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quinta-feira, 29 de maio de 2014

La Grande Bellezza (A Grande Beleza) - Paolo Sorrentino [2013]


Tem horas que eu gostaria de ter estudado história da arte - ou de vir a estudar um dia - só para que eu saiba do que estou falando, se as minhas impressões de tudo realmente fazem sentido. Uma impressão que eu tenho é de que a Itália é um país instável para arte. Em épocas, a Itália conseguiu ser o centro artístico da Europa, gerando nomes reconhecíveis para a eternidade. Em outras, foi um completo deserto cultura. No cinema, por exemplo, é difícil citar nomes italianos de grande relevância após a década de 70, após Visconti, Pasolini, Fellini, de Sica; literatura não é diferente, viajando pelo tempo e deixando grandes espaços em branco (Dante - Leopardi - Moravia...). Isso ou sou eu que vi poucos filmes italianos da década de 80, 90 e 00, a culpa sempre pode ser minha. De qualquer forma, Sorrentino - que anteriormente já havia dirigido filmes interessantes, mas sem todo esse clamor da crítica - apareceu com A Grande Beleza e chamou a atenção de todo mundo, inclusive a minha.


O filme que, ao estilo de Fellini em Oito e Meio, passeia entre o real e o surreal, apresenta seu protagonista da melhor maneira possível, em uma festa da alta sociedade. Em meio à música terrível - geralmente remixagens de clássicos da música popular italiana ou somente música eletrônica -, o espectador é apresentado à decadência daqueles "ricos e famosos", com Jep Gambardella (Toni Servillo, que fez vários dos outros filmes do Sorrentino) no centro, comemorando seu 65º aniversário. Aos 25 anos, Jep escreveu o romance "O Aparato Humano", que virou um clássico instantâneo. Depois disso, nunca escreveu mais nada, usando como desculpa a sua vida social que o mantinha muito ocupado. Na verdade, os motivos de Jep variam ao longo do filme, assim como sua personalidade. O cínico fechado e cansado que aparece nos primeiros minutos, que desmascara a pretensão dos que o cercam e se declara um misantropo, aos poucos vai se abrindo, seu passado é apresentado e, com ele, os motivos dele ter se tornado quem se tornou.


Desde o início os contrastes que o filme quer apresentar são logo deixados claros. A primeira cena, com o grupo de turismo se encontrando em um dos vários pontos históricos de Roma, ao som de cantos quase celestiais, pacífica - embora termine com uma morte que nunca é explicada -, interrompida pela festa caótica de Jep. Uma cena se passa durante o dia, outra à noite; uma ao som de música erudita, outra eletrônica; uma vazia de pessoas, outra lotada. E mesmo na festa, esses opostos continuam, os velhos e os jovens, os que se encaixam nos padrões de beleza e os que não, e assim por diante. É difícil dizer se sobre o que exatamente é A Grande Beleza, mas eu argumentaria que é justamente sobre isso, aguardem que eu logo me explico.


Nos aspectos básicos de um filme, A Grande Beleza é perfeito. Destaque vai para a atuação de Toni Servillo que é o único personagem presente na história, mas os outros, em seus breves e fragmentados momentos, mantém o padrão de qualidade. As cenas também ficam gravadas na memória, tanto pela beleza das imagens quanto pelo significado. Esse é um filme que vale a pena rever e que faz que o espectador queira voltar nas cenas - o que eu fiz algumas vezes - para perceber coisas novas que na primeira vez passaram direto pela vista.


