Páginas

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Espíritos de Gelo - Raphael Draccon (2011)



Truman Capote costumava separar autores entre os que escreviam e os que digitavam - ou seria datilografavam? -, pra separar aqueles que se esforçavam pra desenvolver um estilo e moldar frases cuidadosamente e aqueles que só batiam palavras em sequência pra de alguma maneira inventar uma história. Verdade que, quando disse isso, Capote se referia a Jack Kerouac, o que foi injusto, visto que Kerouac, embora usasse vírgulas e adjetivos excessivamente, tinha uma poética e ritmo próprios. Em Espíritos de Gelo, Raphael Draccon - um dos autores da minha lista de leituras em busca de compreender a literatura brasileira contemporânea -, não escreve, digita; creio eu que com os pés.

Começa com o protagonista sem nome, mas que apelidarei de Narciso, acorrentado em uma sala suja, escura e misteriosa. Ele está sendo interrogado por um baixinho vestido com uma camiseta do Black Sabbath - sem nenhum motivo aparente, só uma das milhões de referências gratuitas do livro - que comanda dois torturadores vestidos com trajes sadomasoquistas - sem motivo também, só mais uma referência, dessa vez ao Gimp, de Pulp Fiction, provavelmente.  Eles encontram Narciso em uma banheira de gelo, com um rasgo no abdômen, e o levam pra ser torturado porque eles precisavam saber o motivo de ele estar naquela situação. O problema é que ele não se lembra. Os três patetas decidem que a amnésia foi causada por trauma e só outro trauma maior pode reativar essas memórias tão importantes. Gostaria, então, de dramatizar aqui como o baixinho descobre a primeira informação:

Baixinho: acho que você não gosta de mulher.
Narciso: gosto sim!
B: não sei, tô achando que tu é viado.
N: não sou.
B: é sim
N: sou não!
B: é sim.
N: sou nããão!!!
B: é sim.
N: sou não! Eu tenho namorada e o nome dela é Mariana e ela é mais bonita que todas as mulheres que você já conheceu, tá?, seu arrombado!!!

Tá certo, eu inventei esse diálogo - exceto pelo arrombado -, mas a ideia é a mesma. E o pior, o protagonista tem 27 anos - eu acho, minhas memórias desse livro estão sumindo iguais as de Narciso, deve ter sido trauma da leitura.

Falando em Narciso, vamos tentar definir esse cara. Ele teve um pai distante, mas isso não abalou sua criação, muito embora o fato dele ter tocado umas na adolescência ouvindo os gemidos das mulheres com quem seu pai transava seja um caso freudiano - essa possibilidade de distúrbio nunca é aprofundada pelo autor, mas por si só já é uma premissa melhor que a do livro.  Conforme ele foi crescendo, foi se tornando um playboy padrão, indo pra academia, gastando dinheiro do papai, fodendo todas as mulheres do mundo etc. Aí o pai morre, os negócios não especificados do pai - sabe como é esse mundo dos negócios genérico feito exclusivamente pra criar personagens ricos sem nunca ter que explicar a fonte da riqueza - são passados pra ele, mas ele é moleque e não consegue aguentar a pressão. Até aí tá mais pra uma premonição do futuro do Thor Batista, menos o atropelamento/assassinato.

Se você ler o livro, vai ver que Narciso é possessivo, por vezes machista, infantil, sem graça - apesar de tentar e muito ser engraçado, voltarei nesse ponto mais tarde - e um babaca completo; o pior disso tudo, não acho que intencionalmente. Talvez o protagonista tenha sido moldado pra incomodar um pouco, mas acho difícil que o objetivo fosse "intragavelmente desagradável", sem falar que o apelido que dei a ele não foi sem motivo. Apesar de se amar, no entanto, é extremamente inseguro, seja ficando irritadinho sempre que insinuam que ele é gay ou deixando bem claro que não reparou nos homens ao descrever determinada cena, seja quanto a sua relação com Mariana.

