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quinta-feira, 1 de janeiro de 2015

A poesia de Paulo Scott

Tem jeito melhor de começar um ano de postagens, após ter feito a promessa de que resenharia coisas que nunca me considerei digno de resenhar, com um texto sobre poesia - que nunca tive coragem de falar sobre, se não por um ponto de vista impessoal e teórico, embora academicamente inapto? Pois assim começarei, falando de um dos poucos poetas contemporâneos que acompanho, o Paulo Scott. Não irei tão longe a ponto de resenhar uma coleção específica, e dar nota a ela, seguindo meu formato usual, não. Vou falar dos dois livros que li dele, tentar descrever algumas das sensações que eles me causaram, e isso pode ser considerado uma indicação automática para vocês, parcela dos meus leitores, que gostam de poesia.


Fui surpreendido pelo lançamento de Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo (Companhia das Letras), em 2014 - já falando como se fosse algo distante, mas a verdade é que quase publiquei o texto tendo escrito "esse ano" -, coleção mais recente do Paulo Scott. Demorei um pouco para comprar, porque, talvez por ser poesia, nem todas as livrarias o tinham disponível. Mesmo assim consegui comprar e ler o livro antes do fim do ano passado e, devo dizer, foi uma das minhas leituras favoritas no ano (mesmo que eu tenha terminado a dita leitura ontem, por volta das sete da noite).

Não foi a primeira coleção do Paulo Scott que eu li. Já havia lido também a primeira, creio eu que em 2014 também, mas logo no começo, chamada A timidez do monstro (Objetiva). Por isso, a primeira coisa que me ocorreu durante a leitura de Mesmo sem dinheiro foi a diferença no estilo. Antes que eu me estenda, vou avisar que o livro foi dividido em duas partes. A primeira, chamada Livro Um, é onde a diferença mais notável está. O Livro Dois, embora carregue alguns dos aspectos do Livro Um que diferenciam essa coleção da primeira, tem uma linguagem muito mais aproximada.


 Diferentemente de A timidez do monstro, o Livro Um de Mesmo sem dinheiro tem em cada poema uma narrativa, levemente abstrata, mas não muito. Paulo Scott desenvolve personagens em seus poemas, cenários que podem ser reais ou fictícios, sempre breves e precisos que, por trás da linguagem poética, contam uma história muito maior. E eis o motivo de eu sempre ter evitado resenhar livros de poesia. Os parágrafos a seguir desse texto estarão cheios de suposições sobre as intenções do autor que eu, nunca tendo falado com ele, não teria como saber. A questão é que, e isso é uma opinião pessoal minha, um poema, como qualquer outra obra de arte, quando tornado público deixa de ser do autor. Na prática, lógico que o texto segue pertencendo ao autor, estou falando do significado dele. Um leitor nunca lê a poesia do poeta, ele lê sua própria poesia nas palavras do poeta. Ele vai entrar no texto e investir no texto os seus próprios sentimentos, mesmo que isso não faça tanto sentido. Por isso, tudo que virá a seguir não pode de forma alguma ser considerado correto, objetivo ou imutável. O leitor pode, deve, ter impressões diferentes, tão diferentes quanto as reais intenções, se existentes, do poeta.

Enquanto em A timidez do monstro a linguagem parece ser propositalmente hermética, formada de associações líricas entre as palavras, mais focadas em som que em sentido, o Livro Um de Mesmo sem dinheiro segue um caminho direto, quase doméstico.

Fidelidade

ficava clareando os olhos gaúchos no espelho
tentando aprender o modo certo de falar na tevê

ficava irritada, meio cega e míope, seu nome paraíso
e não sabia se o próprio choro era choro de verdade

fizeram-lhe óculos para esse tipo de exame final
média seis e cuecas na altura de joelho na testa

lentes roxas em grau sumô natural luzes apagadas
lentes autolubrificantes espessura goles e goles de festa (p. 20, Mesmo sem dinheiro comprei um esqueite novo)