É difícil descrever um filme cujo o ponto forte é o conceito e não o enredo sem fazer com que ele soe chato ou parado. A Grande Beleza está longe disso, mesmo que a história seja apenas a crise de identidade de um playboy de 65 anos. Pode parecer simples, mas o filme faz um trabalho tão bem feito ao convidar o espectador para dentro da mente desse playboy que até a maneira como os cenários são filmados fazem lembrar o funcionamento da mente de um escritor, observando de detalhes, percebendo as sensações. É isso, A Grande Beleza é um filme sensorial, que impressiona pelas imagens e conta a história por meio delas, ao invés de usar um enredo típico. Por exemplo, a cena da criança que é usada em uma festa para impressionar os convidados. Os pais a chateiam, então ela vai até um número de baldes de tinta e os atira em uma tela deixada no centro da festa. Irritada, ela atira as tintas sobre a tela com a intenção de "estragar tudo", mas acaba criando uma obra de expressionismo abstrato que é vendida por muito dinheiro. No fim, não fica claro se a menina é ciente disso ou não. A cena não parece estar ligada a nada no enredo, mas trata justamente do tema geral do filme que leva em conta a pretensão e superficialidade do estilo de vida de Jep.


Esse filme foi o ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro. Não vi seus concorrentes para dizer se foi merecido ou não, nem acho que isso importa. O que eu sei é que esse é um filme excelente, original, com algumas referências a Fellini (cena do navio, por exemplo), por isso sugiro que vejam algo dele também. As partes mais surreais podem afastar àqueles que preferem enredos claros, mas isso é problema de vocês, não meu. Eu indico.

Nota: 5/5



domingo, 18 de maio de 2014

Machado aos humildes; ou Qual é a da Patrícia Secco?

Não sou eu que falo difícil, vocês que mudaram a língua toda, seus putos.
Uma autora da qual nenhum de nós tinha ouvido falar até ontem se tornou o centro das atenções literárias dessa semana, para servir de preocupação à meia dúzia de desocupados. Estou falando de Patrícia Secco e seu infame projeto que visa facilitar as histórias de O Alienista, de Machado de Assis, e Pata da Gazela, de José de Alencar. E daí?, o que não falta nesse mundo é adaptação de clássicos para o público jovem. Pois é, esse é o problema. Adaptações desse tipo existem aos montes. Ah, mas Patrícia Secco inovou, disse que o público-alvo das suas futuras desfigurações não serão as crianças e os adolescentes, mas os adultos já alfabetizados, porém humildes. Ela fala do pedreiro, da faxineira, do lixeiro, da dona Maria, do seu José, dessa gente simples que sabe, mas não pode ler - afinal as classes média e alta são cheias de leitores. Assim o povo terá acesso tanto financeiro quanto cognitivo aos clássicos. Para Patrícia eu digo, se o problema é o linguajar, já existe dicionário.

O negócio é o seguinte. Financeiramente falando, clássicos são livros extremamente acessíveis. Sejam pelas milhares de edições de bolso facilmente disponíveis e variando entre os 5 e 15 reais (acho difícil que o projeto da dona Secco fique abaixo disso), seja por sebo, onde é possível encontrar edições conservadas, em capa dura pela mesma faixa de preço dos de bolso se não mais barato - minha edição conjunta de Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro não passou de 6 reais (notem que foi dois por um, então três contos cada), nem a edição conjunta de Helena e O Alienista, nem uma coleção de contos e crônicas - porque, porra, eu sou humilde também, não posso largar fortunas em livros quando minhas contas já me arrancam o fígado. Quanto ao linguajar, não há nada que possa ser feito. Os leitores precisam entender que, sem linguagem, não resta muito da literatura. Uma palavra não é só um meio de contar história. Uma palavra sozinha carrega muito mais sentido que apenas a sua própria definição, quando escrita por um autor que sabe o que está fazendo; Machado sabia. Isso sem falar do contexto histórico que se perderia por completo com a modernização - "tradução", como alguns estão chamando o ato proposto - do vocabulário.

O que mais me incomoda nessa história toda não é a mudança nas obras desses autores, isso já aconteceu várias vezes. É a falta de necessidade por algo assim que realmente me irrita. E pior, com envolvimento do governo. Se a Patrícia tivesse desenvolvido a ideia, trabalhado na adaptação e apenas mandado para uma editora, seria problema dela. Por que envolver o governo? São tantos os projetos em prol da leitura que poderiam ser lançados, ela cria logo um que envolve a diluição dos melhores escritores do país?

