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domingo, 21 de dezembro de 2014

Momento Musical #5 - The Mamas and the Papas, Love, The Velvet Underground


Nessa casa da mãe Joana que é o Momento Musical, por mais que eu tente evitar, acabo caindo num tema. É inconsciente. Defino as bandas de improviso, cinco minutos antes de escrever a postagem, aí uma meio que se conecta a outra dessa maneira. Estou escutando o disco enquanto penso no próximo, e o próximo acaba vindo. Na edição de hoje, são bandas da minha tão amada década de 60. Uma delas, a primeira, é meio deslocada, mais ligada ao pop que ao psicodélico, mas não está tão distante. Vamos à música que é o que importa.

The Mamas & The Papas -  If you can believe your eyes and ears


Minha primeira memória dessa banda é bem distante. Era a minha mãe quem gostava especificamente da música California Dreamin'. Nunca foi muito meu estilo, eu achava, até ouvir esse disco por completo uns dois anos atrás. O som é leve, cheio de harmonias vocais, meio folk, meio pop com uma pitada de psicodélico (que era meio onipresente no som de 66-68). Acho que não gostava por nunca ter prestado atenção mesmo. É uma banda relaxante.

Love - Forever Changes


Esse disco é um dos melhores do seu período, o que é dizer muito (foi lançado em 67, e agora você vai no Google e pesquisa "álbuns lançados em 67", se vocês gostam desse tipo de música, mas não são tão ligados na história por trás dela, vocês terão um orgasmo). Encabeçou toda uma geração, mas hoje ninguém lembra deles. Culpo o nome da banda. Convenhamos, nossa geração baixa música e descobre tudo pela internet. Tenta pesquisar a palavra Love na internet. Vai demorar umas 30 páginas do Google, até encontrar alguma informação sobre a banda. Mais bagunçado ainda é pesquisar Love no PirateBay. Sorte de vocês que o tio Rapha existe e trás essas joias diretamente pra vocês, sem necessidade de perder tempo pesquisando.

The Velvet Underground - Loaded


Fiquei triste pra cacete quando o Lou Reed morreu ano passado. Puta compositor, e eu acho que o melhor trabalho dele está nesse disco. Já me peguei ouvindo esse álbum e cantando junto com Sweet Jane, Who Loves the Sun, Oh! Sweet Nuthin'. Esse é um dos meus discos favoritos da história do rock e eu não faço ideia de por que essa é a primeira vez que ele figura aqui no blog (se bem que tem dezenas de álbuns que eu amo e nunca falei sobre por aqui - só aguardem as próximas edições do Momento Musical).

É isso. Não farei mais Momentos Musicais esse ano, mas 2015 estará aí logo. Quem sabe eu até bote ordem nesse barraco, organize minhas postagens por semana. Não prometo porra nenhuma, mas não é impossível de acontecer.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Divórcio - Ricardo Lísias [2013]


Peguei esse livro emprestado dois meses atrás. Nunca tive coragem de pedir livros emprestados para ninguém, não importando o quão bem eu conhecesse a pessoa, por causa da pressão. Passado muito tempo, se eu não terminasse a leitura e devolvesse o livro, ia começar a me sentir cada vez mais culpado. Fiz essa exceção porque queria ler algo do Lísias já faz tempo, mas não sabia qual comprar, e sempre que fazia uma lista de futuras compras, deixava o dele para depois. Então me atirei nessa pressão psicológica propositalmente para me forçar a ler o livro, e em um ritmo razoável. A pessoa que me emprestou havia passado as últimas semanas elogiando Divórcio, então pedi o empréstimo. Ela aceitou, até porque já havia emprestado dois livros para essa pessoa.

Feito em uma série de fragmentos divididos em 15 capítulos - que o livro chama de quilômetros, mesmo número de quilômetros da São Silvestre -, Divórcio conta a história de como Ricardo Lísias (personagem, não autor) se divorciar da esposa após um casamento de quatro anos. Os fragmentos são formados de pensamentos do autor durante e depois do divórcio, momentos do passado, trechos do diário que a esposa do narrador mantinha (causa principal da separação) e autoanálise. Seguindo a linha já bastante tradicional na literatura francesa de autoficção, Ricardo se põe como personagem, mas não exatamente.

A narrativa de Divórcio trafega a linha tênue entre ficção e realidade, com o autor, talvez intencionalmente, fazendo o leitor ceder àquela voz que o acompanha enquanto ele lê, que insistem em dizer que aquilo aconteceu daquela forma, que o eu-lírico e o eu autor são um e o mesmo. Ele faz isso colocando, ao lado das invenções (o treino para São Silvestre que ele nunca fez e a corrida da qual ele não participou - embora ele narre com a verossimilhança de um participante) os fatos - citações aos montes sobre o livro Céu dos Suicidas, que existe e foi Ricardo Lísias, autor, quem escreveu. Resisti o que pude, mas, como imagino tenha sido o caso da maior parte dos leitores, botei o nome dele no Google e fui investigar quanto daquilo foi real. Saí da pesquisa sabendo tanto quanto quando entrei - nada. Nem sei dizer ao certo se o cara foi casado. E, querem saber, bom que tenha sido assim. Não vem ao caso quem é Ricardo Lísias, o autor. O livro trata de Ricardo Lísias, o personagem, e, para este, tudo que se passou no livro foi real, mesmo que tudo não passe de ficção.

Apesar das distrações, das fofocas, do drama, do real contra a ficção, o livro fala mesmo é de jornalismo. Desse mundo que todos sabem ser corrupto chamado mídia, a principal responsável pela informação. Lísias escreve sem medo sobre o poder que existe nesse meio, e o poder que estes que o representam (jornalistas) acreditam ter. Nesses momentos, a prosa beira a fúria, o que só aumenta a curiosidade do leitor para saber se Divórcio é biografia ou não. Ironia que vou julgar ter sido intencional, fazer o leitor se entregar ao mesmo mundo do jornalismo que o autor condena.

Devo dizer, entretanto, que as repetições do livro me cansaram. A metáfora insistente sobre "estar sem pele" e as descrições exaustivas da pele voltando e não voltando e se ferindo me fizeram sair da narrativa muitas vezes. Escolha estilística, imagino, mas pra mim não funcionou. O livro não fica ruim por causa disso, o resto do conteúdo compensa. Para mim ele foi além do jornalismo e brincou com esse obsceno gosto humano por tudo que é do outro, mesmo que o outro seja um fundo de banalidade tão ordinário quanto você.

Atropelando as repetições, o romance é muito interessante. Me deixou curioso pelas outras obras do autor, principalmente agora que já estou vacinado e desencanei da realidade, pelo menos quando estou lendo (às vezes nem preciso ler pra isso).

Nota: 4/5

Não confie em mim. Leia um trecho e, se gostar, compre o livro: http://www.objetiva.com.br/arquivos/capas/Divorcio__1oCapitulo.pdf?1416486760

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Les Amants Réguliers (Amantes Constantes) - Philippe Garrel [2005]


Eu tenho esse fascínio pela década de 60 que muitos de vocês já conhecem, foi isso que me levou a me interessar pelas crises políticas da época (a ditadura militar brasileira, os hippies e a contracultura nos EUA, a primavera de Praga, e os eventos de maio de 68 em Paris). Fiquei sabendo em meio às minhas pesquisas particulares da existência desse filme e logo o baixei e assisti. O diretor é Phillipe Garrel, que, em 68, fez parte da revolução, ao lado de Godard e Truffaut. Esse filme, Les Amant Réguliers (não confundam minha preferência pelo título original com pedantismo ou francofilia, é porque o título nacional é composto de duas palavras que rimam e vocês não fazem ideia do quanto isso me incomoda), é de 2005, mas tenta recapturar o espírito daquela época. Sem colocar a carroça na frente dos bois, li sobre a possibilidade desse filme ter sido uma resposta a Os Sonhadores (The Dreamers), do Bertolucci, de 2003, que trata mais ou menos do mesmo tema, a diferença sendo The Dreamers mais focado no lado erótico/sexual, e Les Amants... mais filosófico/introspectivo (não contendo uma só cena de nudez). Em uma cena, inclusive, uma personagem se volta à câmera e cita Antes da Revolução (Prima della rivoluzione), de 64, enunciando muito bem ao espectador o nome de quem dirige: Bernardo Bertolucci. Pode ou não ter sido um cutucão, um jeito discreto de dizer: você costumava se importar. Isso foi o que um crítico disse, e vocês sabem como são os críticos. Como nunca ouvi nem Garrel nem Bertolucci falarem nada sobre isso, e até onde sei os dois são amigos, não tomarei partido no caso. Mencionei apenas caso algum leitor mais informado quisesse me esclarecer.


