Após oito anos sem escrever ficção, o escritor e tradutor, Daniel Pellizzari, lança um novo romance pela coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras. Essa coleção foi responsável por eleger um número de autores e mandá-los para um país estrangeiro, para que escrevessem uma história de amor que se passasse nesse país. Alguma polêmica cercou a escolha desses autores, mas eu prefiro não entrar em detalhes quanto a essa questão, julgarei o livro apenas pelo que ele é, separado das burocracias que o cercam. Pellizzari foi para Dublin e voltou com essa história.
Um estrangeiro de origem não estabelecida chamado Magnus Factor, está passando pelos últimos dias de sua estadia em Dublin, até que, em um local famoso pelos seus milk-shakes, ele encontra uma eslava, troca umas palavras erradas com ela (que não fala bem inglês), e ele decide ficar. Junto com outros moradores da cidade, todos imigrantes, com exceção de Bartholomew - também conhecido como Barry -, irlandês de Cork, ele mantém uma agência de turismo que foca em locais mal-assombrados fictícios. Em prosa polifônica, passeando por vários narradores ligados direta ou indiretamente a narrativa central, formando por meio de extratos das vidas de cada personagem uma história completa que inclui uma menina suicida, traficantes gregos, terroristas universitários e cultos apocalípticos obscuros.
O que logo se percebe em Digam a Satã é a variedade das vozes. Enquanto Magnus segue uma narrativa em primeira pessoal mais tradicional, Barry faz uso da oralidade "traduzida" típica dos skangers - o que inclui vários erros de gramática intencionais -; outros têm narração mais introspectiva, psicológica, com uso de fluxo de consciência; outras partes são narradas em terceira ou segundo pessoa, outra é só diálogo; o que realmente importa é que, embora nem sempre fique claro quem está narrando - pelo menos não no começo, mas após algumas páginas é bem fácil localizar a personagem -, as vozes nunca se confundem. Não me aconteceu em momento algum de ler uma parte narrada por personagem x e eu achar que estava sendo narrada por y porque os estilos seriam muito parecidos, não acontece. A individualidade das vozes é muito bem definida.
Essa variedade de narradores faz com que o leitor "se apegue" mais a uns que a outros, o próprio autor disse ter preferido a voz de Patrícia (a menina suicida) e tido vontade de escrever mais com ela - que ele um dia realize essa vontade. No entanto, essa impressão é apenas pela preferência por uma voz, não porque o personagem é insuficientemente desenvolvido e mais pudesse ser incluso durante as suas cenas. A verdade é que, uma história desse tipo, linear e em terceira pessoa, não teria o mesmo efeito - ficaria chato, simples assim. Uma das maiores riquezas do livro, além da linguagem, é a personalidade rica das personagens. Sem a primeira pessoa, isso se perderia - e parabéns ao Pellizzari por explorar tão bem cada uma de suas criações, não tem um estilo literário escolhido para a narração que não combine com seu respectivo narrador.
Deixando um pouco de lado as personagens para falar do roteiro, ele é bem original, a sinopse não lhe faz justiça. Vi alguns críticos de Skoob falando que o livro é uma loucura sem rumo e sem sentido. Vão por mim, quando um livro desses é criticado pelos membros do Skoob, leiam o livro - tem cada pérola naquele site que Jesus amado. É de fato bem espalhado e, até as últimas páginas, o leitor não vai entender bem como tudo aquilo está acontecendo, mas quando a última peça do quebra-cabeça se encaixa, um enredo surpreendente, divertido - o senso de humor do Pellizzari é um caso a parte - e enciclopédico em algumas partes - devo ter perdido muitas referências por não entender muito de mitologia e nem ter pesquisado sobre alguns nomes que eu desconhecia (ficará para uma releitura) - se forma. Considerando que a história, devido às regras da coleção, teria que se passar em Dublin, foi bom ver que nenhum clichê foi utilizado (catolicismo, alcoolismo - personagens bebem, mas isso não é só para encaixar no estereótipo irlandês - e James Joyce - que não é mencionado em parte alguma).
Pessoas reclamam por falta de autores nacionais contemporâneos de qualidade, aí está um. Ao terminar esse livro, quis conhecer os outros trabalhos dele, infelizmente são poucos e raros. Tem duas coleções de contos esgotadas e sumidas (acho que uma antologia com contos de ambos os livros foi lançada em e-book, pra vocês que conseguem ler e-books), e um romance de 9 (?) anos atrás, chamado Dedo Negro Com Unha, que ainda pode ser achado na Cultura ou em sebos (embora os preços da Estante Virtual sejam abusivos - 99 reais, sério mesmo?). Ele fez várias traduções, por outro lado, muitas que você pode ter lido, indo de Neil Gaiman (Sandman) e David Mazzuchelli (Asterios Polyp, que eu li e logo resenharei), nos quadrinhos, a William S. Burroughs e Jeffrey Eugenides, nos romances. Indicado.
