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domingo, 18 de maio de 2014

Machado aos humildes; ou Qual é a da Patrícia Secco?

Não sou eu que falo difícil, vocês que mudaram a língua toda, seus putos.
Uma autora da qual nenhum de nós tinha ouvido falar até ontem se tornou o centro das atenções literárias dessa semana, para servir de preocupação à meia dúzia de desocupados. Estou falando de Patrícia Secco e seu infame projeto que visa facilitar as histórias de O Alienista, de Machado de Assis, e Pata da Gazela, de José de Alencar. E daí?, o que não falta nesse mundo é adaptação de clássicos para o público jovem. Pois é, esse é o problema. Adaptações desse tipo existem aos montes. Ah, mas Patrícia Secco inovou, disse que o público-alvo das suas futuras desfigurações não serão as crianças e os adolescentes, mas os adultos já alfabetizados, porém humildes. Ela fala do pedreiro, da faxineira, do lixeiro, da dona Maria, do seu José, dessa gente simples que sabe, mas não pode ler - afinal as classes média e alta são cheias de leitores. Assim o povo terá acesso tanto financeiro quanto cognitivo aos clássicos. Para Patrícia eu digo, se o problema é o linguajar, já existe dicionário.

O negócio é o seguinte. Financeiramente falando, clássicos são livros extremamente acessíveis. Sejam pelas milhares de edições de bolso facilmente disponíveis e variando entre os 5 e 15 reais (acho difícil que o projeto da dona Secco fique abaixo disso), seja por sebo, onde é possível encontrar edições conservadas, em capa dura pela mesma faixa de preço dos de bolso se não mais barato - minha edição conjunta de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro não passou de 6 reais (notem que foi dois por um, então três contos cada), nem a edição conjunta de Helena e O Alienista, nem uma coleção de contos e crônicas - porque, porra, eu sou humilde também, não posso largar fortunas em livros quando minhas contas já me arrancam o fígado. Quanto ao linguajar, não há nada que possa ser feito. Os leitores precisam entender que, sem linguagem, não resta muito da literatura. Uma palavra não é só um meio de contar história. Uma palavra sozinha carrega muito mais sentido que apenas a sua própria definição, quando escrita por um autor que sabe o que está fazendo; Machado sabia. Isso sem falar do contexto histórico que se perderia por completo com a modernização - "tradução", como alguns estão chamando o ato proposto - do vocabulário.

O que mais me incomoda nessa história toda não é a mudança nas obras desses autores, isso já aconteceu várias vezes. É a falta de necessidade por algo assim que realmente me irrita. E pior, com envolvimento do governo. Se a Patrícia tivesse desenvolvido a ideia, trabalhado na adaptação e apenas mandado para uma editora, seria problema dela. Por que envolver o governo? São tantos os projetos em prol da leitura que poderiam ser lançados, ela cria logo um que envolve a diluição dos melhores escritores do país?

Calma, deixa eu voltar um pouco, essa questão tem outros lados. Eu não serei elitista a ponto de dizer que apenas gente com determinado grau de cultura deve conhecer essas histórias - tecnicamente, é exatamente isso que eu estou dizendo, mas calma que eu logo me explico. Não serei idiota o suficiente para dizer que a solução desse problema é facilitar as histórias. A capacidade de compreensão literária de um indivíduo, como tudo na vida, surge com a prática. Uma pessoa que nunca leu, pode ser um motorista de ônibus ou diretor de multinacional, não será capaz de compreender Machado de Assis, e a linguagem dita rebuscada não será o único obstáculo. Voltando um pouco mais, não existe qualquer relação entre cultura e escolaridade. É muito possível que o motorista de ônibus que eu citei, com acesso a uma boa biblioteca e uma pitada de curiosidade, seja mais culto que o diretor de multinacional que não lê. Com isso, eu quero dizer que não é necessário facilitar Machado de Assis. A pessoa que não lê, em geral, provavelmente não lerá um clássico só porque ele foi facilitado. Existem milhares de livros fáceis, que serviriam de porta de entrada para a literatura mais complexa, sendo lançados todos os anos - não é errado dizer que a grande massa das publicações atuais são compostas de livros acessíveis, alguns desses até são bons. É assim que se forma um leitor, lhe apresentando algo que lhe seja interessante e compreensível. Esse livro trará, além da experiência em si, outro livro, talvez mais complexo - salvo quando o leitor aprendiz é preguiçoso, esse viverá para sempre na terra das leituras confortáveis e nada pode ser feito; a escolha da leitura, assim como o indivíduo leitor, é livre para fazer o que quiser. Voltando ao elitismo, eu quis dizer que apenas pessoas com determinado grau cultural deveriam ler Machado de Assis, mas não que a cultura é algo exclusivo a certas castas, pelo contrário. O que o governo ou a Patrícia Secco deveria desenvolver é uma forma de facilitar o acesso e desenvolvimento da cultura, não o acesso a Machado de Assis.

