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quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Iniciantes - Raymond Carver (2009)

Não tem nenhuma foto boa no google da edição nacional.
Prometi que ia resenhar esse aí conto por conto, né? Sinto muito, mudei de ideia. Já resenhei Por Que Não Dançam um tempo atrás, não falarei sobre esse conto de novo, mas você pode procurar a resenha dele por aí (não terá link, porque eu quero que você se esforce - jeito positivo de dizer que não quero me esforçar, porque eu quero ficar mais positivo esse ano. Ano que vem eu fico negativo de novo, o plano é variar anualmente, pra deixar a vida interessante). Mudei de ideia quanto às resenhas individuais porque, como eu pretendo dizer mais a frente no texto, os contos desse volume têm temas recorrentes, seria possível desenvolver interpretações individuais para cada história, mas quem tem tempo pra isso?

Iniciantes é a versão original dos 17 contos que compuseram a primeira coletânea de Raymond Carver, de 1981,  Do Que Falamos Quando Falamos Sobre Amor (que aqui recebeu o nome de Iniciantes). A diferença é que, naquela primeira edição, os contos foram desfigurados durante a edição. Para que vocês tenham uma ideia numérica, Do Que Falamos tem aproximadamente 140 páginas, enquanto Iniciantes tem aproximadamente 286, posso estar enganado, mas o número de contos foi o mesmo em ambos os volumes, ou seja, mais de 50% foi cortado do manuscrito original. Verdade que alguns contos poderiam ter alguns trechos retirados, mas, durante a leitura, não consegui imaginar o livro tão fatiado assim.

Falando das histórias, todas seguem um tema em comum, a classe média baixa americana, os restos do American Dream. Famílias totalmente reconhecíveis fora do mundo da literatura. Nessa coletânea se vê o alcoolismo - do qual Raymond Carver foi vítima por muitos anos -, desemprego, divórcio, traição, violência - muito mais reprimida e acidental que explícita, e, salvo pelo conto "Diga Às Mulheres Que A Gente Já Vai, sempre insinuada -, frustração e solidão. É difícil chamar um personagem de Carver de personagem, de tão reais que eles são. São pessoas fictícias, talvez reais, mas transformadas em ficção.

O estilo de Carver é descrito como minimalista, cheio de repetições, frases curtas e precisas, pouquíssima linguagem poética e muito da "teoria do iceberg" de Hemingway. Os detalhes, embora breves, inserem o leitor na vida daquelas pessoas, a ponto de se tornar difícil ler mais de um conto em sequência. É complicado acompanhar a vida de um casal que acaba de perder o primeiro filho e, quando a história acaba, simplesmente seguir em frente para a próxima - que pode ou não ser tão emocionalmente brutal. Essa é a chave dos contos de Iniciantes, as emoções, que raramente são descritas - afinal Carver é um bom escritor e sabe que uma história deve fazer com que o leitor sinta, não descrever os sentimentos -, mas são percebidas, estão por todo o lado nos contos, em todos os espaços vazios entre as palavras.

Nem tudo é perfeito, apesar de tudo. "É Meu", por exemplo, conto sobre um casal durante o momento da separação - justo no meio daquela última briga, sabem? - e parte da briga é a guarda do filho recém-nascido. Foi até estranho, no meio de tanta sutileza, ver a mão do autor pesar tanto. É uma história terrivelmente triste, mas tão pouco polida que toda a "insinuação" - se é que ele tentou insinuar qualquer coisa - se perdeu completamente. O que devia ser um choque, acabou previsível e toda a emoção se perdeu. Isso sem mencionar um primeiro parágrafo cheio de redundâncias. Se em algum conto se justificariam edições pesadas, seria nesse, mesmo assim, não sei se salvaria.

De qualquer forma, é uma falha em meio a 16 pérolas. Iniciantes, o conto que dá título à coletânea, um diálogo entre dois casais "iniciantes no amor", tentando de alguma forma definir um conceito para esse sentimento. Talvez esse seja o melhor conto da obra. Formado quase que completamente por diálogos, contém praticamente todas as fases do amor. Desde a ignorância feliz dos primeiros anos até as crises de ciúme do fim, analisando os relacionamentos passados e presentes, e como cada um tem seu conceito indiscutível do que é amor. Logicamente, ele não poderia concluir o conceito, por isso termina em bebedeira, medo e lágrimas. Uma obra-prima do conto, sem dúvida. (apesar de também conter um erro de revisão, mas eu relevo, foi um dos únicos no livro inteiro.)