Nota: 5/5
Leia o trecho que a Companhia das Letras disponibilizou, caso meu julgamento te seja insuficiente:
http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13510.pdf
O que logo se percebe em Digam a Satã é a variedade das vozes. Enquanto Magnus segue uma narrativa em primeira pessoal mais tradicional, Barry faz uso da oralidade "traduzida" típica dos skangers - o que inclui vários erros de gramática intencionais -; outros têm narração mais introspectiva, psicológica, com uso de fluxo de consciência; outras partes são narradas em terceira ou segundo pessoa, outra é só diálogo; o que realmente importa é que, embora nem sempre fique claro quem está narrando - pelo menos não no começo, mas após algumas páginas é bem fácil localizar a personagem -, as vozes nunca se confundem. Não me aconteceu em momento algum de ler uma parte narrada por personagem x e eu achar que estava sendo narrada por y porque os estilos seriam muito parecidos, não acontece. A individualidade das vozes é muito bem definida.
Essa variedade de narradores faz com que o leitor "se apegue" mais a uns que a outros, o próprio autor disse ter preferido a voz de Patrícia (a menina suicida) e tido vontade de escrever mais com ela - que ele um dia realize essa vontade. No entanto, essa impressão é apenas pela preferência por uma voz, não porque o personagem é insuficientemente desenvolvido e mais pudesse ser incluso durante as suas cenas. A verdade é que, uma história desse tipo, linear e em terceira pessoa, não teria o mesmo efeito - ficaria chato, simples assim. Uma das maiores riquezas do livro, além da linguagem, é a personalidade rica das personagens. Sem a primeira pessoa, isso se perderia - e parabéns ao Pellizzari por explorar tão bem cada uma de suas criações, não tem um estilo literário escolhido para a narração que não combine com seu respectivo narrador.
Deixando um pouco de lado as personagens para falar do roteiro, ele é bem original, a sinopse não lhe faz justiça. Vi alguns críticos de Skoob falando que o livro é uma loucura sem rumo e sem sentido. Vão por mim, quando um livro desses é criticado pelos membros do Skoob, leiam o livro - tem cada pérola naquele site que Jesus amado. É de fato bem espalhado e, até as últimas páginas, o leitor não vai entender bem como tudo aquilo está acontecendo, mas quando a última peça do quebra-cabeça se encaixa, um enredo surpreendente, divertido - o senso de humor do Pellizzari é um caso a parte - e enciclopédico em algumas partes - devo ter perdido muitas referências por não entender muito de mitologia e nem ter pesquisado sobre alguns nomes que eu desconhecia (ficará para uma releitura) - se forma. Considerando que a história, devido às regras da coleção, teria que se passar em Dublin, foi bom ver que nenhum clichê foi utilizado (catolicismo, alcoolismo - personagens bebem, mas isso não é só para encaixar no estereótipo irlandês - e James Joyce - que não é mencionado em parte alguma).
Pessoas reclamam por falta de autores nacionais contemporâneos de qualidade, aí está um. Ao terminar esse livro, quis conhecer os outros trabalhos dele, infelizmente são poucos e raros. Tem duas coleções de contos esgotadas e sumidas (acho que uma antologia com contos de ambos os livros foi lançada em e-book, pra vocês que conseguem ler e-books), e um romance de 9 (?) anos atrás, chamado Dedo Negro Com Unha, que ainda pode ser achado na Cultura ou em sebos (embora os preços da Estante Virtual sejam abusivos - 99 reais, sério mesmo?). Ele fez várias traduções, por outro lado, muitas que você pode ter lido, indo de Neil Gaiman (Sandman) e David Mazzuchelli (Asterios Polyp, que eu li e logo resenharei), nos quadrinhos, a William S. Burroughs e Jeffrey Eugenides, nos romances. Indicado.
Nota: 5/5
Leia o trecho que a Companhia das Letras disponibilizou, caso meu julgamento te seja insuficiente:
http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13510.pdf
Primeira vez que desço direto pra sua nota, antes de ler a resenha. Já tinha esbarrado nesse livro por aí e algumas opiniões não tinham sido das mais favoráveis, então resolvi primeiro saber a nota que você tinha dado e só então ler seus argumentos.
ResponderExcluirConfesso que fiquei curiosa com essa coleção da Cia das Letras, mas não sei muito bem minha posição diante de livros encomendados e com prazos estipulados. De qualquer maneira ainda pretendo ler e tirar minhas próprias conclusões, principalmente se você gostou tanto e a sua opinião é bem significativa.
A uma primeira vista, o que me chamou atenção nesse livro, foi o título. É tão desafiador.
ResponderExcluirNo entanto, desconhecia a sinopse, até agora.
É verdade, tem umas resenhas no Skoob que só por Deus! As pessoas são sem noção.
Já que você gostou desse livro e indica tão avidamente, se algum dia eu o encontrá-lo em alguma biblioteca, o pegarei.