enquanto estas dores tu vives pensando,
Vão ricos roubando
Milhões e milhões
Garoto eu desejo que em vez deste inferno
Tu tenhas caderno
Também professor
Menino de Rua de ti não me esqueço
E aqui te ofereço
Meu canto de dor


10 — Não poderia faltar nessa lista o ultimo maldito dos poetas cearenses Mário Gomes. Esse poema já foi publicado aqui, mas o que vale é minha opinião, então.


Ação Gigantesca

Beijei a boca da noite
E engoli milhões de estrelas.
Fiquei iluminado.
Bebi toda a água do oceano.
Devorei as florestas.
A Humanidade ajoelhou-se aos meus pés,
Pensando que era a hora do Juízo Final.
Apertei, com as mãos, a terra,
Derretendo-a.
As aves em sua totalidade,
Voaram para o Além.
Os animais caíram do abismo espacial.
Dei uma gargalhada cínica
E fui descansar na primeira nuvem
Que passava naquele dia
Em que o sol me olhava assustadoramente.
Fui dormir o sono da eternidade.
E me acordei mil anos depois,
Por detrás do Universo.  





Agora a pergunta que fica: qual seria a sua cronologia pessoal de poesia brasileira? Para não flodar (se é que isso seja possível de acontecer, mas vai que sejamos atacados por leitores carnívoros... vai saber) os comentários cite aí só o nome do poeta + nome da poesia. Certo, estamos entendidos! Até mais. Ah, não se esqueça que não pode repetir o poeta.

domingo, 9 de agosto de 2015

O incolor Tsukuru Tazaki e seus anos de peregrinação [Shikisai o motanai Tazaki Tsukuru to, kare no junrei no toshi] - Haruki Murakami (2013)


Mais um livro do Murakami sendo resenhado por estas bandas. Ainda tem alguém contando quantos já foram? De qualquer forma, para mim, os livros dele deixaram de ser surpresa. O que não quer dizer que deixaram de me agradar. Até por eu ter passado um tempo afastado desse japonês maluco, esse retorno me fez desenvolver certas teorias sobre o que é que atrai tanto os leitores aos livros dele. Não é como se Murakami fosse um mestre da literatura ou mesmo algo inédito - no Japão ele foi inédito, mas o tipo de literatura que ele iniciou por lá já era lugar comum no resto do mundo. Então por que ele é possivelmente a única celebridade literária, em tempos recentes, que conseguiu unir público e crítica?* Falemos de O incolor Tsukuru Tazaki.

Nos tempos de escola, Tsukuru fazia parte de um grupo de amigos. Era ele e mais quatro. Coincidentemente (ou não), os nomes de cada amigo de Tsukuru representam cores.  Tem o Vermelho, intelectual do grupo, filho de um acadêmico; o Azul, esportista carismático; Preta, rechonchuda extrovertida e engraçada; e Branca, corpo de modelo, beleza incomparável, boa pianista e extremamente tímida. Eles não se separaram uma vez que fosse por todo o período colegial, então veio a formatura e, os amigos Power Rangers ficaram em Nagoia, enquanto Tsukuru foi estudar engenharia em Tóquio. O grupo, ainda assim, seguiu trocando cartas e se reviam sempre que Tsukuru vinha visitar sua família. Até que, numa dessas visitas, quando ele liga para os amigos, nenhum deles o atende. Depois de muito insistir, Azul pede para que ele não ligue mais e avisa que Tsukuru foi expulso do grupo. Motivo? Ele não diz e Tsukuru, que faz o mesmo curso de como ser passivo que todos os outros protagonistas do Muraka frequentaram, não pergunta. Aceita a expulsão e se entrega por meses a um estilo de vida isolado e suicida. Dezesseis anos depois, Tsukuru tem um emprego estável e parece conformado com sua vida. Cabe a Sara, mulher que ele conhece e pela qual Tsukuru se apaixona, convencê-lo a ir rever seus amigos e solucionar esse mistério, já que a dúvida está prejudicando o psicológico e a vida afetiva dele com muito mais força do que ele imagina. Quando a pipa do Tsukuru finalmente não sobe, ele decidi peregrinar em busca de seus amigos. Peregrinação essa que dura alguns dias (os anos de peregrinação são referência a uma composição de Liszt muito citada durante o livro).

