"É preciso esclarecer que, na primeira vez em que a vi, ela estava sentada à mesa no Café e eu não podia observá-la de corpo inteiro, embora concluísse, por seu rosto de traços finos e delicados - e pelos seios pouco salientes, assim à primeira vista, dentro de uma blusa graciosa -, que era uma mulher magra, com o corpo bem-proporcionado. Mas foi principalmente o rosto que me atraiu, os cabelos claros, encaracolados, o que me fez pensar, talvez ajudado por duas doses de conhaque, numa princesa russa." (p. 9 - primeira frase do livro, pra ser exato, já deixando claro o tom da história.)
Para o crítico de teatro Antônio Martins, não haveria motivo para que ele visse Inês, a moça que ele observava no Café, novamente, apesar daquela atração repentina que ele sentiu. No entanto eles voltam a se esbarrar no metrô e ele descobre que ela é manca. Aos poucos ele se vê obcecado por ela e formam um relacionamento afetivo próximo à perversão (como é tão comum nas histórias do Sérgio - depois de cinco livros lidos, posso chamar de Sérgio?). Ele tenta, com trabalho e outras mulheres, deixar Inês de lado, mas segue a encontrando, mesmo quando não a procura, por coincidência, assim ele acredita. O crime, em si, pode ter sido parte de um plano do artista plástico Vitório Brancatti, de quem Inês serve de modelo. Assim Antônio entende ou quer que o leitor entenda.
Eu devo ser, entre os críticos amadores da internet, o maior divulgador do Sérgio Sant'anna. Três resenhas feitas (contando com essa), duas por fazer, e estou lendo o livro mais recente dele, Homem-Mulher, para poder escrever a sexta. Acho que ele é meu favorito entre os nacionais, ao menos está chegando lá aos poucos. Esse foi o primeiro romance propriamente dito que eu li dele. Antes disso só dezenas de contos, três novelas e uma peça de teatro, tudo da mais alta qualidade. Não sabia o que esperar dele nesse formato, mas, felizmente, não tive surpresas. É tão bom quanto todo o resto.
"A mostra justificava o seu nome. As obras, quase todas, divergiam - e não apenas pelo seu suporte - não só dos melhores valores e tendências contemporâneos, apesar de ser difícil detectar tendências ou valores nítidos neste final de século, ao contrário de seu princípio, como divergiam muito entre si. Fiquei pensando se os expositores não haveriam se unido sob aquele rótulo apenas por terem sido rejeitados pelo mercado, galerias e salões." (pp. 52 e 53)
Agora chega de puxar saco e vamos ao que interessa. O que mais impressiona num livro do Sérgio Sant'anna é a variação da linguagem. Ela fica mais notável nas coletâneas de contos, afinal o número de textos é maior, mas mesmo aqui isso dá seu sinal. Primeiro que o Sérgio domina o lado ator que faz parte do ofício de escritor. Quem escreveu esse livro foi Antônio Martins, o crítico fictício, ninguém mais ninguém menos. Isso se reflete na linguagem formal, próxima ao erudito, mas não fugindo do popular. Está incluso também nas críticas que se misturam a narrativa. Afinal, não é porque ele faz parte de um enredo de romance que ele não tem que trabalhar. Está na força analítica da observação.
É um romance curto, 132 páginas divididas em duas partes. Em tão pouco, ele mistura memória, mistério, ensaio e crítica cultural e artística. Tudo no ritmo ideal, sem alongamentos nem correrias. Final abrupto, mas é isso que surpreende, pois não deixa nada sem resposta - talvez a verdade do caso seja ambígua, mas esse era o objetivo, vocês entenderam o que eu quis dizer com "sem resposta", aquela sensação de "e..." que às vezes um livro deixa no leitor.
"Não houve gritos ou gestos para repelir-me, é importantíssimo frisar isso diante de ocorrências ulteriores. E se Inês, até então numa passividade quase desmaiada mas que eu podia tomar como receptiva por certos sinais em seu corpo, murmurou repetidamente nos últimos momentos: 'Oh, não; oh, não', não deveria isso ser interpretado como o seu contrário? Como um 'sim' de entrega dentro de um código amoroso?..." (p. 104)
A história tem uma carga erótica forte (o que é meio redundante de se anunciar em se tratando de um livro do Sérgio Sant'anna), eruditismo não tanto no linguajar (só em alguns momentos que podem soar mais pomposos) mas nas inúmeras referências artísticas, e consegue manter seu mistério até o fim. O título, Um crime delicado, não poderia ser mais exato. Tão delicado que quase passa despercebido e, mesmo depois do fim, não se sabe se foi crime ou não. Fica a cargo do leitor saber decidir se Antônio é vítima ou um criminoso carismático e verborrágico à Humbert Humbert (sem a pedofilia, só pra que fique claro). Um crime delicado realiza perfeitamente aquilo a que se propõe.
Nota: 5/5
Depois de cinco livros lidos você pode chamar o autor do que quiser!
ResponderExcluirDá para perceber que você é um grande entendedor da obra do Sérgio San'anna.
Não sei se gosto muito de finais abruptos, gosto de finais que façam sentido e não me deixem na dúvida do que realmente aconteceu.