Os conflitos entre os estudantes e os policiais na França em 1968 (época em que o governo era bastante conservador) estão cada vez maiores e mais violentos. Um grupo de jovens artistas, entre eles o poeta François (Louis Garrel) e a escultora Lilie (Clotilde Hesme), tem hábito de se reunir na casa de um amigo deles para fumar ópio, trabalhar, discutir, dançar e planejar os próximos passos da revolução. Um policial um dia vai à casa de François para perguntar porque ele não se apresentou para o exame militar obrigatório. Ele se recusa a ir com o policial e, quando este busca reforços, ele foge. Depois desse evento, François se torna mais engajado na revolução.


Em um dos "ataques", ele conhece Lilie e a reencontra numa das festas dadas na casa do "padrinho" deles todos. Os dois iniciam um relacionamento, ela tem dificuldades com a monogamia no começo, mas logo se apaixonam. A revolução, agora em 69, já foi em sua maior parte esquecida. Os trabalhadores voltaram a trabalhar e os estudantes à universidade.


É um filme de três horas, então já adianto que é indicado apenas aos que se interessam pelo tema e/ou gostam de histórias envolvendo artistas drogados e seus muitos questionamentos que os impedem de trabalhar. Se você gosta desse tipo de história (eu gosto), não será chato, as três horas passarão voando. Perfeito também para os aficionados sobre a época, já que o filme parece ter o objetivo de mostrar um retrato preciso do que foi viver naquele tempo, feito por um diretor que o viveu, lutou na revolução junto das tantas personalidades do período. Isso não quer dizer que o retrato seja romantizado ou ausente de críticas, pelo contrário, o vazio das personagens é bem demonstrado e a falta de sentido generalizada é muito bem explorada.


Estéticamente, Les Amants Régulier é uma homenagem à Nouvelle Vague. Preto e branco, cheios de diálogos tirados de livros de filosofia existencialista francesa, música somente quando necessário, quebras da quarta parede, referências a outras artes, jump-cuts, até mesmo as personagens têm um quê de godardianas, sendo que suas interações parecem cortadas diretamente dos filmes da primeira fase do auteur.


Não tem jeito de eu ser objetivo aqui. O filme, apesar de longo - uns diriam, sem estarem errados, longo demais -, tem tudo que eu gosto, trata de vários assuntos que me interessam, desde a liberdade sexual à liberdade criativa. Isso não me impede de entender que não é para todos. E não, isso não é uma dessas frases elitistas, como se o filme fosse muito complexo ou denso para certas pessoas, que, por isso, seriam inferiores. De forma alguma, muito pelo contrário. O que eu quero dizer é que ele pode ser extremamente desinteressante para muitos, e, para esses, sugiro qualquer outro filme. Talvez até algo do Godard, que com certeza é menos pessoal que esse filme do Garrel.

Nota: 5/5   

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Momento Musical #4 - David Bowie, Karen Dalton, The Brian Jonestown Massacre

No último momento musical eu segui um tema, mesmo tendo dito no primeiro que temas não seriam seguidos. Eis a consistência desse blog servida numa bandeja para vocês, leitores. Em compensação, o mm de hoje, número quatro, trata de três músicos que não têm absolutamente nada a ver um com um outro - o que alguns poderiam considerar um tema (a falta de um tema), mas não me venham com historinhas conceituais. (Interrupção irrelevante da CIVouVI: o senhor nomeado administrador desse blog deve parar de falar com si próprio como se estivesse falando com leitores, todos sabemos, infelizmente, que o senhor não é capaz de reunir leitores. [Querem saber, seus putos da Comissão da Casa do Caralho, isso já perdeu a graça. Se eu sou um problema são grande, me substituam.] Esse é a melhor ideia que o senhor já teve em todo esse tempo de administração incompetente. [Muito boa essa, tô esperando sentado meu substituto. Ah, e essas interrupções tão previsíveis, ok?] Como o senhor quiser.) Bom, vamos aos músicos e seus álbuns.

David Bowie - Hunky Dory 


O problema de falar sobre David Bowie é que ele não faz parte de um gênero musical, ele é um gênero musical, e um que muda frequentemente. Ele ganhou a reputação de camaleão com o passar dos anos, em parte merecida já que ele tem a tendência de mesclar com qualquer estilo que esteja na moda em determinado período, mas nunca é artificial. A "adaptação musical" é sempre do jeito dele, e é isso que eu acredito que faz a música dele tão memorável. Esse disco, Hunky Dory, de 1971, é um dos meus favoritos dele. Mas não me peçam pra classificá-lo. Escutem, vale mais a pena que ler o que eu estou escrevendo.

Karen Dalton - In My Own Time


Essa cantora...descobri da existência dela tão recentemente, mas ela gravou esse disco, uma das coisas mais perfeitas que eu já ouvi, em 1971 (ei, aparentemente essas escolhas têm algo em comum, mas não é intencional). Pela primeira vez na minha vida fiquei de luto pela morte de alguém que não conheci, e ela morreu em 1993. O mais trágico é que ela gravou três discos, em vida. Só. Tá certo que esse sozinho compensa pela discografia inteira de muitos artista. Sério, quando eu digo que minhas indicações são garantias, levem a sério pelo menos essa. Esse álbum vale a pena, não me importa do que você gosta, clique lá no play. Agora. Clicou, cretino(a)? Acho bom. Viu? Eu tava certo. Nunca mais duvide de mim. Fique de luto comigo.

The Brian Jonestown Massacre - Take It From the Man!

A década de 90 foi estranha pra música. Às vezes um estranho bom, outras um estranho ruim. Esse álbum representa todo o bem que a década de 90 fez pra música - que por sua vez foi tentar imitar a década de 60. Tem momentos experimentais que vão assustar um ou outro ouvinte, mas eu superestimo confio em meus leitores, sei que eles farão a escolha certa e ouvirão o disco (todos os três, a propósito. E no final verão cores e sentirão como se estivessem flutuando com a melodia. 

Acho que eu fui persuasivo o suficiente. Chega, é um post sobre música, não sobre o quanto eu acho que todos deveriam ouvir a tal música. E se vocês não ouvirem, o problema é de vocês e somente de vocês - eu já me fiz o favor de conhecer cada uma das faixas de cada um desses discos.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Barba Ensopada de Sangue - Daniel Galera [2012]


Por algum motivo a capa vem em três cores. O meu livro veio com a vermelha, mas pode ser azul ou verde. Não faz diferença, mas, na minha opinião, a vermelha faz mais sentido.

Há um tempo fiz a resenha de Até o dia em que o cão morreu, romance de estreia de Daniel Galera. Tinha gostado bastante do livro e dito que leria os outros assim que possível. Por causa de toda a atenção que Barba ensopada de sangue recebeu em sua época de lançamento (incluindo, além das vendas e da reação de público e crítica, vários prêmios), decidi que seria o próximo livro que leria desse autor.

O pai do protagonista sem nome vai se suicidar. A única coisa que ele quer de seu filho é que ele leve sua cachorra para ser sacrificada. Ele não obedece o pai e, ao invés disso, a leva com ele até Garopaba, cidadezinha do litoral de Santa Catarina. Vai até lá pela tranquilidade e para investigar uma história que seu pai lhe contara antes de morrer sobre seu avô. Sobre como ele sumiu após um baile na cidade, supostamente assassinado, mas sem testemunhas e sem que seu corpo pudesse ser encontrado. Ele aluga um apartamento e arranja um emprego na academia local como professor de natação para sobreviver. Leva uma vida normal, vez ou outra questionando alguns moradores sobre seu avô. O estranho é que ninguém parece se lembrar dele, mas sempre que ouvem a história o tratam com hostilidade, como se ele estivesse se metendo em território proibido.

Narrado em terceira pessoa, Barba Ensopada de Sangue consegue fazer que o leitor entre na mente do personagem sem nome devido à atenção aos detalhes. O protagonista sofre de uma doença que o faz esquecer de rostos em um curto período de tempo, até mesmo do seu próprio rosto e dos seus familiares, por isso ele foca em outros detalhes. Se ele conhece uma mulher e acha que vai vê-la novamente, repara no cabelo, em alguma marca na pele etc. - isso ele faz com todos os personagens. Por ser professor de educação física, ele tem um amplo conhecimento da anatomia humana, usando sempre os termos precisos para cada parte do corpo, assim como descreve cada passo dos exercícios diários que ele pratica e, durante as aulas que ele dá na academia, faz os outros praticarem. Vi em uma entrevista com o autor que, apesar da inserção dele na mente do protagonista fazer parecer que o livro estaria mais próximo da primeira pessoa, ele decidiu escrever em terceira justamente por isso, para poder trabalhar na narração como um escritor pensando como um professor de educação física. Afinal, por mais que o professor saiba anatomia e todos os termos complexos do corpo, dificilmente ele sabe dominar uma narrativa. A terceira pessoa permite que ele vá além, que ele saia da voz do narrador com mais liberdade sem nunca soltar tanto assim a sua mente, o que funciona muito bem em Barba Ensopada de Sangue, diria que é a narração é o ponto alto do livro.

