Dedicado
ao meu avô, Claudio, cujo nome completo
eu
nunca aprendi e me envergonho de perguntar.
Era a missa de sétimo dia do seu
tio-avô, aquele que faleceu, disseram ao menino, mas ele não entendia bem
qualquer uma dessas palavras. Sabia que pessoas morriam quando chegava a hora
deles irem embora, mas não fazia ideia do por que, nem fazia ideia do que fosse
uma missa ou do que era igreja ou do que faziam todas aquelas pessoas reunidas.
Tudo que ele sabia era que a noite estava bem escura e seu pai também não
queria ir a tal da missa, por isso ambos ficaram no carro, em frente à igreja,
vendo o vulto da multidão em fluxo se cumprimentando e entrando no grande feixe
de luz que eram seus portões, até que todas as pessoas já estavam dentro e só
restavam os outros carros, alguns também com as luzes acesas e uma ou duas
pessoas dentro.
Não
era como se ele quisesse entrar para assistir mesmo. Lembrava-se de uma outra
vez em que fora forçado a ir à igreja, não fazia muito tempo, por outro motivo
cujo significado ele desconhecia. Horas intermináveis de um homem vestido de
maneira esquisita e com uma forma de falar tão esquisita quanto, falando
palavras que ele não compreendia, fosse pelo significado adulto ou pelo eco
acompanhado do sotaque, às vezes seguidas em coro pelas pessoas que assistiam.
Tinha vontade de se juntar ao coro, mas não sabia o que tinha que dizer nem
quando, nem como todo mundo parecia saber o que vinha justamente na hora certa.
Pior que isso era o número de vezes que todos decidiam se levantar, depois
sentar de novo, depois se ajoelhar e se levantar só para sentar mais uma vez,
provavelmente por ordens da figura lá na frente. Por sorte ele não precisava
fazer isso sempre; não somos católicos, sua mãe dizia, nossa família é
espírita.
O
rádio estava ligado e seu pai estava com o banco da frente do carro virado para
trás, tentando dormir. O menino olhava em volta, sem ter o que fazer. Não dava
para ver mais nada, exceto algumas luzes dos carros e outras áreas do
estacionamento, em que a iluminação ainda estava funcionando, na qual os carros
eram bastante nítidos, não só silhuetas. Não sabia há quanto tempo estava lá,
nem quanto tempo a mais iria ficar, só sabia que a palavra missa indicava
demora, espera e tédio, por isso tirou os sapatos e se deitou esticado no banco
de trás. O tempo voava quando ele dormia. Fechava os olhos toda a noite e, no
que pareciam ser apenas cinco minutos, era manhã novamente, exceto quando ele
não conseguia dormir, aí demorava a sequer os primeiros cinco minutos passarem.
Pode
ser que ele tenha dormido por uns minutos, quem sabe nem isso, mas, quando
levantou, tudo estava igual, exceto por um aperto que ele sentia em seu coração
e uma profunda dificuldade para respirar e vontade de chorar. Pensou em seu avô
por algum motivo, que também não quis saber da missa. Sua mãe insistiu para que
ele fosse, tinha medo quando ele ficava sozinho, por não saber se ele conseguia
fazer as coisas direito sem ninguém por perto. Disse que não queria ir, que ela
não se preocupasse, pois ele não sairia da cadeira da mesa da cozinha.
-
Quer que eu deixe a televisão ligada? – sua filha perguntou.
-
Não, vou ficar aqui ouvindo o jogo do Corinthians no rádio.
-
Por que no rádio, pai? Televisão é mais confortável.
-
E pra mim faz diferença? Prefiro o rádio, eles explicam melhor o que acontece.
O
menino sabia que algo tinha se passado com seu avô. Não sabia o que, nem porque
sabia, mas era certo que era por isso que ele estava se sentindo tão mal.
Chamou por seu pai, que roncava. Ele deu um salto de seu banco, gemendo coisas
sem sentido até conseguir entender o que estava acontecendo ao seu redor.
-
Que foi filho? – ele disse bem calmo em comparação ao menino agitado e
desesperado que chorava.