Os personagens são esposas, maridos, filhos, gente encarando a idade adulta com insegurança, as crises do não estar sendo tão produtivo quanto se cria que seria quando jovem. A ansiedade está presente em ambas as coleções, mas em Mesmo sem dinheiro ela parece ter mais foco, ou pelo menos um foco diferente. Digamos que a mente por trás da poesia seja a mesma, mas o filtro poético pelo qual as palavras passaram para se tornarem o que vieram a ser é outro.

de tarde na vila madalena

vago sol
que cai
e feta
sobre
o lombo
de livros (p. 31, A timidez do monstro)

Um detalhe que ajuda a definir o clima de A timidez do monstro, não presente na nova coleção, é as ilustrações. Feitas por Guilherme Pilla, elas representam essa violência abstrata e não direcionada do primeiro livro muito bem, ajudam a complementá-lo, como as ilustrações devem ajudar. Mesmo sem esqueite, no quesito violência, assume um tom mais passivo, talvez por isso mais adulto.

Primeira temporada completa

1.
descer de petrópolis com os olhos fechados
contando até dezoito antes de abri-los de novo
enquanto a companheira dorme na garupa
da vespa, achando que são frequência, papel

2.
então me liga quando chegar na beira da praia
e me conta como é voar com a infelicidade
enfiada no rabo - curso do seja homem
e repita que nunca mais torceu pelo touro

3.
chuva de pólen sobre cativeiros de peixes
assim ficaram teus olhos depois que abri os meus
casca de sexta-feira, carpas nadando em antibiótico
(show de exorcismo e) pudim de resfenol

4.
pedindo desesperada para eu frear - m. brando
em sessão da tarde - você me encara, determinada,
pergunta se o sol nasce ali mesmo
se a gente tipo é casado ou tipo vai só namorar (p. 42 - Mesmo sem esqueite...)

O Livro Dois já relembra o estilo de A timidez do monstro, não sei se há algo de proposital nisso (não sei se qualquer coisa que disse até agora fez muito sentido). As rimas e aliterações, embora ainda livres, estão mais presentes, e as palavras voltam a favorecer o som que o sentido.

olho que é grade que ouve
ovo que é linha no poema

sem atritar a surdez do ovo
e de novo que é filme de foto

o couro mais forte do corpo
pele global nata lacrada ovo

o olho é um ovo que engole
um ovo que nasce geminado

portanto o olhar não é só (p. 68 - Mesmo sem esqueite...)

Não é só poesia que o Paulo Scott publicou, mas foram só as poesias que eu li - não por algum motivo específico,  na verdade agora quero partir para a prosa. Além desses dois livros dos quais falo, ele publicou Voláteis (romance, pela Objetiva/Alfaguara), Habitante Irreal (seu romance mais conhecido, pela Objetiva/Alfaguara), Ithaca Road (romance da coleção Amores Expressos, pela Companhia das Letras) e Ainda Orangutangos (contos, pela Record). Houve ainda mais uma coleção de poesias, Senhor Escuridão, pela Record, que ainda não li. Por ter lido apenas o primeiro e o último livro dele, a impressão maior que tive é que, entre eles, houve uma grande mudança no estilo, e eu não acompanhei a transformação (se essa de fato aconteceu) por não ter lido os outros livros. Pretendo lê-los o quanto antes.

cavocando o cano da vocação

as formigas estão felizes
capinam as gotas açucaradas
sobre a pia de granito verde
envolvo-as num círculo de sabão
(é forte odor de maçã)
Avelina abre a porta e me surpreende
meu dorso de maracanã eriça
e perpassa em correntes
uma brisa esquecida
uma solidão de paraíso (p. 78 - A timidez do monstro)

No começo da resenha disse que ele é um dos poucos poetas contemporâneos que acompanho, mas já recolhi alguns nomes e pretendo mudar isso esse ano. Tem coisas interessantes acontecendo por aí hoje em dia e eu quero saber o que são.

Hoje sem nota. O livro está aí, indicado para quem queira ler. E abaixo tem um link para o primeiro poema de Mesmo sem dinheiro, disponibilizado pela Companhia das Letras. Divirtam-se crianças.
 
http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13760.pdf

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