Apesar de girar em torno de um assassinato, raros são os momentos em que essa busca move o enredo. Nesse ponto me lembrei de Haruki Murakami. Como os protagonistas do japonês, o sem-nome é levado pela investigação, e não o contrário. Ele tenta viver normalmente pela maior parte do tempo. Tem seu emprego, passeia com a cachorra, vive alguns relacionamentos emocionalmente deslocados com mulheres que conhece pela cidade, forma amizades (seus alunos e um budista de apelido Bonobo, que se tornou meu personagem favorito) e desafetos (quase a cidade toda). Um cara normal que se vê puxado por algo muito maior que ele. E, porque o mistério da morte de seu avô o parece perseguir, ele decide chegar até o fim e resolver o caso - que, vou evitar ser específico para não estragar a experiência dos que não leram ainda, toma proporções "sobrenaturais", também, mais ou menos como o Murakami.

Daniel Galera tem um puta ouvido para diálogo. Ele não separa as falas da narrativa usando aspas ou travessões, como é o comum, ao invés disso ele cormacmccartheia o texto - quem já leu Cormac McCarthy vai entender o que eu quis dizer com isso. Não fica confuso por causa dessa diferença de vez. Cada pessoa tem seu jeito de falar, uns tem seus maneirismos e regionalismos, outros não. Os diálogos soam  como conversas reais e não literárias. Ele também Cormac McCartheia nas reviravoltas violentas, consequências de certos atos do sem-nome.

O uso de notas de rodapé, emprestado talvez das notas do David Foster Wallace (cujos contos e ensaios Daniel Galera ajudou a traduzir), complementam a história, com conversas por telefone, mensagens de facebook, até o trecho do diário de uma prostituta. Nele se revelam as várias subnarrativas do livro, que mesmo focando no assassinato do avô do protagonista, carrega outras histórias, como a relação do sem-nome com sua família (especialmente o irmão e a ex-esposa, que o largou pelo irmão). São pedaços da história que vão se revelando aos poucos, dando vida ao livro e suas personagens.

Só uma nota irrelevante, mas que achei divertido compartilhar. A cachorra, cujo nome é Beta (pois é, ela tem nome, a maioria das personagens têm nome, o protagonista não), é uma pastora australiana. Mesmo sabendo como é uma pastora australiana, enquanto eu lia, minha mente formava algo parecido com uma labradora. Não sei por quê. Vai saber como funcionam essas coisas da cabeça. Talvez porque imaginar uma pastora australiana correndo debaixo do sol de Garopaba, se metendo na areia da praia e mar adentro, sem nunca tomar um banho, fosse me deixar aflito durante o livro todo. Agora voltamos para a resenha normal, mas na verdade é só o parágrafo de conclusão que vem a seguir, seus olhos já devem ter escorregado e observado que o texto está acabando.

As descrições de cenário seguem conforme as descrições das pessoas. Sem-nome é observador, por isso aponta cada detalhe dos caminhos que traça, as casas, a praia, o mar, os restaurantes, as paisagens naturais. Apesar de morar perto, nunca estive em Garopaba, mas depois de ler Barba... sinto como se já a houvesse visitado. Todos esses detalhes formam mais de 400 páginas, que nunca ficam chatas. É a junção perfeita de um livro como obra de arte e como entretenimento. Agora quero ler Mãos de Cavalo, que ouvi ser o melhor do Daniel Galera.

Nota: 5/5

Não confie em mim, leia um trecho aqui e depois compre o livro: http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/12453.pdf

terça-feira, 11 de novembro de 2014

O vôo da madrugada - Sérgio Sant'anna [2004]


Vi no Youtube não faz tanto tempo um trecho curto de um debate sobre o mercado editorial entre Daniel Pellizzari e Antônio Xerxenesky, um autor já resenhado nessas bandas, outro cuja coletânea de contos A página assombrada eu tenho, mas não li. Em determinado momento, Xerxenesky diz que o conto é a nova poesia, ninguém lê contos. Espera, tem acento em Xerxenesky? Não, mas o nome do livro é A página assombrada por fantasmas; pronto, corrigido. Ele está certo. Romances são bem universais entre leitores. A poesia, depois do Toda poesia, do Leminski, reviveu ou pelo menos deu cria, gerando edições similares para Ana C. e Waly Salomão. O conto morreu e permanece morto. É uma pena. Despertei para o conto só depois de um ano de leitura séria na minha vida, graças ao ou culpa de Dublinenses, do Joyce. Não podia ser mais clichê da minha parte, mas convenhamos que é uma puta coletânea. Pulei dele para Hemingway, Carver, Bolaño. Então peguei um livro do Sérgio Sant'anna ano passado e me prendi no estilo. O vôo da madrugada (mantendo a velha ortografia em respeito à edição) ganhou o Jabuti de sua forma em 2004 (pode ter sido em 2005, não sei como funciona a premiação especificamente). Disse isso na minha resenha do Carver, mas vou repetir já que é raro que meus leitores sejam completistas. Poderia fazer uma resenha para cada conto, até o mais curto, que consiste de uma folha apenas, e seriam todas longas como quaisquer outras das minhas resenhas. Mas não o farei, haja tempo. Vou mesclar tudo e, por conseqüência, fazer uma resenha superficial que, esperançosamente, alimentará a curiosidade dos meus três leitores e meio.

São dezesseis narrativas divididas em três partes. A primeira consiste de doze contos. Um não poderia ser mais variado que o outro. Cheios de brincadeiras metalinguísticas (ou deveria dizer metalingüísticas, mantendo a consistência da velha ortografia em homenagem ao título da edição, antiga porém viva? Farei isso, a pergunta foi retórica), indo de temas como o incesto, fantasmas (e atração sexual por um fantasma), fragmentos autobiográficos (ou não?) analisando a mente do contista (do contista real ou fictício?), uma análise da voz que te chama para a morte, uma conversa entre uma mulher e seu psicanalista, mais autobiografia (ou não), mais sobre a sedução da morte. Não se enganem leitores, essas não são sinopses, muito menos análises. São palavras que definem ou não os temas. Não definem, são muito rasas para definirem qualquer coisa, mas podem ser como palavras-chave. Os contos em si fazem o leitor pensar cada um dos vários significados que eles carregam. Fazem o leitor pensar no que é ficção também e qual seu papel.

A parte dois é apenas uma narrativa. Chega a ser novela? Deixarei essas definições para os críticos e professores, isso aqui é apenas um blog, uma indicação de amigo, um amigo que vocês não conhecem nem nunca viram sequer verão. O gorila, é título. Um homem, que se identifica como Gorila, faz ligações para mulheres aleatórias. Crime?, piada?, assédio?, insulto? Cada leitor pensa uma coisa, da mesma forma que cada personagem-alvo pensou uma coisa. Os papéis se invertem, vítima se torna criminoso (ou não). A narrativa é experimental. Parte diálogo, com pausas de poesia e ensaio, roteiro de tevê, trama policial. A novela faz um pouco de tudo. Sugiro ao leitor, nesse ponto, uma pausa para reflexão. Leia outra coisa antes de ir à parte três. Um conto de outro autor, talvez. Não dê muito tempo à pausa, contudo. Pense na novela. Melhor dizendo, faça uma pausa a cada narrativa e reflita sobre ela. Isso serve para toda boa coleção de contos.

Chegamos à parte três e é possível que você ainda esteja me lendo. É possível que você tenha deixado de ler quando soube que se tratava de um livro de contos. Se você for um tipo especial de idiota, é possível que você tenha deixado de ler quando soube se tratar de um livro nacional. Cada qual com sua opinião. Não se preocupem com o tipo especial de idiota, ele não está mais aqui para ser ofendido. É na terceira parte, intitulada Três textos do olhar (e você adivinhe em quantas narrativas essa parte se divide), que os limites entre a narrativa, o conto e o ensaio crítico se quebram. Uma mulher nua em um quadro se torna razão de uma análise sobre a nudez e, ao mesmo tempo, personagem do seu próprio espaço, que pode ser conto ou crítica, tanto faz. Então no segundo conto, por meio de uma fotografia, somos transportados para outro tempo, outros costumes. Mulher fotografada se torna personagem de uma história fictícia, modelo para um jovem pintor não existente que a apresenta às obras de Schiele e se transforma. A arte, no segundo conto, liberta mentes e transforma uma boa mulher de família esposa fiel em adúltera, o que não importa, já que a história não é real (ou é? Será que importa? Nada no livro é real, então que importa a vida presumida de uma mulher fotografada no Brasil da década de 20?). No terceiro, o alvo dos conto-críticas são as meninas de Balthus, como se pode presumir pelo título Contemplando as meninas de Balthus. Histórias criadas usando de combustível as sensações causadas pela arte visual estática.