O conto, infelizmente, é uma forma de narrativa esquecida. Se já se lê pouco no Brasil, até mesmo romances, contos estão quase no mesmo patamar da poesia, o que é uma pena. Já escrevi isso antes, mas insisto, um bom conto pode ter a mesma força e peso de um romance, independente do número de páginas, e Iniciantes é a prova disso. Indico a leitura para qualquer um que goste de boas histórias, reais e brutas, mas cheias de sentimentos, e queira se inserir no mundo dos contos.

Nota: 4,5/5

Leia um trecho: http://www.companhiadasletras.com.br/trecho.php?codigo=12686

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Her [Ela] - Spike Jonze (2013)


Então nos encontramos novamente depois de tanto tempo, não é Spike Jonze? Primeiro em Being John Malkovich (Quero Ser John Malkovich, 1999), depois Adaptation (Adaptação, 2002); e por algum motivo eu achei que dessa vez seria mais fácil, sem o Charlie Kaufman (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças; Sinédoque, Nova York) escrevendo a história, eu estava errado. Você ainda vai tirar de mim o pouco que resta da minha sanidade.


Esse vai ser difícil de resenhar, por isso vou enrolar mais um pouco. Esse é meu parágrafo "meta", dedicado ao Charlie Kaufman, falando sobre a resenha ao invés de resenhar. Acontece que, para analisar direito esse filme, eu vou precisar fazer uma autoanálise primeiro. Pois é, sou levado a crer que Ela é capaz de causar uma experiência totalmente individual em seus espectadores. A ideia geral pode ser a mesma, as impressões, os efeitos, as reações, essas eu sei que não devem existir duas iguais. Vejam só, explicando a resenha eu meio que já vou resenhando devagar, viu que maravilha? Isso é ótimo. Acho que não tem outro jeito, vou falar da sinopse e depois vou bancar o psicanalista e vocês cuidem para proteger seus neurônios porque a viagem vai ser foda.


Tudo começa com Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) escrevendo - narrando, para ser mais preciso - uma carta de aniversário de casamento para um casal de idosos; essa é a profissão dele, escrever cartas para os outros, meio que um cartão online personalizado - detalharei melhor o futuro de Ela mais para frente na resenha. Ele é solitário, apesar de ter alguns amigos, como a Amy (Amy Adams) e seu marido - que não é bem um amigo, mas veio no pacote -, só que, desde o divórcio com sua esposa, Catherine (Rooney Mara - também dedicarei um parágrafo para falar das mulheres desse filme, aguardem), ele não tem sido o mesmo. Anda dedicando seu tempo a videogames, uma espécie de telessexo futurista, e outras fugas que seu mundo oferece. Até que é lançado o OS1, um sistema operacional capaz de "simular" - ou seria melhor dizer desenvolver? - emoções humanas. Ele compra uma, ela se chama Samantha (Scarlett Johansson, só a voz, porque inteira seria bom demais pra ser verdade) e os dois formam uma ligação quase imediata, até que o tempo vai passando e os dois se apaixonam. Pois é.

Li algumas resenhas sobre esse filme e percebi que a maior parte foca no conceito do OS1 e o que ele representa, ignorando o resto do mundo futurístico apresentado, e isso acabou fazendo que muitos estranhassem o amor entre o ser humano e a "máquina". Analisando o contexto, é possível perceber que não é tão bizarro, apesar de tudo. Pra começar, de todos os filmes de ficção científica que eu já vi, esse foi o que menos exigiu da minha suspensão de descrença e o que mais me pareceu "possível", principalmente porque ele não representa um futuro distante - você não verá carros voando, nem robôs, no entanto imagens 3D, redes sociais avançadas, computadores móveis, multifuncionais e portáteis movidos por comando de voz, são comuns e, convenhamos, plausíveis, visto que esse parece ser o caminho que as novas tecnologias estão trilhando: interatividade, portabilidade e interconexão. O desenvolvimento de um computador com "consciência" e capaz de chegar muito próximo das emoções pode parecer questionável, mas uma maior elaboração sobre esse ponto exigiria que eu questionasse a origem das emoções humanas em si e eu não sou a melhor pessoa para isso - simplesmente não sei, nem sei se alguém sabe, sobre os detalhes biológicos das emoções humanas e aprofundamento do que chamamos de consciência, no entanto ambos esses conceitos são trabalhados no filme e vão te perturbar profundamente.