Calma, deixa eu voltar um pouco, essa questão tem outros lados. Eu não serei elitista a ponto de dizer que apenas gente com determinado grau de cultura deve conhecer essas histórias - tecnicamente, é exatamente isso que eu estou dizendo, mas calma que eu logo me explico. Não serei idiota o suficiente para dizer que a solução desse problema é facilitar as histórias. A capacidade de compreensão literária de um indivíduo, como tudo na vida, surge com a prática. Uma pessoa que nunca leu, pode ser um motorista de ônibus ou diretor de multinacional, não será capaz de compreender Machado de Assis, e a linguagem dita rebuscada não será o único obstáculo. Voltando um pouco mais, não existe qualquer relação entre cultura e escolaridade. É muito possível que o motorista de ônibus que eu citei, com acesso a uma boa biblioteca e uma pitada de curiosidade, seja mais culto que o diretor de multinacional que não lê. Com isso, eu quero dizer que não é necessário facilitar Machado de Assis. A pessoa que não lê, em geral, provavelmente não lerá um clássico só porque ele foi facilitado. Existem milhares de livros fáceis, que serviriam de porta de entrada para a literatura mais complexa, sendo lançados todos os anos - não é errado dizer que a grande massa das publicações atuais são compostas de livros acessíveis, alguns desses até são bons. É assim que se forma um leitor, lhe apresentando algo que lhe seja interessante e compreensível. Esse livro trará, além da experiência em si, outro livro, talvez mais complexo - salvo quando o leitor aprendiz é preguiçoso, esse viverá para sempre na terra das leituras confortáveis e nada pode ser feito; a escolha da leitura, assim como o indivíduo leitor, é livre para fazer o que quiser. Voltando ao elitismo, eu quis dizer que apenas pessoas com determinado grau cultural deveriam ler Machado de Assis, mas não que a cultura é algo exclusivo a certas castas, pelo contrário. O que o governo ou a Patrícia Secco deveria desenvolver é uma forma de facilitar o acesso e desenvolvimento da cultura, não o acesso a Machado de Assis.

Foi assim comigo. Já contei essa história antes, mas repito, só comecei a ler depois de velho (19 anos, que não é velho, mas é tarde para começar a ler). Li Bukowski e gostei, nem imaginava que literatura dessas existia. Fui dele para Raymond Carver. De lá fui pra Hemingway. Cheguei em Dostoiévski e, depois, decidi encarar, com sucesso, Machado de Assis. Foi gradual. A ordem não foi bem essa, outras leituras intermediárias tiveram seu papel, mas hoje, não muito tempo depois, me tornei um leitor quase competente, apesar de leigo em teoria literária. Nunca li uma adaptação e nem pretendo. Não sou de pular etapas, se um livro é "muito difícil" para mim em um momento, leio outras coisas até eu conseguir aguentar o tranco. A lista de livros que funcionaram para mim, obviamente, não funcionariam para todo mundo por uma simples questão de gosto. O que é sempre igual, é o processo de avanço.

Tendo dito tudo isso, achei certas reações descabidas. Não sei quem é Patrícia Secco ou o que ela fez (uma porrada de livros infantojuvenis, de acordo com o Google), a primeira vez que ouvi seu nome foi agora durante toda a polêmica. Se ela de fato acredita nessa ideia, acho que deveria ser livre para realizá-la (e eu livre para ignorá-la e chamá-la desnecessária) - Machado de Assis é domínio público afinal de contas, e não é como se a obra original fosse ser substituída pela adaptada nas livrarias. Até acreditaria na boa vontade dela, se o governo não estivesse envolvido no projeto. Agora estou achando que ela quer ganhar dinheiro lançando mais uma coleção de clássicos "água com açúcar/mertiolate que não arde", para dar ao povo e eles fingirem que leem. Tapar o buraco que é a capacidade de leitura básica e de interpretação de texto do brasileiro médio. É uma atitude tipicamente brasileira. É encurtar as escadas ao invés de exercitar as pernas. É oferecer vagas de fácil acesso às universidades para alunos de escola pública ao invés de usar o dinheiro dos impostos para melhorar o ensino público de modo que os alunos sejam capazes de conseguir sozinhos uma vaga na universidade.