Nada é perfeito. Das dezesseis narrativas, decerto algumas vão agradar e outras não. Fui tocado de certa maneira por todas, umas com mais intensidade outras com menos. Mas da mesma forma que as mulheres do Gorila interpretaram os telefonemas dele de formas diferentes, vocês interpretaram os contos de formas diferentes. Os seus favoritismos podem ou não ser iguais aos meus. Você pode não gostar de nenhum ou de todos. Ele ali pode gostar da primeira parte. Ela da terceira. O tipo especial de idiota já não está mais aqui. Eu indico a leitura. Você faça o que bem entender.

Nota: 5/5  

terça-feira, 4 de novembro de 2014

A coisa mais genial que eu já vi:


SAMUEL BECKETT MOTIVATIONAL CAT POSTERS (Pôsteres motivacionais de gatos, do Samuel Beckett).
Isso existe, e eu só descobri agora. Não é da minha índole fazer posts apenas divulgando uma coisa, sem acrescentar um texto ou uma opinião, acho preguiçoso. Mas isso precisa viajar o mundo e ser descoberto. Eis este tumblr: http://beckittns.tumblr.com/
De que ele consiste, você pergunta. Sabem aqueles típicos pôsteres de gatos com frases motivacionais clichê? Então, imagine os mesmos pôsteres com frases do escritor mais deprimente da história (e um gênio, um dos vários escritores que eu queria ser, gostaria de acrescentar). Mas por que estou descrevendo quando poderia estar mostrando?

Em um instante tudo irá se esvair e nós estaremos mais sozinhos, em meio ao nada! (Tradução livre e minha - isso vale pra todas as frases.)

Ele cantou sua cançãozinha,
ele bebeu sua garrafa de stout,
ele afastou uma lágrima,
ele se fez confortável.
Assim  são as coisas no mundo.
Tudo que eu quero fazer
é sentar meu rabo
e peidar
e pensar em Dante.
não poderia a visão beatífica
se tornar fonte de tédio
a longo prazo?
nada é mais engraçado que a infelicidade.
O sol brilhou,
não tendo alternativa,
sobre o nada novo.
Obs.: essa é a primeira frase de Murphy, um dos seus romances. Isso sim é começar com o pé direito.

Bom, no site tem todo um arquivo para o deleite geral dos meus leitores, sem a minha tradução. Divirtam-se.


Obs.: a Diretoria, também conhecida como Comissão Imaginária de Vistoria ou de Vistoria Imaginária, gostaria de demonstrar seu repúdio por esse tipo de postagem preguiçosa, assim como sua decepção com o nomeado administrador desse blog. (Agora vai ser sempre essa porra. O senhor não venha com esse palavreado chulo para conosco, ponha-se no seu lugar, o senhor não sabe nem ao menos formular interrogações apropriadamente. Desculpa.)

sábado, 25 de outubro de 2014

A Humilhação (The Humbling) - Philip Roth [2009]


Ninguém é perfeito, essa é a moral dessa resenha. Um dos três melhores escritores americanos vivos, de acordo com o crítico Harold Bloom, junto de Don deLillo e Thomas Pynchon, depois de 30 livros escritos, também falha. Já tinha ouvido coisas péssimas desse livro, desde a Taciele do finado (ou em coma) Viva Livros até a Michiko Kakutani do New York Times. Definitivamente não é o melhor livro de introdução à obra do Philip Roth, mas eu insisti. Queria ler o livro antes do lançamento da adaptação pra cinema, com Al Pacino no papel principal - logo mais falarei uma coisa ou outra sobre o trailer desse filme e as minhas expectativas. O resultado me deixou claro que Philip Roth, mesmo quando ruim, ainda é razoavelmente bom, mas mesmo um escritor desse porte erra, e A Humilhação pode ter sido o maior erro da carreira dele.

Aos 65 anos, Simon Axler, ator de teatro responsável por dar vida aos grandes personagens de Shakespeare, Sófocles, O'Neill, esquece como atuar. Após performances terríveis em Macbeth e em A Tempestade, ele entra em depressão, se vê sem identidade. Sua esposa, ex-bailarina, não sabendo lidar com o marido em tal estado, vai embora para morar perto dos filhos na Califórnia. Pensando em suicídio, Simon se interna numa clínica psiquiátrica. Lá ele conhece outros suicidas, em especial Sybil, com quem ele divide seus problemas. Fora da clínica, algum tempo depois, ele recebe a visita de Pegeen Mike, filha de uns amigos também atores, lésbica, e os dois entram em um relacionamento.

Eu gostei desse enredo. As possibilidades são tantas e o conceito em si é ótimo. Falando dos prós em primeiro lugar, Roth entra com perfeição na mente de um ator de 65 anos que perde o talento. A descrição dos medos e ansiedades da velhice é o ponto forte do livro e muitos dos conceitos sobre morte, identidade, amor e loucura quase fazem a leitura valer a pena. Até porque a escrita em si, o jeito como as palavras usadas estão alinhadas, é muito bom. A Humilhação tinha tudo para ser um bom livro, mas, assim como Simon Axler no palco, falha em convencer e tocar o leitor.

Para começar nos problemas, a narração raramente mostra as complicações. O leitor fica sabendo dos acontecimentos ou por exposição superficial ou por meio de diálogos muito literários para saírem da boca de um ser humano normal. Quando Simon falha no palco, não estamos com ele, acompanhando o fracasso. Roth apenas nos diz, em poucas linhas, que Simon esqueceu como atuar e nós temos que acreditar nele. 

Em alguns momentos chega a parecer que Roth acertou o passo. Quando, por exemplo, a relação entre Simon e Pegeen é detalhada. A forma como um transforma o outro, o que se passa na cabeça de Simon durante o relacionamento, a transformação e aparente submissão de Pegeen, e os hábitos sexuais que os dois desenvolvem. Esses trechos são o ponto alto da narrativa, mas não deveriam ser. Quero dizer, é a parte mais interessante do livro, mas ela é envolta de tantas outras partes ainda mais essenciais e importantes que simplesmente passam e se resolvem com um ou dois parágrafos que chega a ser frustrante.

Nunca é bom para o enredo conter uma história secundária melhor que a primária, mas é o que acontece em A Humilhação. A vida de Sybil, essa sim merecia um livro. Mais de uma vez, enquanto lendo a vida de Simon, quis parar de ler e procurar pelo livro de Sybil. Ela sim sofreu, ela sim tinha motivos para se matar. Eu leria com gosto um livro sobre a Sybil, sr. Roth, fique sabendo. Não que o livro do Simon seja ruim, só não consegui me importar com ele.

A Pegeen e a relação dela com os pais também é outro grande defeito do livro. Tudo que se passa entre Pegeen e seus pais e o que eles acham de Simon é descrito por Pegeen em várias conversas com Simon. E essa conversa é cheia de "ele disse", "ela disse", "eu disse", quando muito melhor seria ter todas essas cenas narradas de verdade.

Ouvi críticas a previsibilidade da história. Não vou seguir por esta linha. É previsível, sem dúvida, mas tenho uma explicação. Ao largo da obra, Roth dá exemplos de tragédias e, ao mesmo tempo, A Humilhação segue a estrutura básica de uma tragédia, sem entrar em detalhes para não estragar a experiência de futuros leitores (não estragar ainda mais, é o que eu quero dizer). O fim da tragédia, por definição, é previsível. Acrescentaria, mas isso é só interpretação minha, podendo não ser intenção do autor, que um dos autores citados, Tchekhov, dizia que, se no primeiro ato o autor aponta uma pistola, no terceiro ele deve dispará-la. A estrutura e o final podem ter sido uma referência, por isso digo que o final foi intencionalmente previsível, o que é direito do autor e algo completamente aceitável - quem foi que disse que todo fim deve surpreender afinal? 

