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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Confissão no quarto 219 - parte 3 [conto]


Se você ainda não leu as outras partes, leia de uma vez:
parte 1: http://delirandoeescrevendo.blogspot.com.br/2014/02/confissao-no-quarto-219-conto-parte-1.html
parte 2: http://delirandoeescrevendo.blogspot.com.br/2014/02/confissao-no-quarto-219-conto-parte-2.html


Peguei o livro para analisar esse texto. A letra era horrível, como se eu, com meus tremores fosse o autor, claramente feito as pressas. A primeira palavra poderia tanto ser um título quanto o destinatário de uma carta, objetivo do escritor, com toda a certeza, ao escolher o nome de uma mulher para dar início ao texto. Mas carta não poderia ser. Não que toda carta deva ser enviada, mas essa nem poderia, exceto que toda a bíblia fosse junto. O que era aquilo era a pergunta que ficava. Começava com tom de poema, mas era todo escrito em prosa, mas era longo demais e o tom poético não se mantinha, tornando-se, mais para o meio, uma espécie de narrativa confessional bem direta e realista, se referindo a alguém como um pedido de perdão – obviamente à moça-título.
O início poético também tinha uma conotação bastante erótica. “Sonho com o dia que verei seus olhos em frente aos meus, olhos cor de terra e mel, olhos curiosos, olhos abertos, olhos vivos. Quero que me enterre com essa terra e me deixe enterrar-me em você. Se você é a terra, que eu seja o fogo, basta me olhar para abastecê-lo e ele nunca se apaga. Pôr-lhe-ei em merecido pedestal e me alimentarei de seu sexo como néctar divino que é, será meu templo, minha deusa, minha guia. Quero ver-lhe em gozo eterno, epiléptico, alcançarei sua divindade com minha torre de babel que fala e usa todas as línguas.” Nesse momento o autor dizia querer ver a moça, mas nas sessões diretas eles pareciam se conhecer, estar se conhecendo, nisso o erotismo quase imaginário desaparecia, afinal, a realidade deve ter atingido ao autor.
Era bem bonito, de qualquer forma. Por que escrito em uma bíblia e abandonado, não sei. Ficava mais irônico na frase “que esqueçamos Cristo e nos entreguemos a Dionísio”. Um pouquinho de heresia nunca faz mal.
A perda do erotismo, contudo, não era brusca. Acontecia ainda de maneira poética, quando o autor parecia encarar suas realidades e decidia analisá-las. “Você me deixa pornográfico, garota.”, ele dizia, assumindo sua própria exaltação. Mas não pedia desculpas. Questionava a si mesmo e a ela se a causa de seu desejo era séria ou impeto juvenil, primeira pergunta que qualquer apaixonado deveria se perguntar, independente das circunstâncias. Ainda assim, desaprovava que suas emoções fossem mantidas em silêncio e ainda encerrava: “Eras e mais eras disfarçando sentimentos, diminuindo-os, por medo de sabe-se lá o quê. Medo que se tire proveito da verdade, então chora-se pelo excesso de mentira. Por um instante, desejo ser diferente, desejo ir até você, minha musa, só para dizer-te estas mesmas palavras, com cada vírgula e entonação. Ria de mim, se assim for seu desejo, chama-me de louco, pois o sou. Perdoa-me se te incomoda quando eu digo que quero te apreciar e satisfazer, que quero te vulgarizar e, quem sabe - no futuro -, te amar; é apenas a verdade.” Primeiro o desejo, então a sua satisfação, e somente depois existe a possibilidade do amor. Concordava com cada palavra.