Talvez não tenha sido essa a intenção da autora. Talvez ela realmente esteja achando sua ideia genial e incompreendida. É difícil, no entanto, acreditar que não é tudo uma questão de ego. De ela querer ser a mão caridosa a alimentar nosso povo inculto. Pena que ela decidiu mastigar toda a comida antes de servir. E eu não acho, só para por um ponto final nessa questão, que seja elitista ser contrário a esse tipo de projeto. Acredito que seja necessário que o leitor de um clássico, qualquer que seja, ou qualquer outro livro complexo, deve adquirir aos poucos a cultura necessária para compreensão da obra - para que isso se alcance, acredito na divulgação (divulgação, repito, não facilitação) da cultura. Elitista é aquele que acredita que o único meio disponível às ditas "pessoas simples" seja o da simplificação. Que é impossível para aqueles que não têm dinheiro adquirirem conhecimento para compreenderem quaisquer que sejam os livros em sua integra, sem uma desnecessária desfiguração. Esse é o único caminho capaz de resolver a situação, não escondê-lo, embora seja mais complicado e não tão lucrativo - talvez seja esse o problema.  

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Digam A Satã Que O Recado Foi Entendido - Daniel Pellizzari (2013)


Após oito anos sem escrever ficção, o escritor e tradutor, Daniel Pellizzari, lança um novo romance pela coleção Amores Expressos, da Companhia das Letras. Essa coleção foi responsável por eleger um número de autores e mandá-los para um país estrangeiro, para que escrevessem uma história de amor que se passasse nesse país. Alguma polêmica cercou a escolha desses autores, mas eu prefiro não entrar em detalhes quanto a essa questão, julgarei o livro apenas pelo que ele é, separado das burocracias que o cercam. Pellizzari foi para Dublin e voltou com essa história.

Um estrangeiro de origem não estabelecida chamado Magnus Factor, está passando pelos últimos dias de sua estadia em Dublin, até que, em um local famoso pelos seus milk-shakes, ele encontra uma eslava, troca umas palavras erradas com ela (que não fala bem inglês), e ele decide ficar. Junto com outros moradores da cidade, todos imigrantes, com exceção de Bartholomew - também conhecido como Barry -, irlandês de Cork, ele mantém uma agência de turismo que foca em locais mal-assombrados fictícios. Em prosa polifônica, passeando por vários narradores ligados direta ou indiretamente a narrativa central, formando por meio de extratos das vidas de cada personagem uma história completa que inclui uma menina suicida, traficantes gregos, terroristas universitários e cultos apocalípticos obscuros.

O que logo se percebe em Digam a Satã é a variedade das vozes. Enquanto Magnus segue uma narrativa em primeira pessoal mais tradicional, Barry faz uso da oralidade "traduzida" típica dos skangers - o que inclui vários erros de gramática intencionais -; outros têm narração mais introspectiva, psicológica, com uso de fluxo de consciência; outras partes são narradas em terceira ou segundo pessoa, outra é só diálogo; o que realmente importa é que, embora nem sempre fique claro quem está narrando - pelo menos não no começo, mas após algumas páginas é bem fácil localizar a personagem -, as vozes nunca se confundem. Não me aconteceu em momento algum de ler uma parte narrada por personagem x e eu achar que estava sendo narrada por y porque os estilos seriam muito parecidos, não acontece. A individualidade das vozes é muito bem definida.

Essa variedade de narradores faz com que o leitor "se apegue" mais a uns que a outros, o próprio autor disse ter preferido a voz de Patrícia (a menina suicida) e tido vontade de escrever mais com ela - que ele um dia realize essa vontade. No entanto, essa impressão é apenas pela preferência por uma voz, não porque o personagem é insuficientemente desenvolvido e mais pudesse ser incluso durante as suas cenas. A verdade é que, uma história desse tipo, linear e em terceira pessoa, não teria o mesmo efeito - ficaria chato, simples assim. Uma das maiores riquezas do livro, além da linguagem, é a personalidade rica das personagens. Sem a primeira pessoa, isso se perderia - e parabéns ao Pellizzari por explorar tão bem cada uma de suas criações, não tem um estilo literário escolhido para a narração que não combine com seu respectivo narrador.