Durante a mesma entrevista em que Roth fala sobre escrever o oposto de Teatro de Sabbath, ele também cita Saul Bellow, outro grande escritor americano e uma das maiores influências dele. No fim da vida, Saul Bellow decidiu que não valia a pena escrever romances longos, considerando as possibilidades de sua morte gerar um trabalho incompleto (ironicamente, Bellow teve um filho aos 84 anos de idade...). Que fique claro que apesar das tantas críticas à brevidade de A Humilhação, não tenho nada contra a narrativa curta. Pelo contrário, admiro quando um autor consegue dizer o máximo usando o mínimo de palavras. O importante é que a obra curta não soa como um resumo de algo maior. Isso é o que A Humilhação se tornou, um resumo de um livro mais extenso e mais interessante.

Resta agora aguardar o filme, se é que ele já não lançou. Pela cara do trailer, ele mostra tudo que Roth decidiu apenas contar vaga e apressadamente. O excesso de comédia me deixou com um pé atrás, dando a entender que eles queria transformar a história em um filme do Woody Allen, mas mesmo isso pode até ficar interessante, se feito com sutileza. Não quero fazer previsões para não acabar decepcionado, então ficarei por aqui e, quando eu assistir o filme retomo essa discussão, fazendo um comparativo leve.

Não indico esse livro para quem não conhece o Roth. É ruim. Não é horrível, tivesse o livro sido escrito por outra pessoa, eu teria sido menos rígido na crítica e na nota. Foi o único dele que li até o momento, então não posso indicar outras obras com segurança, mas, apesar de tudo, asseguro que A Humilhação não me deixou apreensivo a conhecer o resto da obra de Roth, pelo contrário. Se em um livro tão fraco, ele foi capaz de atingir uma prosa de alta qualidade, os bons livros dele devem ser memoráveis. Indicaria apenas aos leitores mais completistas do autor, aqueles que, não importando o que eu dissesse, leriam o livro de qualquer maneira.

Nota: 2/5 

domingo, 19 de outubro de 2014

Sobre vender livros; um relato.

Novidades dessa terra distante chamada Itajaí, inaugurou-se no shopping, dia quinze de outubro, uma livraria catarinense. Para vocês que não sabem, anos atrás houve aqui uma livraria época, logo em frente à faculdade, esta fechou pouco depois de eu me mudar para cá. Desde então essa pequena cidade pôde contar com nada em se tratando de literatura, com exceção de um sebo, grande e com acervo surpreendente, porém ainda assim contendo apenas livros usados e uns poucos livros novos superfaturados. Não é surpresa que, quando soube da notícia, me animei e fiz planos para visitar essa tal livraria logo na inauguração. Bom, não na inauguração, pois dia quinze foi quinta e quinta eu trabalho e é foda sair de casa depois do expediente, é foda sair de casa toda vez que me vejo em casa, para ser sincero. Mas no fim de semana após a abertura me pareceu um dia razoável para conhecer o lugar. Eis que hoje - sábado, data em que fui à livraria e em seguida escrevi o texto, não necessariamente a data em que vocês leem o post -, com meio litro de vinho do porto no sangue - notei que o álcool muito facilita para mim o ato de fazer compras, não sei bem por que, acho que simplesmente porque interajo melhor com seres humanos com algum incentivo -, vinho este que me abastece ao redigir este relato agora, fui conhecer o recanto. Esperava menos. Esperava duas ou três estantes mal organizadas, atoladas de Nicholas Sparks e Paulo Coelho. O que encontrei foi uma livraria de verdade, com vendedores o suficiente para um público razoável, e variedade para satisfazer até leitores chatos como este que vos escreve.

Não gosto de comprar seja o que for, me deixa nervoso. A sensação de vendedores me cercando e sugerindo coisas que não quero me incomodam, eis a necessidade do álcool. Normalmente, quando sóbrio, tento constranger vendedores, deixando claro que não tenho dinheiro para as coisas que eles me indicam ou que não tenho interesse ou conhecimento sobre o produto. Não é intencional, sei que são trabalhadores honestos e respeitáveis, é só um instinto que busca proteger minha carteira, inapropriado talvez, mas já digo a vocês, leitores que me julgam, que nunca tive problemas com vendedores justamente por causa desse meu instinto; raramente sou cercado e forçado a ver coisas que não me interessam. Essa foi minha primeira surpresa agradável na livraria catarinense do shopping Itajaí, ninguém me cercou. Sim, os vendedores me notaram e fizeram uma ou duas passagens em minha frente para que eu os notasse e pedisse informação - o que eu não fiz -, mas não estabeleceram contato. Eles me deixaram sentir a atmosfera da livraria em paz - e vocês leitores bem sabem que livrarias têm atmosferas próprias. Me permitiram ver os títulos, folhear um ou dois livros. Só então, quando eu acidentalmente examinei uma mesma estante duas vezes achando que eram estantes diferentes - efeito colateral da bebida -, que um vendedor me perguntou o que eu procurava.


Ainda queria ver títulos sem a incomodação de um vendedor, então o encaminhei a uma caçada que eu imaginava seria infrutífera. Pedi qualquer livro que fosse do Sérgio Sant'anna. Se eles tivessem algum - eu já havia vasculhado a sessão de literatura brasileira, portanto seria muito difícil que ele encontrasse qualquer coisa -, havia setenta porcento de chances de eu já ter o livro. Caso encontrassem um que eu não tivesse, bom para mim, livros do Sérgio Sant'anna são sempre bons e ele tem dois lançamentos nos quais eu estou de olho (Homem-Mulher, livro novo lançado esse ano, e Concerto de João Gilberto em Copacabana, relançamento de um de seus clássicos, programado para lançar mês que vem - e é por esse meu conhecimento que eu acho que a Companhia das Letras devia me ceder uma parceria, mas, ei, não me importa, vou resenhar de graça os livros dessa editora de qualquer forma). Dois minutos depois ele volta com a esperada notícia de que eles não tinham nada do autor ainda, mas a loja estava aberta a apenas três dias e mais coisas viriam no futuro próximo, tanto que eu podia notar que as estantes estavam vazias ainda, salvo pelas sessões de biografias e juvenil, estas estavam socadas. Mandei-o a uma nova busca, dessa vez com real interesse. Queria o livro novo do Milan Kundera, Festa da Insignificância. Fiz questão de dizer para ele autor, nome do livro, editora e ano de lançamento, para auxiliar a busca e para que ele soubesse que não falava com qualquer leitor casual por aí, que eu sabia o que eu queria e como encontrar. Essa segunda busca levou mais tempo, o suficiente para eu encontrar o novo romance da Luisa Geisler, a mais jovem das autoras a ter um de seus contos publicados na Granta dos melhores autores jovens brasileiros, e com uma coleção de prêmios surpreendente para sua idade, chamado Luzes de emergência se acenderão automaticamente.


Enquanto eu lia a sinopse do livro da Luisa, o vendedor voltou com A Festa da Insignificância em mãos. Perguntei os preços de tudo. Verdade que estavam mais caros do que estariam se eu comprasse pelo Ponto Frio ou pelo Extra, mas a vibração de uma livraria é outra. Além do mais, quanto tempo eu esperei por uma dessas abrir aqui nessa terra literariamente desamparada? Tenho mais é que prestigiar e usar meu dinheiro como um investimento, um agradecimento aos deuses da literatura que seja.

Estava decidido a levar os dois livros e ir embora, eis que surge a razão desta crônica improvisada - o verdadeiro vendedor de livros, o exemplo a ser seguido por todos que ambicionam tal carreira. Do nada, ele surgiu com um livro em mãos.

- Eu vi que o senhor estava vendo literatura nacional, conhece Evandro Affonso Ferreira.


Esse homem tem uma bola de cristal ou coisa assim? Não falei pra ninguém que procurava esse autor, não demonstrei que estava frustrado por não encontrá-lo. Como ele sabia? O bom vendedor de livros é observador. Deixa o comprador vasculhar as estantes, deixa que ele pegue um ou dois livros para análise - presta atenção no que está sendo analisado -, deixa até que outro vendedor tome para si o comprador - prestando atenção no que esse vendedor trás para o comprador. Só então ele vem com exatamente o que o comprador em questão procura. Os piores dias de minha vida foram todos, o lançamento do autor. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ele acrescentou:

- O mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotterdam - livro anterior do autor - é um dos melhores que eu já li na vida, levou o Jabuti ano passado.

Sim, eu sabia. Estava atrás desse livro do mendigo há meses, mas sempre que ia às livrarias online me esquecia dele. Li Barba ensopada de sangue esse ano, livro que perdeu para O mendigo, claro que queria lê-lo. Perguntei se não tinha esse livro ao invés do lançamento mais recente.

- Não senhor, ainda não, talvez no futuro.