Só que isso não explica o motivo de eu ter visto a relação de Theodore e Samantha, não só como plausível, mas previsível. Bom, isso é por causa da solidão. Tá aí outro conceito problemático. Creio que, com exceção da morte, a solidão é o maior medo do ser humano. Não o medo de estar sozinho, eu mesmo sou bastante recluso, digo o medo de ser sozinho. E isso vai além do simples ato de ter ou não companhia. Tive momentos de extrema solidão acompanhada, maiores até do que em noites de sábado isolado no meu apartamento. E sei, de fato, que não sou o único. É chato admitir, mas o ser humano é solitário e sofre por isso, precisa de sociabilidade, nem que seja só para mostrar para os outros que não se é sozinho. Existe uma noção de tristeza em não ter companhia, a sociedade não gosta, as pessoas olham torto e questionam, o recluso é visto como louco em certas situações, por isso é tão comum ver pessoas forçando a companhia, querendo mostrar o quanto eles são "bem resolvidos" e sociáveis. Um filósofo ou psicólogo provavelmente seria mais apropriado para esse texto, o que me conforta é que Spike Jonze não fez faculdade. Se ele pode fazer um filme desses mesmo sem ter estudado, eu posso me arriscar a falar sobre - tenha força, Raphael, continue, você ainda está fazendo sentido.

Esse medo de estar sozinho é exposto nas redes sociais. Lembram quando nada disso existia? Eu lembro muito bem. Particularmente falando, não gostei de toda essa história de facebook, twitter e os caralho à quatro. Nunca fiz parte, nem farei, mas entendo e observo quem participa. Raro ver alguém na rua que não esteja com os dedos num celular, falando com alguém ou vendo outros falarem, querendo fazer parte de uma conversa. Essas pessoas costumam estar cercadas de gente, mesmo assim preferem bater um papo com a caixa de plástico. Claro, tem outra pessoa do outro lado da caixa, mas e se não tivesse? Se as respostas fossem as mesmas, faria diferença se a pessoa do outro lado tivesse ou não um corpo? Provavelmente, por razões sexuais, dependendo do seu interesse na outra pessoa, mas existe uma porcentagem de chance que o corpo da outra pessoa no celular seja irrelevante. E isso só vai aumentar, a cada nova invenção esses celulares e redes sociais criam uma nova dependência. Não vai nunca eliminar a necessidade do contato físico, mas o filme nunca dá a entender que eliminaria. Repito, Theodore tinha amigos e uma esposa, era um cara normal, só teve a sua solidão potencializada devido ao trauma do divórcio - trauma visto que ele não queria a separação.


Outra demonstração disso no filme é o já mencionado telessexo. No filme, não se trata de um número telefônico específico e pago. É mais ou menos uma rede social. Você está sozinho na cama à noite e pede para o seu computador procurar outras pessoas no mesmo estado, interessadas em um auto-erotismo acompanhado à distância. Cada interessado deixa sua isca em mensagem de voz e vão se pescando e se escolhendo. O que vem a seguir é o típico telessexo: "o que você está vestindo?" "eu? quase nada." "vai! me sufoca com um gato morto! vai!" (essa cena é do filme e é hilária)