Deixando um pouco de lado as personagens para falar do roteiro, ele é bem original, a sinopse não lhe faz justiça. Vi alguns críticos de Skoob falando que o livro é uma loucura sem rumo e sem sentido. Vão por mim, quando um livro desses é criticado pelos membros do Skoob, leiam o livro - tem cada pérola naquele site que Jesus amado. É de fato bem espalhado e, até as últimas páginas, o leitor não vai entender bem como tudo aquilo está acontecendo, mas quando a última peça do quebra-cabeça se encaixa, um enredo surpreendente, divertido - o senso de humor do Pellizzari é um caso a parte - e enciclopédico em algumas partes - devo ter perdido muitas referências por não entender muito de mitologia e nem ter pesquisado sobre alguns nomes que eu desconhecia (ficará para uma releitura) - se forma. Considerando que a história, devido às regras da coleção, teria que se passar em Dublin, foi bom ver que nenhum clichê foi utilizado (catolicismo, alcoolismo - personagens bebem, mas isso não é só para encaixar no estereótipo irlandês - e James Joyce - que não é mencionado em parte alguma).

Pessoas reclamam por falta de autores nacionais contemporâneos de qualidade, aí está um. Ao terminar esse livro, quis conhecer os outros trabalhos dele, infelizmente são poucos e raros. Tem duas coleções de contos esgotadas e sumidas (acho que uma antologia com contos de ambos os livros foi lançada em e-book, pra vocês que conseguem ler e-books), e um romance de 9 (?) anos atrás, chamado Dedo Negro Com Unha, que ainda pode ser achado na Cultura ou em sebos (embora os preços da Estante Virtual sejam abusivos - 99 reais, sério mesmo?). Ele fez várias traduções, por outro lado, muitas que você pode ter lido, indo de Neil Gaiman (Sandman) e David Mazzuchelli (Asterios Polyp, que eu li e logo resenharei), nos quadrinhos, a William S. Burroughs e Jeffrey Eugenides, nos romances. Indicado.

Nota: 5/5

Leia o trecho que a Companhia das Letras disponibilizou, caso meu julgamento te seja insuficiente:
http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13510.pdf

domingo, 4 de maio de 2014

12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave) - Steve McQueen [2013]


Que dificuldade está sendo pra escrever essa resenha. Faz meses que eu assisti esse filme, nem lembro mais quando foi. Quase escrevi o post imediatamente depois, mas já me arrependi de ter feito isso antes, então dei um tempo pra digerir o conteúdo antes de transformar minhas impressões em palavras, agora as palavras não querem vir. Não é pela complexidade do filme, mas pela importância dele.


12 Anos de Escravidão conta a história de Solomon Northup (Chiwetel Ejiofor em seu primeiro papel de relevância), homem livre do norte (Nova York) dos EUA antes da guerra-civil.  Solomon é filho de pai liberto, então nunca viveu a escravatura, embora a visse de perto. Tinha uma família, um emprego, apesar da sociedade ainda não estar exatamente ajustada a ideia de igualdade racial (se não está até hoje, imagine naqueles dias). Um dia Solomon recebe uma oferta para ser músico em um circo, eles ganham a confiança dele, até que - em Washington -, eles o sequestram e o enviam para o sul, onde a escravidão ainda existia. Eles o torturam até que ele fique quieto e encare que vai ser vendido como escravo para um fazendeiro. Assim ele segue pelos próximos doze anos, como escravo, mesmo, legalmente, sendo um homem livre.


Quando vi o cartaz desse filme pela primeira vez, isso antes da estreia, pensei que seria mais uma isca pra Oscar. Tinha todas as características básicas: baseado em livro, história real, escravidão. Se a minha experiência servia de qualquer coisa, seria mais um filme redundante, explorador do emocional do público, no qual o homem branco aprende dos males da escravatura e encontra a redenção. Errei, ainda bem que eu errei, muito obrigado Steve McQueen.