Gostaria de apontar que muito me incomoda, aos vinte três anos, ser chamado de senhor, mas não falei nada por achar que é padrão entre esses vendedores. Disse que ia levar aquele de qualquer forma, desde que eles me dissessem o preço, já que, dependendo da resposta, a compra do livro da Luisa estava em jogo, ela que me perdoe. Não foi necessário, levei os três. Fiz a compra e, ainda por cima, um desses cartões fidelidade que não faço em lugar nenhum. Saí satisfeito, testemunha do que eu juro ter sido a venda perfeita. Infelizmente, o vendedor, como todo o artista, não soube ganhar dinheiro. Na hora de me entregar o cartão que iria contabilizar a comissão do vendedor - se ele ganharia comissão, não sei -, apenas o primeiro vendedor me deu um cartão. O outro, fez a venda perfeita, mas saiu de mãos vazias. A não ser que, depois, eles tenham negociado alguma coisa. Duvido, o vendedor, acima de tudo, é um canalha por natureza. Esse é o nosso mundo injusto.

Eis aqui uma indicação totalmente gratuita, feita de coração. Não se enganem achando que eu ganhei um puto que seja para fazer esse texto. Ninguém nunca me pagou por minhas palavras escritas, nem acho que um dia irão - minhas esperanças decaem dia após dia. Mas se você, que me lê, é de Itajaí ou região - ora se apresente, filho(a) da puta, quero conhecer você -, vá à livraria catarinense do shopping Itajaí. Você será bem atendido e saíra com os livros que procura.

sábado, 18 de outubro de 2014

Momento Musical #3 - Leon Russell, Elton John, Dr. John

Para a terceira edição dessa coluna que não é temática apesar de tudo (com exceção do tema música, óbvio), escolhi falar de três pianistas. Mas não só quaisquer pianistas, estes são, talvez, os mais importantes pianistas da história do rock. Como sempre, um álbum de cada: suficiente para vocês conhecerem, não tanto a ponto de vocês cansarem. Vocês já sabem, uma indicação minha é praticamente uma garantia de qualidade, então divirtam-se ouvindo os discos.


Começando com Leon Russell, sua barba e seu cabelão, itens tão icônicos de sua persona, mantidos até hoje, vez ou outra com a adição de uma cartola e óculos escuros. Com um estilo e sotaque sulista, ele misturou rock, soul, country e fez do resultado uma música totalmente pessoal. Conhecendo o estilo de Leon Russell, é impossível confundi-lo com outro músico. Tanta particularidade também faz dele difícil de descrever, então vocês vão ter que ver por vocês mesmos. Só uma nota, esse cara já tocou com praticamente todo mundo (Joe Cocker, George Harrison, Elton John, Eric Clapton, entre outros). Muito possivelmente vocês já o ouviram em algum lugar, só não sabem ainda.





O músico mais popular que vocês já me viram falando sobre nesse blog. Gosto da música do Elton John, mas só até o fim da década de setenta. Depois, não sei o que houve com ele. Não sei o que houve com a música em geral na década de oitenta, dezenas de músicos tão bons se perderam, ou sumiram ou gravaram pop insípido, uma decepção. Mas, ei, pelo menos os discos antigos estão aí para sempre. Estava na dúvida entre dois álbuns, Madman Across the River ou Goodbye Yellowbrick Road. Acabei escolhendo o segundo, é mais marcante que o outro. Não vou gastar o tempo de vocês descrevendo um músico que todo mundo conhece, então chega.




E, por último, o grande Dr. John volta a dar as caras nesse blog. Dá última vez foi com uma resenha do álbum mais recente dele, que é ótimo por sinal. Hoje é com um clássico, o disco mais conhecido dele, Right Place Wrong Time, cuja música homônima todos já ouviram. O cara mais exótico dessa lista, misturando um pouco de tudo em sua música, mais a cultura de New Orleans. Com funk, blues, soul e tudo mais, esse é um puta álbum que, se você nunca ouviu, ora, não precisa me agradecer, aqui está ele. Agora pare de gastar sua vida e escute-o.




domingo, 5 de outubro de 2014

Mar Inquieto (Shiosai) - Yukio Mishima [1954]


Ok, domingo de eleição, sou obrigado a falar qualquer coisa sobre, certo? São quase cinco horas da tarde, quem votou, votou. Uma novidade pra vocês, não importa qual candidato vocês favoreçam, os problemas de hoje continuaram sendo problemas amanhã. Nada vai mudar, seja a Dilma reeleita, seja eleito o Rui Costa Pimenta numa espécie de reviravolta do azarão. Falemos de literatura, que é algo importante para humanidade. Política no Brasil é apenas chateação. Não gostaria que nenhum dos candidatos sequer vivesse no mesmo país que eu, que dirá o governasse. Tá, com exceção do Eduardo Jorge. Com ele eu tomaria uma cerveja, fumaria um baseado e conversaria sobre os velhos tempos que não voltam mais. De qualquer forma, o melhor a se fazer é ignorar o governo brasileiro, fingir que ele não existe. Que tal a ideia? O governo é como aquele filho indesejado que, mesmo depois de velho, continua a tirar dinheiro da família, por mais que você queira ver o puto pelas costas. Fechemos nossos olhos, façamos nosso trabalho e cuspamos na cara dos nossos líderes, eis a nossa solução.

Agora o que realmente importa.

Existe a ideia errônea de que um grande livro necessita, por consequência, uma grande história ou grande inovação. Eis que de tempos em tempos surge algo simples, mas que pela sua execução e sinceridade, cresce aos olhos do leitor. Usemos de exemplo Romeu e Julieta. Talvez a peça de Shakespeare menos admirada pelos críticos, embora de longe a mais conhecida e citada pelo público. Vista por cima, não passa de uma história de amor adolescente. É inegável, no entanto, a imortalidade da história, que, mesmo na época de Shakespeare, já não era original. O que Shakespeare fez foi tirar o lado "lição de moral" da peça, e contá-la pelo que ela é, dois adolescentes que se apaixonam e, por culpa dos extremos dessa fase da vida, se matam, sem dizer se isso foi errado ou não, apenas uma tragédia. O que Yukio Mishima faz em Mar Inquieto é reviver a história de amor adolescente, no contexto cultural do Japão da década de cinquenta, em meio aos contrastes da modernidade da cidade grande contra o tradicionalismo das ilhas ainda isoladas.

Quando o pai de Shinji Kubo morrera durante a Segunda Guerra Mundial, o garoto de dezessete anos se viu obrigado a sustentar sua mãe e irmão. Apesar da tragédia e da vida economicamente contida, a vida que eles levam na ilha pesqueira é pacífica. Todos conhecem e respeitam Shinji pelo seu trabalho como auxiliar do pescador Jukichi Oyama. Então o filho de Terukichi Myata, um homem rico e temido na ilha, e ele trás de volta à sua casa Hatsue, sua filha adotiva. A beleza de Hatsue atrai vários pretendes, incluindo Shinji, em quem ela também se interessa. Yasuo Kawamoto, arrogante filho de família rica, que estuda em Tóquio e despreza as tradições da ilha, também se interessa por Hatsue, principalmente por causa da fortuna de Terukichi. Boatos começam a rodar pela ilha de que Shinji tirou a virgindade de Hatsue. Por Shinji ser de família pobre, Terukichi o proíbe de ver Hatsue. Os dois trocam cartas para tentar manter o amor proibido e o resto cabe a você ler o livro e descobrir.

Diferentemente dos primeiros livros de Yukio Mishima, esse é muito mais ingênuo. Em Confissões de uma Máscara, o tema da descoberta sexual é recorrente, mas com um toque de sadismo e homoerotismo. Mar Inquieto tem um tom de inocência e simplicidade surpreendente para uma obra de Yukio Mishima. Mesmo os curtos momentos de erotismo tem um lado de descoberta. A narrativa é leve e poética, cheia de imagens marítimas a ponto que o leitor pode cheirar o sal do oceano.

A tragédia de Romeu e Julieta, comparação que eu usei no primeiro parágrafo, não está presente em Mar Inquieto. Na verdade, em se tratando de roteiro, não há nada de novo nesse livro de Mishima. É uma história agradável sobre amor juvenil. Isso não torna o livro ruim. A beleza da prosa do autor compensa a simplicidade do roteiro. É um conto quase moralista, sobre o verdadeiro amor juvenil, sem grandes idealismos.

Mishima criticava o hábito dos intelectuais de ignorarem a saúde física. Ele era mestre em artes marciais e se dedicava a manter um corpo que ele considerava perfeito. Esse ideal de equilíbrio entre o físico e o mental é bem demonstrado nesse livro. Shinji e Yasuo são opostos. Um é simples, trabalhador, forte e respeitável às tradições. Outro é estudante universitário, intelectual, urbano, fisicamente fraco. Mishima deixa claro seu favorecimento pelo primeiro. Por outro lado, Shinji é simples, porém não é idiota. É equilibrado considerando suas limitações.