O
menino tentava expressar o problema, mas não conseguia elaborar direito, as
lágrimas lhe sufocavam e o pulmão parecia acorrentado -... Meu vô... Meu vô –
não passava disso.
-
Deve ter sido um sonho, filho, não aconteceu nada.
Mas
não adiantava, o garoto insistia. Estava certo de que aquilo não era sonho.
Tivera pesadelos antes, sabia que eles eram formados de imagens. Nunca os
entendia depois de acordar, mas via as coisas. Se de fato ele dormir naquele
período deitado no carro, não teve sonho algum.
Sem
ver outra saída, o pai pediu para que seu filho se acalmasse e aguardasse
enquanto ele ia tentar tirar sua esposa e sogra da igreja. Conseguiu entrar,
tímido, fazendo um sinal da cruz antes de cruzar a porta – pois ele, sim, era
católico pré-natal – e, com algum esforço, localizou sua família. Caminhou
curvado até a fileira em que elas estavam, como se seu pescoço e cabeça
abaixados lhe tornasse invisível. Discretamente, sinalizou para elas, mas não
foi visto. Então cutucou a senhora na ponta e pediu, aos sussurros, que ela
tentasse chamar atenção de sua esposa. A senhora, cutucou seu marido ao seu
lado, que cutucou uma jovem desconhecida ao lado dele, que cutucou a mãe dela,
que estava ao lado da mulher procurada. Então ela percebeu que estava sendo
chamada e tentou rastejar até o corredor sem causar incômodos, o que não foi
possível. Ela e sua mãe, uma atrás da outra, totalmente curvadas, sussurrando
pedidos de licença e perdão. Quando estavam todos no corredor, envergonhados
correram para fora da igreja, ainda com alguma esperança de que ninguém os
havia percebido, nem os estava olhando com reprovação naquele exato momento.
Do
lado de fora, ele começou a se explicar para esposa irritada:
-
É o Nelson que não para de chorar.
-
Mas por quê?
-
Eu não sei, ele não explica direito, só fala que é alguma coisa com o avô.
-
Deve ter sido sonho.
-
Foi o que eu pensei, mas não é. Ele diz que não é.
-
Cadê ele agora?
-
No carro, óbvio, não ia poder entrar na igreja com ele daquele jeito.
-
Vai acalmar ele agora, não vai dá pra sair assim, sem se despedir de ninguém.
-
Já tentei, não deu. Vê se você consegue agora.
Ela
foi resmungando entre a irritação e a preocupação. Seu filho só tinha cinco
anos, mas sempre foi tão quieto, até se esquecia dele de vez em quando; fosse o
que fosse, não devia ser só brincadeira.
Chegando
ao carro, ele estava quieto, apenas as lágrimas ainda correndo pelo rosto e a
respiração seguindo agitada. Tentaram - todos juntos - perguntar de novo o que
aconteceu, mas ele continuava sem sucesso em sua explicação. Nem ele sabia
direito o que ele estava sentindo, só tinha impressão de que algo acontecera ao
seu avô naquele exato momento, e que eles tinham que ir para casa socorrê-lo. A
mãe pedia que ele dissesse um motivo, qualquer coisa que separasse aquilo de um
susto causado por pesadelo. Ele só dizia que não era pesadelo, não era
pesadelo. Cansados, desistiram e entraram no carro. Além do mais, a insistência
do menino era tanta que bem podia ser verdade. Voltaram para casa em silêncio,
até mesmo o rádio quieto. Chateados por terem praticamente fugido da missa,
logo de alguém que havia sido tão importante para família – fato desconhecido à
criança, que continuava mal, mas pelo menos aliviada de que estavam a caminho
de casa.
Foi um longo retorno, mas chegaram.
Acomodaram o carro na garagem e abriram a porta de casa. Foi aí que o menino
saiu correndo. A mãe tentou segurá-lo, mas foi tudo muito rápido. Pediu para
que ele parasse, preocupada que algo realmente tivesse acontecido e pudesse
apresentar um risco para ele, mas ele não ouvia, já tinha feito todas as voltas
pela casa como se soubesse exatamente o quê estava procurando e onde estava.