Raphael Draccon simplesmente não consegue criar uma voz pro seu personagem que seja condizente com seu estilo de vida. O narrador é ocupado, vive em balada, academia - se gaba da sua própria aparência mais vezes do que recomendado pra um livro em primeira pessoa -, parece se achar um cara genial e vivido, embora nunca demonstre nada de genial em suas ações ou falas. Ele tem um conhecimento enciclopédico de referências nerds, mesmo que, em determinados momentos, tire sarro desses mesmos nerds. Fica claro que o narrador, por mais que seja em primeira pessoa, é apenas o Draccon falando pelo personagem. Narciso não só não tem nome como também não tem voz própria, pobre Narciso.

O que me leva a outro problema, o número obsceno de referências à cultura pop. Contei umas três por página, todas extremamente variadas pra saírem de uma mente não-nerd, indo de X-Men a Crepuscúlo, passando por Supernatural, Senhor dos Anéis, e essas são só as diretas. O que torna tudo muito repetitivo já que pra 90% das descrições ele usa o comparativo "como" e geralmente a coisa descrita é comparada a uma referência pop.

Existe uma função pra referência à cultura pop na literatura e em todas as outras formas de arte. A mais comum é aprofundar um personagem, dá-lo gostos, preferências, conhecimento de mundo. Outras vezes pode servir pra auxiliar na criação de mundo, desenvolver uma atmosfera bacana. Espíritos de Gelo não as usa em nenhuma dessas maneiras. A referência à cultura pop nesse livro é pra, pura e simplesmente, forçar uma relação com o leitor. O desavisado lendo o livro esbarra por uma referência que ele conhece ou gosta e, pronto, está feita a identificação. Como o narrador desse livro atira pra todos os lados, obviamente acerta alguém, mas nunca de maneira profunda. Esse é outro problema do uso excessivo de um artifício, com o passar das páginas e toda a repetição, fica batido, previsível e perde a força, até mesmo de identificação.

Esse não é o único artificio do qual Draccon, como qualquer escritor amador, abusa. Ele também gosta de separar frases em parágrafos de sentença única pra enfatizar certas coisas. O problema é que ele nunca enfatiza nada de relevante.

Nunca.

Mesmo.

Desse jeito, assim, sem exagero.

Muitas vezes por capítulo.

E.

Os.

Capítulos.

São curtos.

P.

R.

A.

Caralho.

Irrita, não é? Eu sei, também quis jogar a porra do livro pela janela antes de chegar na página 60. Mas eu gastei dinheiro com ele. Pouco, se o livro custasse muito mais de 10 contos eu não comprava. Se pelo menos fosse só isso, mas não, a revisão também é abaixo da média pra uma editora de porte respeitável como a Leya. Erros de vírgula, concordância, ortografia. Todos perfeitamente evitáveis, se o livro tivesse sido lido mais de uma vez pelo editor. Isso sem falar das coisas que não estão erradas, mas estão mal-escritas. Muitas vezes me vi perguntando que porra o editor estava fumando pra deixar certos trechos passarem.

Admito que a coisa começa a ficar interessante quando a história do templo do sexo tântrico começa a se desenvolver. Muitos conceitos poderiam ter sido trabalhados ali, desde o ciume até a relação entre espiritualidade e repressão sexual. Mas o narrador é um idiota, então nada disso é falado e todo o potencial vai pela descarga, sendo somente arranhado na superfície, e o sexo é narrado numa prosa digna de E. L. James; só várias releituras de Trópico de Câncer pra me exorcizar dessa desgraça.

Não consegui superar a estupidez de Narciso. Ele não só atrapalha o andamento da história com seu vocabulário simplório (cheio de "maldito"s e "desgraçado"s, como um filme dublado; leva umas 40 páginas pro autor perceber que ele pode escrever um palavrão sem problema), ele atrapalha toda atmosfera que o livro poderia querer passar ao leitor. Até agora não sei se o objetivo era fazer uma história de terror, porque não dá medo, principalmente quando o narrador passa a maior parte das cenas de tortura tirando sarro dos torturadores ou fazendo referências nerds durante seu próprio sofrimento; se era comédia, porque, a não ser que sua idade mental seja de 13 anos, não tem graça; se era suspense, porque é previsível.