Pode parecer que eu disse muito com essa sinopse, mas isso é só o começo.

Fui me curando das minhas encrencas com Murakami depois de ler Hardboiled Wonderland. Foi o primeiro livro dele que, mesmo depois de tendo lido tantos outros, me deu uma sensação excitante de novidade. Talvez por isso eu tenha me decepcionado um pouco com Tsukuru. O surrealismo presente em Hardboiled, aquela impressão de ser atirado em um mundo completamente novo e bizarro, não existe nesse novo romance. Meu jeito de classificá-lo seria Norwegian Wood light. O que não é ruim, mas nunca fica bom. É insípido.

Um pouco da trajetória de Murakami para vocês que podem não estar cientes. (Senta que lá vem história...) Em 1979, quando Murakami publicou seu primeiro romance (Kaze no uta o kike, traduzido pro inglês como Hear the wind sing - Ouça o vento cantar), foi algo novo na literatura japonesa. Experimental, com doses surreais, totalmente diferente da literatura pessoal e autobiográfica na tradição japonesa. E foi por esse lado que Muraka seguiu, vendendo poucos milhares de cópias no Japão, formando uma base sólida de admiradores, mas ao mesmo tempo desprezado pelo público geral e pela crítica. Em 1987, famoso pela loucura em sua obra, ele decidiu dar uma volta de 180° e escrever uma história bem juvenil e realista. Isso virou Norwegian Wood. Surgiu o Murakami celebridade. Sendo um cara reservado, Muraka reprovou o clamor das multidões e fugiu do Japão. Os livros que vieram depois, principalmente Dance dance dance**, foram um retorno às raízes do seu trabalho. Talvez para ver se ele despistava o público. Talvez para apresentar ao novo público a verdadeira essência da sua literatura. Não sei, não conheço o cara. Só sei, pela entrevista que ele deu à Paris Review, que Norwegian Wood foi um livro calculado, com o objetivo de agradar o público japonês, a crítica, e vender milhões. Por mais que goste de Norwegian Wood, acabei me apegando ao lado surreal do autor e acho que é nesse território em que ele se encontra na sua melhor forma. Por isso, ver Tsukuru como um segundo livro realista, mas não tão bom quanto o primeiro.

O lado positivo é que, em certos aspectos, ele evita os clichês típicos do Murakami (isso vai ser visível quando eu mostrar os resultados do Murakami Bingo). É quase como se ele tivesse feito uma decisão consciente de escrever algo diferente dos livros mais recentes dele. Mas ele nunca se afasta tanto assim a ponto de tornar Tsukuru algo destacável na obra dele. Sim, ele não cita um artista de jazz que eu tenha percebido, tampouco cita cultura pop, não descreve orelhas femininas, nenhum gato dá o ar da graça (pasmem!), ninguém desaparece, não surgem passagens secretas e nem dimensões alternativas. Uma mulher (Sara) é, como sempre, a responsável por colocar a história nos trilhos, mas ela é muito menos ativa. Enquanto em livros passados as mulheres costumam pegar a mão dos protagonistas do Murakami e os puxar por toda a história, nesse ela só diz "por que você não faz isso?" e isso basta pra que ele ache e corra atrás do enredo.

Apesar disso, o protagonista é típico Murakami. Completamente passivo e solitário. Considera-se uma pessoa vazia, mas vai se descobrindo aos poucos e percebendo que não é bem assim. Não vive exatamente inserindo em seu meio, apenas se equilibra pelas bordas, sem tentar compreender ou fazer parte das coisas ao seu redor. Normalmente, os protagonistas do Murakami, mesmo compartilhando desses traços, têm um algo a mais que os torna diferentes um do outro. Tsukuru não. Tsukuru Tazaki é como o modelo bruto para esse tipo de personagem, mas sem nada esculpido no bloco. Isso pode até resumir o que esse livro foi pra mim. Típica obra do Murakami, mas sem toda a construção que se espera. Só aquele mesmo bloco genérico que ele usa sempre. Tantas vezes Tsukuru se descreve como uma pessoa vazia, que acabou se refletindo no romance todo.