Tendo em vista tantos fatores, somados à pornografia que domina 99,9% da internet hoje em dia, é de se surpreender que, caso uma empresa criasse um computador, algumas pessoas iriam tentar se relacionar com a coisa. De início seria estranho, até que os casos aumentariam em quantidade e isso seria o suficiente para tornar o fenômeno aceitável - o que acontece no filme. Ainda assim, certas pessoas resistiriam e com razão. Catherine, ex-esposa de Theodore, expõe esse lado com clareza. Ele só está se entregando para a máquina porque é mais fácil. Seres humanos são difíceis de lidar, a OS1 não tem esse peso. Por outro lado, pouco separa a OS1 de um ser humano, além da falta de um corpo físico. Samantha é ciente de si, auto-reflexiva, aprende com experiência, parece capaz de sentir emoções - embora seja questionável o quanto das emoções são reais ou programadas, mas isso é questionável para o ser humano também, em se tratando das origens das emoções -, tem senso de humor - isso é mais do que pode se dizer de alguns seres humanos -, compõe música, tem percepção artística e criativa, é compassiva, só não tem corpo mesmo.


Como se não bastasse, Ela não se mantém apenas nos conceitos básicos de relacionamentos interpessoais afetivos ou não, mas também desenvolve um lado existencialista quando a Samantha aprende a se perceber como um ser igual a qualquer outro; ela repara na mortalidade e limitações do homem e agradece por sua condição de máquina. É melhor eu parar por aqui, mas acho importante apontar que o terceiro ato do filme lida com certos conceitos budistas de iluminação que me são fascinantes. Basicamente, o que os criadores da OS1 fazem é pegar a obra completa de Alan Watts - filósofo especializado em budismo - e dão um jeito de, baseado nos arquivos que ele deixou, replicarem sua consciência em um sistema operacional, porque esse seria o segundo passo, reviver os grandes gênios para que seus conhecimentos se eternizassem e avançassem. É impressionante e, por mais que soe incrível quando descrito dessa maneira, é tangível, é possível acreditar em algo assim acontecendo em 30 ou 50 anos - chute alto porque eu não faço ideia da nossa atual colocação tecnológica.

Falando do filme, para variar um pouco, visualmente falando é tudo muito impressionante. Até onde eu sei, foram gravadas cenas em Los Angeles e em Shangai, mesclando esses dois mundos para dar uma noção de Estados Unidos futurista, sem perder a noção da realidade. O que mais me impressionou, desde a primeira cena, foi o uso das cores. Tudo é vibrante e belíssimo de se ver, o que me faz apontar, diferentemente da maioria desses filmes "experimentais", Ela é bastante acessível. Os conceitos filosóficos, por mais densos e complexos que sejam, não ofuscam a experiência de compartilhar uma vida ou uma história que um bom filme costuma trazer. A técnica não intimida, Ela consegue equilibrar a inteligência e o entretenimento perfeitamente, sendo capaz de agradar ambos os mundos. É possível assisti-lo para pensar - de fato, é a maneira mais aproveitável e indicada - ou para passar um tempo, num fim de semana chuvoso.

Só agora eu reparei em um padrão nos ângulos de filmagem durante os diálogos...
Isso me lembra da "Criança Alien", o personagem do videogame que Theodore está sempre jogando. A primeira vista ele é alívio cômico, um bichinho que fica mandando o Theodore se foder a cada dois minutos (dublado pelo Spike Jonze). Só que tem mais, eu estava falando da visualização plausível de um futuro próximo, é mais que óbvio que videogames iriam ter um papel. Faz tempo que eu não jogo nada, uns cinco anos ou mais, mas eu me lembro de como estavam as coisas naquele tempo e faço ideia de como devam estar hoje. A percepção dos personagens e interação entre jogador e personagem são fatores que estão sendo cada vez mais trabalhados, então um jogo como aquele me pareceu extremamente preciso, um jogo que permite ao jogador completa projeção de si no personagem. Em outra cena, essa projeção é muito bem demonstrada, quando ele sai para um encontro com uma mulher de verdade pela primeira vez após o divórcio, ele descreve a criatura (Criança-Alien) e a maneira que ele fala sobre o personagem é quase uma auto-descrição, um ser extraterrestre, solitário, sem família, perdido em um mundo estranho; por isso os dois são tão ligados, mesmo que a criança não seja real e, na verdade, seja bem irritante, ela é Theodore, o menino é uma projeção causada por alta inteligência artificial. E o próprio encontro é..., bom, se eu começar a descrever cada cena, vou acabar estragando o filme pra todo mundo, mas vejam e vocês vão entender do que eu estou falando. Cada segundo em Ela é como um ensaio sobre os relacionamentos humanos, em algum momento o filme vai falar de você, quando você menos esperar.