Mar Inquieto é um livro que poderia ser indicado para qualquer um. É simples sem ser idiota. Trata sobre o amor juvenil sem ser contada de modo juvenil. A prosa é limpa, poética e vívida. Talvez não seja o melhor livro desse autor. A leitura depende do que o leitor em questão está procurando. Se o que você quer é uma leitura densa, erótica e psicológica, esse não é o melhor começo. Do contrário, se o que você busca é uma leitura agradável, mas que respeita a inteligência do leitor, esse livro é perfeito.

Nota: 4/5

domingo, 28 de setembro de 2014

Momento Musical #2 - Joni Mitchell, The Grateful Dead, Dave van Ronk


Muito tempo depois do primeiro momento musical, volto com mais sugestões para vocês, meus leitores ávidos pelas minhas indicações imperdíveis. Dessa vez, como se tratam de artistas de discografia vasta e variada, sugerirei apenas um disco de cada, aquele que define cada músico, de certa forma, aquele que marca o ápice da carreira de cada um.

Joni Mitchell - Blue


Lançando em 1971, esse foi um dos principais discos lançados pela geração responsável por reviver (mais uma vez) o folk americano, meio que o transgredindo no processo. Falarei mais disso quando chegar a vez do Dave van Ronk, mas, basicamente, a música folk é a música repassada de geração pra geração, contando histórias, uma espécie de retrato de um povo (cada cultura tem sua forma de música "folk", que poderia se traduzir como popular, mas, na música, a palavra popular tem má fama, então digamos que é "do povo", parece o mesmo, mas reflita e verá que não é). Essa geração, Joni Mitchell, Bob Dylan (principalmente o Dylan), Leonard Cohen compunham suas próprias músicas. Eis a transgressão, música folk costuma ser tradicional, contada por alguém sei lá eu quando e repassada e reformulada eternamente. Eles criaram suas próprias "histórias de geração". E Joni Mitchell, ninguém a de me convencer que essa mulher não é um anjo com essa voz...Blue virou um clássico dessa geração, cada faixa vale a pena. Ela é (ainda viva!, embora meio fora de área) uma grande compositora, musicista (tocando piano, violão, dulcimer, talvez outras coisas que eu não esteja sabendo) e, se não bastasse, canta desse jeito aí que vocês estão ouvindo agora - porque vocês estão ouvindo que eu sei. Precisa de mais apresentações?

The Grateful Dead - From the Mars Hotel



Já falei que essa é uma das minhas bandas de rock favoritas? Bem provável. Esse blog já tem mais de dois anos, não me lembro de tudo que já postei aqui (só esperem por possíveis resenhas repetidas daqui mais dois anos, quando eu senilizar de vez), mas acho que tem uma resenha do disco American Beauty. Acontece que essa banda é meio ame ou odeie. Se você gosta de psicodelia, aperte o play no vídeo e você se divertirá pra cacete. Se não...dê uma chance, porra, não custa nada, já tô jogando o disco todo aqui pra você, nem vai te dar o trabalho de procurar. Como em tudo que Grateful Dead faz, envolve mistura de gêneros, mistura de drogas e improvisos aos montes. Você vai ouvir blues, country, rock, jazz, e coisas entre esses gêneros que ainda não foram definidas por ouvidos humanos acadêmicos e sóbrios.

Dave van Ronk - Inside Dave van Ronk


Não consegui achar esse disco inteiro, mas eu sei que se vocês gostarem dessas faixas vocês vão acabar procurando o resto. A história é a seguinte, os meus leitores mais ligados ao cinema devem ter visto o filme do ano passado dirigido pelos irmãos Coen, Inside Llewyn Davis (ou, na pior das hipóteses, a paródia pornô desse filme, chamada Inside Llewyn Davis), embora eu lhes esteja devendo essa resenha. Bom, se vocês viram o filme, sabem que foi baseado na vida de Dave van Ronk, e o título do filme é uma referência direta a esse disco, e a capa do disco que o Llewyn Davis lança no filme é igual a capa do disco van Ronk.


Mas quem foi Dave van Ronk. Estava falando da ressurreição da música folk na década de 60. Na verdade essa foi uma de várias ressurreições, já que foi Woody Guthrie que popularizou o estilo na década de 30-40 (notem que estou falando exclusivamente do folk americano), depois Peter Seeger (falecido em janeiro desse ano) e outros vieram na década de 40 e 50. Dave van Ronk, no estilo desses caras, surgiu entre as décadas de 50 e 60 e liderou a geração do Greenwich Village (Joan Baez, Mimi & Richard Fariña, Carolyn Hester, Bob Dylan etc.). Mais tradicional que seus sucessores, ele costumava, como seus antecessores, fazer releituras de músicas tradicionais, mas do muito particular dele. Dylan o considerava um mentor, o que já deveria ser mais que suficiente certificado de qualidade.


Ao contrário de muitos que ele veio a influenciar, nunca gozou de muito sucesso com o público. Não tinha carro e se recusava a viajar de avião. Sempre morou no Greenwich Village, até a morte, e se tornou ícone quase religioso da música local. Infelizmente, raros são os casos de artistas isolados que conseguem ganhar dinheiro com sua arte. Na maior parte desses casos, quem perde é o grande público.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Nos Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever) - John Badham [1977]

A imagem mais satirizada da década de 70. Não é porque o filme é bom que ele não tem motivos de ser ridicularizado.
Das minhas primeiras memórias sobre a minha relação com o cinema, um filme meio que se destaca. Em retrospecto, eu era novo demais quando assisti Nos Embalos de Sábado à Noite pela primeira vez, acho que não tinha nem dez anos de idade. Mas acho que devia estar em uma fase particularmente curiosa, pois me lembro de ter ido à finada Blockbuster com meus pais e me metido na sessão de Clássicos. Nessa mesma época, assisti Cantando na Chuva. A única coisa que esses dois filmes têm em comum é que, quando os vi pela primeira vez, não entendi absolutamente nada sobre o que eles representavam. A diferença é que anos mais tarde eu voltei a ver Cantando na Chuva, enquanto Nos Embalos de Sábado à Noite (que por questão de economia chamarei de agora em diante de SNF) não me interessou tanto assim. Isso até esse fim de semana, quando finalmente decidi ver de novo. Surpreendentemente, ainda me lembrava de muita coisa dele.


Se tem uma coisa que todos conhecem desse filme é a primeira cena. Tony Manero (John Travolta), vendedor de tinta, andando pela rua ao som de Staying Alive, do Bee Gees. Depois do trabalho, sempre que pode, ele gasta todo seu dinheiro para dançar na discoteca 2001: Odissey. Conhecemos suas amizades, seu estilo de vida, o aparente hedonismo, a falta de preocupação com o futuro, enfim, um grupo normal de jovens. Enquanto durante o dia ele não passa de um vendedor de tinta, desprezado pela família, na discoteca ele é o rei e todos o amam. A discoteca, então, organiza um concurso de dança. É aí que ele encontra Stephanie (Karen Lynn Gorney), uma mulher que busca um futuro em Nova York, mas que não está nem um pouco interessada em Tony. Mesmo assim ela enxerga o talento em Tony e aceita entrar no concurso com ele. A convivência faz que Tony decida mudar em certos aspectos, vendo que nem tudo na sua vida pode se manter igual para sempre.


1977 foi o ano em que a música disco e as discotecas atingiram seu auge. Nessa época, esses lugares eram o equivalente ao que uma balada sertaneja é hoje no Brasil. Por isso mesmo, embora as músicas presentes na trilha sonora de SNF sejam tão datadas a ponto de ser possível identificar só de ouvido o mês em que elas foram gravadas, o tema se mantém universal, simplesmente porque Tony Manero e seu grupo, o tipo de pessoa que eles representam, ainda existe, mudando apenas a aparência, penteados, roupas, etc. Mesmo assim, SNF se tornou um dos filmes mais subestimados de seu tempo com o passar dos anos. Vejam bem, é verdade que foi a obra mais lucrativa da década de 70, mas desde 79, quando a discoteca se tornou um ícone da decadência, o filme se tornou motivo de piada, John Travolta mal conseguiu arranjar trabalho, assim como qualquer um dos envolvidos nessa produção. A pior parte disso tudo, não é nem merecido. SNF talvez seja o melhor filme retratando a geração de seu tempo.