A cena mais agonizante, bem filmada, do filme. Longa, mas provavelmente não tanto quanto parece ser. Basicamente um quadro capaz de resumir o filme todo.
Um pouco sobre o diretor. Steve McQueen é um cineasta ainda relativamente jovem, pelo menos na indústria. Fez diversos curtas e 12 Anos é seu terceiro longa-metragem, sendo que seus predecessores foram muito bem recebidos pela crítica, apesar de ninguém ter reparado neles. Hunger (Fome) tendo sido sobre os membros do IRA, presos políticos, que entraram em greve de fome em 1981 - que eu não vi. Depois Shame (Vergonha), sobre um cara de trinta e poucos anos viciado em sexo - vi, achei medíocre, mas bem filmado. 12 Anos é o filme que serviu para por a prova todos os talentos desse diretor, cujo o futuro muito me interessa. Não é só um filme muito bem feito, mas uma adaptação de grande importância de uma autobiografia esquecida pela história, que agora está ganhando mais atenção e traduções para o mundo inteiro.


Pra começar, o que torna 12 Anos diferente de todos os outros filmes sobre escravidão, é que a história é contada pela perspectiva de um negro. Pois é, né? Quem diria que só agora surgiu um desses. Que não precisa manipular o espectador, apenas mostra a realidade da forma mais crua possível. Não se meta a ver esse filme esperando um filme leve, os momentos de maior violência, por mais que não sejam tão explícitos quanto poderiam ser, são ainda muito densos. Os escravos são tratados como máquinas feitas de carne - acho difícil comparar a animais, quando nenhum animal é estuprado ou chicoteado nesse filme. Fica pior quando o espectador lembra que tudo isso que é mostrado não é ficção, é história, existiu um Solomon Northup, e dezenas de homens, mulheres e crianças que se viram na mesma situação, mas não tinham toda a eloquência de Solomon para conseguir fugir. A obra é tão fiel à história, que vai ser obrigatória nas escolas dos EUA, estão entendendo do que eu estava falando quando usei a palavra importante logo no começo da resenha, não foi à toa.


Vamos falar das atuações por um instante. Não tem muito o que falar quando tudo é impecável. As interações entre Solomon e Patsey (Lupita Nyong'o, um Oscar bem merecido) são os pontos mais emocionais do enredo. O fato de que ele não pode ajudá-la, mesmo depois dele receber sua liberdade de volta (não é spoiler se aconteceu em 1853, largue de frescura) é quase desesperador, e a Lupita sabe demonstrar sofrimento - as cenas dela são as mais difíceis de assistir e as mais impressionantes também.


Por mais perfeito que tudo seja, sou obrigado a questionar as intenções de Brad Pitt. Ele foi um dos produtores do filme, caso vocês não saibam. Com base nessa informação, adivinhem quem foi o branco que salvou o dia? Brad Pitt. Isso não é uma crítica ao branco salvar o dia, foi o que aconteceu, Samuel Bass, o carpinteiro canadense, enviou várias cartas para que os amigos de Northup o salvassem, então não tem muito o que se discutir aí. Mas é um papel meio pequeno para o Brad Pitt (apesar do cartaz italiano para o filme ser composto em 80% da cabeça dele...). Seria ego? Não importa, não é como se ele tivesse estragado o papel, foram cinco minutos bem atuados. Não tem ninguém ruim no elenco, nem os figurantes.


Vou correr o risco de exagerar aqui e dizer logo de uma vez que acho que esse é o melhor e mais relevante filme feito sobre a escravidão nos EUA. Merecedor de todos os prêmios e elogios que recebeu, talvez mais. Eu daria o Oscar de melhor diretor para McQueen ao invés de Cuarón. Se você não viu ainda, veja, vale cada minuto. Pretendo ler o livro agora (agora = um dia desses).

Nota: 5/5