Foi assim comigo. Já contei essa história antes, mas repito, só comecei a ler depois de velho (19 anos, que não é velho, mas é tarde para começar a ler). Li Bukowski e gostei, nem imaginava que literatura dessas existia. Fui dele para Raymond Carver. De lá fui pra Hemingway. Cheguei em Dostoiévski e, depois, decidi encarar, com sucesso, Machado de Assis. Foi gradual. A ordem não foi bem essa, outras leituras intermediárias tiveram seu papel, mas hoje, não muito tempo depois, me tornei um leitor quase competente, apesar de leigo em teoria literária. Nunca li uma adaptação e nem pretendo. Não sou de pular etapas, se um livro é "muito difícil" para mim em um momento, leio outras coisas até eu conseguir aguentar o tranco. A lista de livros que funcionaram para mim, obviamente, não funcionariam para todo mundo por uma simples questão de gosto. O que é sempre igual, é o processo de avanço.

Tendo dito tudo isso, achei certas reações descabidas. Não sei quem é Patrícia Secco ou o que ela fez (uma porrada de livros infantojuvenis, de acordo com o Google), a primeira vez que ouvi seu nome foi agora durante toda a polêmica. Se ela de fato acredita nessa ideia, acho que deveria ser livre para realizá-la (e eu livre para ignorá-la e chamá-la desnecessária) - Machado de Assis é domínio público afinal de contas, e não é como se a obra original fosse ser substituída pela adaptada nas livrarias. Até acreditaria na boa vontade dela, se o governo não estivesse envolvido no projeto. Agora estou achando que ela quer ganhar dinheiro lançando mais uma coleção de clássicos "água com açúcar/mertiolate que não arde", para dar ao povo e eles fingirem que leem. Tapar o buraco que é a capacidade de leitura básica e de interpretação de texto do brasileiro médio. É uma atitude tipicamente brasileira. É encurtar as escadas ao invés de exercitar as pernas. É oferecer vagas de fácil acesso às universidades para alunos de escola pública ao invés de usar o dinheiro dos impostos para melhorar o ensino público de modo que os alunos sejam capazes de conseguir sozinhos uma vaga na universidade.

Talvez não tenha sido essa a intenção da autora. Talvez ela realmente esteja achando sua ideia genial e incompreendida. É difícil, no entanto, acreditar que não é tudo uma questão de ego. De ela querer ser a mão caridosa a alimentar nosso povo inculto. Pena que ela decidiu mastigar toda a comida antes de servir. E eu não acho, só para por um ponto final nessa questão, que seja elitista ser contrário a esse tipo de projeto. Acredito que seja necessário que o leitor de um clássico, qualquer que seja, ou qualquer outro livro complexo, deve adquirir aos poucos a cultura necessária para compreensão da obra - para que isso se alcance, acredito na divulgação (divulgação, repito, não facilitação) da cultura. Elitista é aquele que acredita que o único meio disponível às ditas "pessoas simples" seja o da simplificação. Que é impossível para aqueles que não têm dinheiro adquirirem conhecimento para compreenderem quaisquer que sejam os livros em sua integra, sem uma desnecessária desfiguração. Esse é o único caminho capaz de resolver a situação, não escondê-lo, embora seja mais complicado e não tão lucrativo - talvez seja esse o problema.  

2 comentários:

  1. "O que o governo ou a Patrícia Secco deveria desenvolver é uma forma de facilitar o acesso e desenvolvimento da cultura, não o acesso a Machado de Assis." Exato.

    A visão da leitura por aqui é de caráter muito impositivo, tem estudante que só vem conhecer um clássico no terceiro ano do ensino médio porque é "leitura obrigatória" (odeio esse termo de todo coração) pra fazer um vestibular. A estrutura do sistema com relação ao estudo/ensino de Literatura tá toda errada.
    Interessante você ter tocado nesse assunto porque o meu projeto de pesquisa pra faculdade é justamente sobre a difusão da Literatura no ensino básico. Que as crianças logo cedo possam perceber o prazer da leitura, e daí crescer com essa paixão por iniciativa própria num processo gradual e que leva tempo. Tudo hoje em dia é muito imediato, muito pra já, e algo que requer tempo e interpretação como a Literatura Clássica é transformado nessas porcarias de adaptações para humildes. O que essa Patrícia não entende é que Literatura não é só enredo.

    No mais, estou aqui torcendo muito para que esse projeto seja um fracasso. "Solução" preguiçosa, com uma justificativa ridícula, para que não se comece sequer a pensar em resolver o verdadeiro problema que é muito mais complexo do que essa senhora consegue compreender.

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  2. Também achei besteira, esse tipo de livro é realmente muito barato.
    Acho que quem gosta e quer ler não precisa desses livros que para "facilitar" a leitura. O legal dos clássicos é isso também, ver a linguagem diferente.

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