Então ele dava um salto e admitia frustração. Não com sua musa, essa ele se esforçava por compreender. Era uma frustração generalizada com a qual eu me identificava. Ele contava, nessa nova parte sem poesia, o que poderia ser um caso real, vagamente descrito. Senti-me envergonhado por minha leitura daqueles trechos, era como se invadisse as notas pessoais de um estranho, esquecendo-me que se tratavam de linhas abandonadas, quem poderia dizer quantas pessoas já não o haviam lido? Quantos não ficaram sabendo daquele começo de tarde, daqueles minutos de conversa tímida e tensa? E pior, quantos não ficaram sabendo dos pensamentos íntimos do autor naquele momento, todas as inseguranças que, no texto, ele fazia questão de relatar da forma mais literal possível, sem os disfarces confortáveis do símbolo e da metáfora. Prefiro nem parafraseá-lo por medo de desconhecer o que estou expondo, talvez só a última linha desse parágrafo, a mais chamativa e que resume tudo: “Viro as costas e contemplo a Terra que gira só para chegar sempre no mesmo lugar”. Não é isso a vida? Repetição constante. Acordar, trabalhar, almoçar, voltar para o trabalho, chegar em casa e perceber que é hora de dormir para que se possa acordar, trabalhar e seguir esse fluxo infinito com a ilusão de que o dia seguinte trará algo de melhor, que interromperá o ciclo. Mas quando algo de fato interrompe, como estava descobrindo, o sentimento é desconfortável. Não traz qualquer felicidade e faz com que você pergunte, então é isso? Será que vale a pena? Mas pensar em acabar com tudo e contemplar o nada é ainda mais terrível. Por isso seguimos girando em círculos como loucos iludidos.
O último parágrafo é um pedido de perdão. Por tudo, tanto para a musa quanto para o autor, que parece querer se auto-perdoar pelas próprias ações e erros. Arrepende-se por falar demais e criar expectativas inalcançáveis, se enganar e ainda cobrar dos outros que não cumpriram com as impressões que ele errou em ter para começo de conversa. Ego, ele repete diversas vezes. Todas as suas ações, quando analisadas com a devida sinceridade, não passavam de alimento para o ego. Até mesmo o texto que eu lia era apenas algo que ele poderia usar para demonstrar sua própria sensibilidade e visão de mundo – não é isso que todo o escritor faz? -, mas que não passa de masturbação, masturbação intelectual ou emocional que fosse. “É possível ser egocêntrico e se auto-desprezar?”, ele pergunta.
É com premonição, portanto, que o texto termina. “Mais possivelmente irei escrever um novo texto, falando sobre este texto e como ele não passa de uma série de autopiedade, e vou me arrepender de tê-lo mostrado para qualquer um principalmente você”. Enquanto eu terminava a leitura, via outro mosquito fazer sombra ao passar ao meu lado. Por um instante me esqueci tudo que li, fecho a bíblia e voltei à caça. Estava na cabeceira marrom da cama, tentando se camuflar, mas eu o via. Sentei-lhe uma porrada sagrada e ele se desmanchou como seu parente, deixando duas marcas de sangue na contracapa do livro. 

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E tem mais uma última parte.
Obs.: se o texto da bíblia parece familiar, é porque é um poema que eu fiz uns meses atrás e coloquei no blog em dezembro. Ele foi removido esse mês e não vai voltar, sinto muito.

Um comentário:

  1. Não li o poema da bíblia :c Quero ler me mande um email já que não vai postar mais, quero le-lô. ( gabriellygeisler@hotmail.com ). Parabéns, eu gosto muito dos seus contos, desejarai eu escrever tão bem quanto você. Sabes brincar muito bem com as palavras, e gostei muito dessa parte : “Sonho com o dia que verei seus olhos em frente aos meus, olhos cor de terra e mel, olhos curiosos, olhos abertos, olhos vivos. Quero que me enterre com essa terra e me deixe enterrar-me em você. Se você é a terra, que eu seja o fogo, basta me olhar para abastecê-lo e ele nunca se apaga. Pôr-lhe-ei em merecido pedestal e me alimentarei de seu sexo como néctar divino que é, será meu templo, minha deusa, minha guia. Quero ver-lhe em gozo eterno, epiléptico, alcançarei sua divindade com minha torre de babel que fala e usa todas as línguas.”

    caminhandoemmarte.blogspot.com.br

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