Outro aspecto geral da obra do Murakami é o final aberto. Ele cria várias situações e mistérios, mas nem sempre os explora até o final. O que eu gosto. Mas não é esse o caso. Aqui os mistérios se concluem. E se concluem rápido demais. Eu diria que, se Tsukuru tivesse tomado a atitude de investigar os motivos de sua expulsão um mês depois do acontecido, ao invés de dezesseis anos, o resultado seria o mesmo. Bem sem graça. Mesmo assim, o final é aberto. O mistério é resolvido, mas o livro termina antes de um encontro que ele viria a ter com a Sara, como se cinco páginas do manuscrito tivessem se perdido. O que não me incomodou de forma alguma, afinal o que seria dito no encontro pode ser deduzido e não faz parte da peregrinação afinal. Não sei, acho que por anos de peregrinação eu esperava mais tempo tentando resolver o mistério principal, e não dezesseis anos de amargura somados a cinco conversas de solução. Minha culpa, talvez, não é bom criar expectativas.

Tendo dito tudo isso, esse livro não é de forma alguma ruim. Só é o mais fraco dentre os livros do Murakami que eu li, a ponto de eu não poder indicar nem pro leitor que já o conhece nem pro leitor que não o conhece. Indico praquele completista teimoso (eu), que, quando se apega a um autor, quer ler absolutamente tudo. Lógico que, nesse meio tempo, o contato com as obras inferiores desse autor faz com que a magia se perca - o que humaniza bastante o artista, e isso é bom. Tsukuru Tazaki é essa obra inferior, que, ao mesmo tempo, não destoa do resto da bibliografia do Murakami (não fica aquela dúvida "foi ele mesmo que escreveu isso).

Isso me leva a outro ponto. Por pior que eu tenha achado o livro, não foi uma leitura desagradável. Acho que o motivo disso foi o momento em que eu o li. Murakami - e essa é outra das minhas teorias sem fundamento - precisa de um clima para ser bem aproveitado. Ele é aquele tipo de autor que te entende. E eu precisava disso quando comecei a leitura. Não estava conseguindo avançar com livro nenhum. Perdia a concentração muito rápido por melhor que a escrita fosse. O único que me tirou disso foi o Murakami. E de certa forma ele sempre conseguiu fazer isso comigo, a ponto que minhas leituras dos livros dele foram se tornando terapêuticas. Creio que isso é porque a prosa do Murakami conseguiu atingir um grau de equilíbrio quase budista. Ele é literatura comercial pra quem não gosta de literatura comercial. Ele é alta literatura pra quem não gosta de alta literatura. No grande espectro literário, com E. L. James no grau mais baixo e James Joyce no grau mais alto, Haruki Murakami se encontra no centro exato, de modo que ele, no seu melhor, é capaz de agradar qualquer um. Por isso eu insisto que não foi uma leitura perdida, só não das mais agradáveis.

O resultado do Murakami Bingo ficou:

Pois é, quase nada.

Nota: 3/5

*Digo único e, com essa afirmação, estou excluindo o Knausgaard, porque o norueguês, ao contrário do Murakami, só fez grande sucesso com a crítica e na Noruega. Sim, ele foi traduzido para dezenas de línguas, mas o número de vendas dos livros dele, por mais fascinantes que sejam, é irrisória em comparação. A série do Knausgaard vendeu, em casa, centenas de milhares de cópias. O mais recente livro do Muraka, no Japão, vendeu um milhão na semana de lançamento. Esse número, no mercado literário contemporâneo, é sem precedentes - para um autor respeitado e premiado.

** Estou lendo agora Dance dance dance, passei da metade e logo vocês vão ter resenha aqui. É tanto um retorno às raízes que serve como um quarto filho bastardo da "trilogia do Rato" (composta pelos dois primeiros livros dele mais Caçando Carneiros). Muito superior a Tsukuro, mas um tanto redundante. Faltou um revisor pra dizer: você pode cortar essas tantas frases repetindo o sentido daquela primeira, basta escolher a melhor delas. De qualquer forma, estou achando que é um bom livro e quase completando todos os quadros do Murakami Bingo, enquanto, com esse livro, não marquei quase nada.