Não vou dar spoilers. Eu queria. Faria de tudo pra impedir as pessoas de lerem esse livro, inclusive estragar o final. Mas parte do meu código de ética de crítico exige que eu sempre deixe uma brecha pra que o leitor procure o livro e tome suas próprias conclusões, afinal, por mais objetivo que eu ache que estou sendo, o livro não foi feito pra mim, não sou o público-alvo. Talvez você seja, talvez você me ache um filho da puta por estar escrevendo tudo isso, seu direito. Eu estou pouco me fodendo pra você. Mas a primeira parte do final (o culpado pelo caso da banheira), eu descobri logo no início. Só não previ o twist à M. Night Shyamalan que ele tirou do cu nas últimas páginas, mas foi uma merda, então não fazia questão nenhuma de ter adivinhado mesmo.

Espíritos de Gelo é um livro amador. Se eu não tivesse feito o dever de casa e pesquisado um pouco sobre o autor antes de fazer a resenha, teria achado que era seu primeiro livro. Na verdade é o quarto, o que só piora as coisas. Faria mais sentido se o livro fosse um primeiro rascunho escrito por um moleque de 15 anos que acabou de ler Stephen King e acreditou que também podia escrever um romance. Pra finalizar, Draccon, não é porque você escreve pra pré-adolescentes, que você precisa escrever como um. Tome nota disso e parta pro seu próximo livro, já que, se Paulo Coelho não parou, parar você não vai.

Nota: 1/5 - pra fazer caridade e porque eu gostei de ler o Narciso sendo torturado, achei até pouco.

Aviso: tendo lido um livro dessa tão talentosa nova onda de escritores comerciais do Brasil, é muito possível que eu escreva mais um texto sobre o conflito entre a alta literatura e os best-sellers, dessa vez falando internacionalmente.

4 comentários:

  1. Uau! Crítica mais do que bem escrita. Você apresentou argumentos válidos para manisfestar sua insatisfação em relação ao livro. É disso que eu gosto: gente que sabe argumentar! Detesto quando as pessoas criticam sem ter o mínimo de embasamento. Felizmente, não é o seu caso.
    Não tive a oportunidade de ler nenhum livro do Draccon e além do mais, o gênero que ele escreve, não faz o meu tipo.
    Ficou evidente que esse livro foi uma grande decepção e que esse foi o primeiro contato que você teve com a escrita do autor. Dito isso, fica a pergunta: será que se você ler os anteriores, sua visão vai mudar?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Obrigado. Infelizmente, "resenhas" de repetição de sinopse são o que mais se vê nesses blogs, até mesmo os mais visitados - ironicamente, são esses que avaliam bem os livros do Draccon.

      Respondendo sua pergunta, é perfeitamente possível que os livros anteriores ou os posteriores sejam melhores que esse, mas essa primeira má impressão me tira toda a vontade de experimentar. Li algumas resenhas de todos os livros dele - até o momento, cinco. As negativas apontam coisas muito parecidas com os problemas de Espírito de Gelo. As positivas não têm poder de persuasão, em sua maioria - pelo menos não para um leitor que já teve uma experiência negativa. De qualquer forma, sou contra definir um autor com base em um livro. Espíritos de Gelo, na minha concepção, é um livro péssimo. Isso não quer dizer que o Draccon seja e/ou sempre será um escritor ruim.

      Excluir
  2. Eu ri TANTO dessa resenha, mas tanto, que tive que comentar algo. Acho que essa foi a resenha mais engraçada (e coesa, pontual, com bons argumentos, etc) que eu já li.
    Essa é a segunda vez que leio ela porque vim catar o link pra mostrar pra um amigo. A primeira leitura foi há meses atrás. Dessa vez vou olhar o resto do teu blog e seguir!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Muito grato. Pode mostrar o blog pros amigos, pros bichos de estimação, pra família. Esse blog é uma festa, só faltam as pessoas.

      Excluir

caixa do afeto e da hostilidade