Alguns enredos são usados com tanta frequência que só de se ouvir falar de certo artifício já faz com que o espectador fique desanimado. Doença é um exemplo. Fazer com que um personagem amável contraia uma doença terminal ou angustiante pode parecer uma forma fácil e barata de emocionar, contudo alguns filmes demonstram que não é o artifício em si que é o problema, mas a forma como ele é usado. Sendo assim, é seguro dizer que Poesia é uma aula de como se usar a doença como parte de um enredo.
Mija (Jeong-hie Yun, lendária atriz sul-coreana da década de 70) é uma senhora de 65 anos, aparentemente feliz, obrigada a criar, no lugar de sua filha, o neto adolescente cretino. Ela vai ao médico para verificar uma dor que ela sente no braço, mas, quando sua memória começa a falhar, o médico se espanta e sugere que ela vá ao hospital, pois pode ser, e é, Alzheimer. Se não bastasse, o diário de uma garota adolescente que acaba de suicidar indica que ela foi estuprada regularmente por 6 colegas de classe, um deles sendo o neto de Mija. A história foca em Mija sendo obrigada a conviver com sua memória sumindo aos poucos, a ideia de que seu neto é estuprador e os pais dos outros 5 adolescente que não querem nada além de salvar a pele de seus filhos. O único consolo que ela encontra para seguir em frente são as aulas de poesia que ela passa a frequentar.
Poesia não gira em torno do Alzheimer, muito menos vitimiza a personagem doente. O filme trata sobre diversos assuntos extremamente complexos e capazes de forçar o espectador a pensar por horas, até mesmo dias - meu caso. Em pouco mais de duas horas, Poesia fala sobre o papel da mulher na sociedade coreana, sobre tecnologia e consumismo, sobre a estrutura familiar na modernidade, sobre o tratamento dos idosos, sobre poesia e como essa forma de arte - assim como a arte em si, disse o diretor em uma entrevista - está condenada, e, obviamente, sobre o envelhecimento e a mortalidade; tudo isso tão sutilmente que nunca soa pretensioso ou esquece e interrompe o rumo da história, que é capaz de sugar o espectador e fazê-lo se emocionar com a vida das pessoas na tela.
Jeong-hie Yun é espetacular e pode ser comparada com a brilhante Emmanulle Riva em Amor, que é outro filme que trata de doença e envelhecimento com perfeição. Ela transmite todo o seu sofrimento disfarçado de alegria e inocência, tornando-se impossível não se identificar e se deixar simpatizar com a personagem e com tudo que ela passa. E a forma que a poesia toma conta de sua mente e faz com que ela mude por completo sua visão de mundo e fique obcecada com a tarefa aparentemente tão simples de escrever um poema é de uma sensibilidade imensa. Além da forma que ela se envolve com a garota vítima de seu neto e sente por ela como se ela própria tivesse sido violada, tudo isso apenas serve de prova para a profundidade que foi posta nessa personagem tão bem escrita e dirigida por Chang-Dong Lee, que começou a carreira como romancista até se render ao cinema.
O filme é simples, sem grandes experimentalismos, mas poético e belo o suficiente para demonstrar a competência e vasta visão do diretor. A cada nova lição de poesia que Mija recebe, uma nova forma de ver o cenário é inserida na filmagem. Uma maçã, que não passaria de um enfeite insignificante, ou uma árvore ou um canteiro de flores, tornam-se peça chave para o desenvolvimento do enredo, tudo graças a poesia, que, nesse filme, significa justamente isso: expansão da percepção, de modo que tudo, independente do que for, é belo, é poesia; isso é potencializado na aula em que os alunos são convidados a falar sobre o momento mais bonito de suas vidas.
Poesia é uma obra surpreendente, complexa em sua simplicidade, que convida a pensar. Merece todas as premiações que recebeu em seu lançamento, e eu pretendo acompanhar de perto o trabalho desse diretor, que foi uma grande e satisfatória descoberta para mim.
Nota: 5/5