Voltando a história da projeção, isso me lembra outra cena - falei que ia parar de descrever, mas essa não estraga nada. Conforme as pessoas foram entrando em relacionamentos afetivos com seus sistemas operacionais, outras começaram a se oferecer como corpo na relação. Não por dinheiro, não é uma forma de prostituição, só uma pessoa que, sensibilizada com o relacionamento entre a pessoa e sua OS1, tem vontade de fazer parte e servir como corpo intermediário sexual. Esse conceito pra mim foi fascinante, esse desejo de outra pessoa "querer fazer parte" daquele amor, oferecendo a si próprio para tanto. É aquela questão da solidão, seres humanos querem fazer parte das coisas. Assim como o videogame, parece, a primeira vista, algo tão avulso de se incluir no filme, que não afeta de maneira alguma a superfície do roteiro central - embora afete o subtexto -, mas torna todo aquele mundo tão mais real e cheio. Tira aquela impressão solipsista de que o mundo do filme existe para o protagonista e ele deve estar envolvido em tudo que nele ocorre. São detalhes que enriquecem e muito a obra, para aqueles dispostos a prestarem atenção.


Quero falar um pouco da atuação, porque as interpretações me impressionaram bastante, mas antes, um pouco de superficialidade. Ok, um monte de atrizes lindas em um filme só não é nada impressionante, Woody Allen fez isso durante toda a sua carreira. Mas Olivia Wilde, Rooney Mara, Amy Adams (essa mulher não envelhece! Desde antes da primeira temporada de The Office - 11 anos atrás? - que ela se mantém esse espetáculo!), Portia Doubleday; não é à toa que a Scarlett Johansson só pôde aparecer em voz, se ela aparecesse inteira as câmeras pegavam fogo. Mas, como eu disse, isso é comum em filme - talvez Ela nem apresente as atrizes mais bonitas de Hollywood, apesar de eu ter certeza que, pelo menos na categoria olhos, elas estão lá no topo -, a questão chave aqui é que todas elas parecem reais. Amy Adams, em cenas casuais - como ela descansando em casa -, não usa maquiagem, tem o cabelo bagunçado, aparência cansada; ela é gente, uma mulher como qualquer outra, e, eu não sei vocês, mas isso me impressiona, parece que potencializa a beleza da mulher. Rooney Mara também tem cenas assim em seus flashbacks da relação com Theodore e é a mesma coisa. Achei um toque interessante, principalmente em Ela, já que o conceito chave das personagens aqui é que ninguém é perfeito, ou deve ser perfeito, ou quer ser perfeito - nem a máquina, apesar de tudo. Esses toques, como falta de maquiagem, fortalecem muito o conceito, não sei se intencionalmente ou não.

Agora sim, que tirei isso do meu sistema, vou falar das atuações. Como o Joaquin Phoenix não está concorrendo ao Oscar? Eu sei que esse prêmio já não vale mais nada, se um dia valeu, e que, mesmo que ele fosse nomeado, não ganharia (esse ano vai para o Chiwetel Ejiofor ou para o Leonardo DiCaprio), mas é uma questão de respeito. Afinal, o cara atuou sozinho quase o filme inteiro, reagindo e respondendo para uma voz que não estava lá. Verdade, muita gente fala sozinho, mas ele tem que ouvir a resposta e reagir naturalmente, isso é difícil. O mesmo vale para a Scarlett, foi só um serviço de voz que ela fez, mas foi extremamente competente.  Ela também teve que reagir e responder para coisas que não estavam com ela e, pior de tudo, sem nem mesmo ter um cenário para ajudar a entrar na personagem.


