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sexta-feira, 4 de abril de 2014

Le Mépris [O Desprezo] - Jean-Luc Godard (1963)


Seguindo adiante na lista de filmes do Godard resenhados nesse blog, cheguei n'O Desprezo. Primeiramente vou explicar porque levei um ano para resenhá-lo. Pra quem não sabe, O Desprezo é uma adaptação do romance de Alberto Moravia (Il Disprezzo, 1954), que trata das ruínas do casamento de um roteirista. Queria ler o livro antes de resenhar o filme, só pra saber o quão livre é a adaptação, afinal é de Godard que estamos falando, e o cara não é famoso por seguir padrões. Não consegui, o livro é raro de achar na tradução brasileira, fora de linha desde a idade da pedra. A edição americana ainda é fácil de achar (40 conto na Cultura), mas as traduções americanas não têm bom nome. Quando leio uma obra que não está em português, é porque conheço o idioma original. Mas eu não sei italiano. Não sei o que vai ser, se caço na Estante Virtual ou se encaro em inglês mesmo. A tradução de Secret Rendezvous, do Kobo Abe (futura resenha), nem foi ruim.

Cena 1: e os investidores americanos ficaram satisfeitos.
Como no livro de Moravia, Le Mépris é um drama psicológico e existencial envolvendo a decadência do casamento do roteirista Paul (Michel Piccoli) e Camille Javal (Brigitte Bardot). Tudo começa bem, eles são felizes, então o produtor americano, Jeremy Prokosch (Jack Palance), o contrata para escrever o roteiro de uma adaptação hollywoodiana de A Odisseia, que seria dirigida pela lenda do cinema alemão, Fritz Lang (interpretado pelo próprio, já praticamente cego e aposentado). Jeremy é um homem de negócios, enquanto Paul e Fritz ainda aspiram por algum mérito artístico, normalmente reprimido pelo produtor que prefere uma adaptação menos experimental. Se a sinopse lhe está parecendo metalinguística, caro leitor, saiba que antes da bunda da Brigitte, tem uma cena que filma o set de gravação e os aparelhos enquanto eles filmam o filme, pois é, processe você a informação.

Entre as várias reuniões que seguem entre Paul e Jeremy, Paul flerta com a secretária de Jeremy, Francesca (Giorgia Moll), que mal-tratada no trabalho. E Jeremy decide que vai comer a esposa de Paul - e quem poderia culpá-lo? Então Camille chega a conclusão que despreza Paul.


Esse é um filme complexo. Queria ter lido o livro antes, volto a repetir. Principalmente porque é muito difícil encontrar informações sobre ele por aí, e olha que a obra foi muito bem vista no seu tempo, e, Moravia, um autor muito aclamado. Quis ler para poder ter uma ideia do quão fiel é o filme, mas creio que muito pouco. Na verdade, Godard não estava muito interessado no trabalho original e disse que se tratava de uma leitura boa e vulgar, para uma viagem de trem. Ele a usou, e isso é uma conclusão minha e baseada em porra nenhuma, porque ela falava justamente sobre a situação pessoal de Godard naquele momento de sua vida.


Em 1963, Godard havia acabado de se divorciar de Anna Karina (se você acompanha o blog, sabe das minhas taras por essa atriz), e isso depois de dois anos de relacionamento conturbado, com direito a traições e tentativas de suicídio por ambos os lados. Começou bem, então Anna não quis mais. Começou bem, então Camille não quis mais. Em muitas cenas, Godard fez que Brigitte usasse uma peruca morena e Paul e Camille tem longas discussões de relação, por vezes agressivas e ofensivas, cuidadosamente escritas pelo diretor, talvez para refletirem uma determinada realidade pessoal.

Isso não é tudo. Nessa época, também, Godard estava curioso para saber como seria trabalhar com um filme de alto orçamento, por isso, pela primeira e última vez, usou dinheiro de investidores americanos. Última vez porque ele odiou fazer o filme, mesmo que ele tenha se tornado seu maior sucesso comercial. Paul também foi pego pelo produtor americano e teve sua vida e sua arte arrancada de suas mãos.


Eu ter assistido esse filme há muito tempo está prejudicando essa resenha. São tantas as camadas e temas discutidos. A superficialidade da arte industrializada, o consumismo, a artificialidade do cinema (enfatizada nas cenas filmando os sets de filmagem tanto de Le Mépris quanto dessa adaptação fictícia de A Odisseia, cujos trechos são apresentados ao expectador), a sutil diferença entre ter e possuir e como é fácil deixar de ter ou concluir que nunca se teve.


Escrevendo essa resenha, e talvez por uma parcela de culpa de Bardot, senti saudade desse filme. Quero revê-lo. Por isso o leitor deve concluir que isso é uma indicação. Assista e veja por você mesmo. Mas veja com atenção e se procure nos monólogos a dois que os personagens se interpretam, mas se procurem sem medo de se encontrarem. Le Mépris é uma obra pessoal, mas não indecifrável ou autobiográfica, é um desses filmes que definem a teoria do auteur, e, principalmente, merece ser chamado de clássico hoje em dia.

Nota: 5/5 

Um comentário:

  1. Bardot é mesmo linda.
    Acompanho seu blog e não sei de que tara pela Anna karina você está falando...
    Não tenho tempo nem para respirar ultimamente, mas suas dicas de filme sempre anoto para assistir caso algum dia eu tenha oportunidade.
    Pelo que você falou, talvez seja uma boa ler o livro em inglês mesmo.

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