Entrou na cozinha, ofegante da correria, o jogo em seus momentos finais, mas
ninguém escutando. A porta da cozinha que levava ao corredor em direção ao
banheiro estava aberta, as luzes do banheiro, acesas. Feliz, o garoto correu em
direção a porta do banheiro, esquecendo toda a discrição, e a abrindo sem
nenhuma cerimônia.
Lá
estava ele, como sempre, com a camisa de manga curta com os botões abertos,
deixando a barriga inchada amostra e os pelos ralos no seu peito, a bermuda
arriada e seu corpo parte sentado no vaso, parte atirado na pia logo ao lado, o
rosto paralisado com a boca aberta totalmente entortada, os olhos de íris
enevoadas cercadas pelos globos sempre avermelhados, fixos, como sempre, em um
ponto central, sempre sem vida, mas agora ainda mais mortos. Ele não falava,
ele não tentava corrigir sua posição; mantinha os braços soltos, largados. Ele
parecia denso.
Sua
mãe veio correndo para agarrar o menino e tirá-lo de lá, plenamente consciente
do que se passou. Para o menino, tudo girava em confusão, aquelas três pessoas,
tão poucas, pareciam um enxame de abelhas enlouquecidas. A avó gritava em
semi-histeria por seu marido, alguém chama uma ambulância, alguém chama uma
ambulância. Menos, mãe, gritava a filha, pedindo contenção. O pai discava o
telefone, acho que é derrame, dizia baixinho para si mesmo, só pode ser. E o
rádio indiferente mantinha sua propaganda do Conhaque Presidente, entre cada
lanço do jogo cujo seu espectador não pôde ficar sabendo do final.
Agora
luzes vermelhas vibravam pelo céu ao som de uma sirene barulhenta. Entravam
homens de branco carregando uma maca. A mãe finalmente conseguiu remover o
garoto daquele lugar. Mas ele ainda vira seu avô deitado, sendo levado embora,
talvez ainda vivo já que todos corriam tanto, mas ele ainda não tinha tanta
noção. Então a mãe lhe deu um beijo na
testa e disse que voltava logo, o pai já estava dentro do carro novamente e a
avó gemia e chorava sentada no sofá.
A
noite continuou a passar, mas ele não foi dormir. Queria ver todos voltando.
Tentava se distrair com uns brinquedos, mas não conseguia. A avó também não
prestava atenção na televisão ligada. Alguém telefonou e ela falou de seu
marido, que ele foi levado ao hospital por causa de um derrame, por isso foi
embora da missa daquele jeito, mas que não podia falar mais nada, não precisava
vir em casa não, estava tudo bem, mesmo que não estivesse, com fé daria tudo
certo.
Era
madrugada, mas ninguém aparecia; ninguém voltava. Não queria ir deitar, mas
achava que devia. Será que era isso a morte? Será que seu avô não voltava mais
e também teria uma missa? Então isso acontecia com todo mundo mesmo. Pensou
sobre o que acontecia depois da morte. Já ouvira por aí de céu e inferno, mas
não entendia direito o que acontecia por lá. Se você fosse bom, iria para o
céu, mau, para o inferno. No céu, ficaria feliz para sempre, no inferno,
triste. Mas não importava, sua mãe dizia que não era nisso que nós
acreditávamos. Céu e inferno não existem, existem planos espirituais, outros
mundos para onde os mortos são encaminhados. Os bons, para lugares bons. Os
maus, para lugares maus também. Céu e inferno, mas com nomes diferentes e,
aparentemente, eram mais que dois lugares. Não queria morrer; achava que
ninguém perto dele morreria, só os outros, mas estava errado, ele também ia ser
levado daquele jeito um dia.
O
telefone tocou mais uma vez. Agora sua avó não falava nada, só ouvia. A
televisão ainda ligada, mas sem som. Então ela voltou a chorar como antes. O
menino, ele também.
Deixando mais uma vez minha opinião aqui de que adorei o conto! Ficou ótimo!
ResponderExcluir