SNF é um filme sobre jovens escapistas que muitas vezes beira o niilismo. A forma que Tony, mesmo encontrando alguma paz enquanto dança, não vê futuro algum no ato; o irmão dele, antes visto pela família como um sinal de esperança por se tornar padre, perde a fé; Stephanie, a única no filme com alguma perspectiva, não deixa de ser tão decadente quanto todos os outros. É como se o filme dissesse que, para essas pessoas, não há futuro desejável e só resta escapar nem que seja por uma noite de sábado. Isso fica claro mesmo na primeira cena de dança, quando todos os presentes na discoteca formam uma espécie de dança em conjunto, deixando os problemas de lado por um momento. Crítico de cinema Gene Siskel dizia que essa era sua cena favorita entre todos os números de dança cinematográficos, assim como dizia SNF ser seu filme favorito. Essas cenas leves de dança são contrabalançadas com o realismo da relação entre os personagens. Em um momento eles dançam, em outro há um estupro; em um momento eles se preparam para o concurso, no outro um dos amigos de Tony cai de uma ponte. Esse detalhe é o que separa SNF de um Flashdance e o deixa mais próximo de qualquer filme sobre decadência geracional.


Relacionáveis que os personagens possam ser, nenhum é agradável. Tony é um narcisista ignorante, os amigos dele são misóginos e homofóbicos, Stephanie é pretensiosa e arrogante. Não é um filme de heróis e vilões, todos são pessoas.  O roteirista, Norman Maxler, reza a lenda, costumava gravar conversas reais entre estranhos em lugares públicos para melhorar o realismo dos seus diálogos. Não sei se é verdade ou não, mas os diálogos em SNF serviriam de evidência favorável. A forma que eles falam, muitas vezes desconexa e sem eloquência, serve justamente para aumentar a humanidade de todos. Nesse momento o filme deixa de ser sobre dança, e se torna sobre esse grupo de pessoas que, para esquecer seus problemas, dançam. As críticas que vieram nos anos seguintes, sobre como esse filme vangloriava a música disco, se tornam infundadas, já que a atmosfera de cinismo que permeia a história fazem do filme o exato contrário.


Adiei o filme por tanto tempo, achando que seria mais um romance cheio de dança, acontece que não é.  O peso com que certos temas são tratados no filme chegam a surpreender. É um clássico esquecido pelos motivos errados, que vale a pena ser revisitado.

Nota: 4/5

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Alguns poemas traduzidos de Frank O'Hara

Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.




Nascido em 1926, Frank O'Hara foi um poeta e crítico de arte americano famoso pelos versos autobiográficos, pessoais, inspirados pelo jazz, surrealismo e pelo expressionismo abstrato. Morreu cedo, aos 40 anos, atropelado por um Jeep em Fire Island, tendo lançado algumas coleções de poesia e vários artigos de não-ficção sobre os artistas que estavam fazendo sucesso naquela época em Nova York (Jackson Pollock, William Kooning, Franz Kline etc.). No Brasil, que eu saiba, a obra dele ainda é praticamente desconhecida, sendo que nenhum de seus livros foi traduzido por aqui. Até agora. Aqui vocês vão encontrar 5 poemas dele traduzidos por mim. Os originais eu tirei desse site, caso alguém queira ver: http://www.frankohara.org/ Por hoje é só, divirtam-se com a leitura.


ANIMAIS

Você se esquece de como nós éramos antes
quando ainda éramos de primeira classe
e o dia veio gordo com uma maçã na boca

de nada adianta preocupar com o Tempo
mas nós tínhamos alguns truques nas mangas
e fizemos umas curvas fechadas

todos os pastos pareciam nossas refeições
não precisávamos de velocímetros
de gelo e água nós fazíamos coquetéis

Eu não iria querer que fosse mais rápido
ou verde que agora se você estivesse comigo Ó você
foi o melhor de todos os meus dias

CANÇÃO
      
Eu estou preso no trânsito em um táxi
o que é típico
e não só da vida moderna

lama sobe trepada pela treliça dos meus nervos
a maioria dos amantes de Eros terminam com Venus
muss es sein? es muss nicht sein*, eu vos digo


como eu odeio doença, é como uma preocupação
que se torna realidade
e simplesmente não deve ser capaz de acontecer

em um mundo onde você é possível
meu amor
nada pode dar errado para nós, diga-me


AVE MARIA
  
Matronas da América
                               deixem seus filhos irem ao cinema!
tirem eles de casa assim eles não ficam sabendo do que vocês aprontam
é verdade que ar fresco faz bem para o corpo
                                                             mas e quanto a alma
que cresce nas trevas, gravada em imagens prateadas
e quando vocês envelhecerem como envelhecerem vocês devem
                                                                         eles não vão lhes odiar
eles não vão lhes criticar eles não vão saber
                                                            eles estarão em algum país glamouroso
que eles viram pela primeira vez numa tarde de sábado ou matando aula

eles podem até lhes ser gratos
                                                  pela primeira experiência sexual deles
que lhes custou apenas uns centavos
                                              e não perturbou a paz do lar
eles saberão de onde vem as barras de chocolate
                                                                    e os sacos gratuitos de pipoca
tão gratuitos quanto sair do cinema antes do fim do filme
com uma estranha agradável cujo apartamento fica no Edifício Paraíso na Terra
perto da Ponte Williamsburg
                                               ó matronas vocês terão feito os pivetinhos
tão feliz que mesmo que ninguém os pegue no cinema
não fará diferença
                                               e se alguém os pegar será apenas puro tempero
e eles estarão verdadeiramente entretidos de qualquer forma
ao invés de vadiando pelo quintal
                                                       ou nos quartos deles
                                                                                     lhes odiando
prematuramente já que vocês não terão feito nada horrivelmente maldoso ainda
exceto por protegê-los das alegrias mais sombrias
                                                                o que por sua vez é imperdoável
então não me culpem se vocês não seguirem esse conselho
                                                                         e a família se destruir
e seus filhos ficarem velhos e cegos em frente a televisão
                                                                                      vendo
filmes que vocês não deixaram eles verem quando eram jovens


HOJE

Ó! cangurus, lantejoulas, sodas de chocolate!
Vocês são mesmo lindas! Pérolas,
gaitas, jujubas, aspirinas! todas
as coisas que eles sempre falaram sobre

ainda fazem de um poema uma surpresa!
Essas coisas estão conosco todos os dias
até mesmo em cabeças-de-praia e caixões. Elas
têm significado. Elas são fortes como rochas.

DORMINDO SOBRE A ASA

Talvez seja para evitar alguma grande tristeza,
como em uma tragédia da Restauração o herói clama “Durma!
Ó pois o longo profundo sono e então esqueça!”
que se voa, flutuando por sobre as cidades sem costa,
guinando ascendente da calçada como um pombo
o faz quando um carro buzina ou uma porta bate, a porta
dos sonhos, vida perpetuada em amores coloridos em tons
e belas mentiras todas em línguas diferentes.

O medo também se vai, como o cimento, e você
está sobre o Atlântico. Onde fica a Espanha? onde fica
quem? A Guerra Civil foi travada para libertar os escravos,
foi? Uma repentina corrente baixa de ar te relembra da gravidade
e sua posição a respeito do amor humano. Mas
aqui é onde estão os deuses, especulando, perplexos.
Umas vez que você está desamparado, você está, dá pra acreditar
nisso? Nunca acordar para o triste esforço de um rosto?
sempre viajar por sobre qualquer vastidão impessoal,
estar por fora, para sempre, nem dentro nem para!

Os olhos rolam adormecidos como se virados pelo vento
e as pálpebras flutuam levemente abertas feito uma asa.
O mundo é um iceberg, tanta coisa é invisível!
e foi e é, e ainda a forma, ela pode estar dormindo
também. Essas características gravadas no gelo de alguém
amado que morreu, e você é um escultor sonhando espaço
e velocidade, sua mão apenas poderia ter feito isso.
Curiosidade, a mão apaixonada do desejo. Morte,
ou sono? Há velocidade o suficiente? E, mergulhando,
você renuncia tudo que você fez por si mesmo,
o reino do seu auto-navegar, pois você deve despertar

e respirar seu próprio calor nessa imagem amada
esteja ela morta ou meramente desaparecendo,
como o espaço está desaparecendo e sua singularidade.

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*Alemão para "deve ser? não deve ser". Jogo com a pergunta de Beethoven no quarteto de cordas nº 16, opus 35 (no caso, a frase é "muss es sein? es muss sein!"). Nesse caso, a pergunta serve para questionar os padrões de sexualidade, tema que ainda era "novidade" na época (entre aspas, já que homossexualidade é coisa discutida desde a Grécia Antiga), vide o verso "a maioria dos amantes de Eros (sexo) terminam com Vênus (mulher)", então segue "deve ser? não deve ser".