Todo o resto do elenco teve uma performance excelente, mas acho que o destaque, além dos protagonistas, iria para a química entre Joaquin Phoenix e Amy Adams. O contexto entre eles é que os dois são amigos, só tiveram um caso muito tempo atrás, mas os dois se casaram com outras pessoas e cultivaram uma longa amizade. Para que os dois representassem de maneira convincente, Spike Jonze trancava os dois autores quase todos os dias, por uma ou duas horas, em uma sala, para fazer os dois conversarem e se conhecerem melhor. Além disso, em muito do diálogo foi permitido improvisar, para que ficasse mais natural, tudo isso é visível e muito bem feito. De qualquer forma, é difícil não simpatizar com algum dos personagens, até mesmo os menores.


Em geral, Ela é um estudo do futuro das relações humanas, levando como base o presente, triste, mas que entretém e faz rir em muitos momentos, e, mesmo com toda a melancolia do tom e a solidão daquelas vidas, mantém uma visão positiva, mesmo que bem sutil, o que é raro nesse tipo de filme. Dos filmes lançados em 2013 que eu vi até agora, esse foi o melhor. É certo que não vai ganhar o Oscar, mas, por enquanto, Ela é o favorito para ganhar o Prêmio Raphael de Cinema 2013, na categoria de melhor filme, tenho que ver os outros antes de tomar uma decisão. Lembrando que, em 2012, houve empate técnico na categoria entre Holy Motors e Amour, vejamos se algo assim acontece novamente. Por questão de curiosidade, abaixo tem um vídeo de uma entrevista com o diretor e elenco de Ela, no festival de cinema de Nova York, é bem esclarecedor e eu usei algumas informações para preparar esse texto (tá, por causa de problemas técnicos, não consegui jogar o vídeo aqui, mas é fácil de achar, joga "Her Q&A" na busca e vai tá lá, logo de cara, só verifique se é a conferência do Festival de Cinema de Nova York) - que, por sinal, foi minha resenha mais longa.

Nota: 5/5





terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Blue Jasmine - Woody Allen (2013)



Era uma vez, há seis anos - ou sete -, um adolescente inexperiente e inculto saindo com uma garota que ele gostava pela primeira vez. Ele estava nervoso, gaguejava de vez em quando, sentia uma necessidade impulsiva de fazê-la rir a cada dez minutos, mesmo que não intencionalmente, como quando ele quase caiu ao tentar segurar o corrimão da escada rolante - que, em sua defesa, parecia estar se movendo muito mais rápido que os degraus -, ou quando ele começou a fazer comentários críticos sobre as outras pessoas da fila do cinema. 


Foi aí que a garota mudou a vida desse pobre adolescente ao insinuar que ele deveria gostar de Woody Allen, mas ele nem sequer sabia quem era esse cara. Inicialmente, ela não acreditou, mas, depois de insistir um pouco, viu que ele era mesmo um completo ignorante, sendo assim, ela se comprometeu a apresentá-lo ao pobre rapaz e, não muito tempo depois, os dois assistiram Annie Hall - justo o da cena da fila do cinema. O tempo passou e o amor desse adolescente pela garota chegou ao fim - se é que um dia existiu -, mas não o amor por cinema que, naquela noite, nele foi implantado e, mais especificamente, o amor pela obra de Woody Allen.


Desde então, o jovem - que (plot twist à la M. Night Shyamalan) era eu o tempo todo - caçou dezenas dos filmes do Woody e acompanhou cada um dos lançamentos anuais, até mesmo os ruins. Por causa dessa história toda, decidi começar minha série de resenhas de filmes lançados em 2013 por Blue Jasmine, o filme que Woody lançou no ano passado - e, adivinhem, ele já tem outro em pós-produção para 2014 intitulado "Magic In The Moonlight".


O filme conta a história de Jasmine (Cate Blanchett), uma socialite bêbada, viciada em antidepressivos, que tenta reconstruir a vida após ter "descoberto" que a fortuna de seu marido, Hal (Alec Baldwin), era formada por esquemas e roubos. Para recomeçar, no entanto, ela precisaria depender do auxílio da irmã, Ginger (Sally Hawkins), que foi uma das vítimas de Hal, perdendo todo o dinheiro que ela e seu ex-marido ganharam na loteria. Ginger, mesmo assim, tenta perdoar, afinal ela percebe que se recuperou melhor que a irmã, já estando noiva de novo e com uma casa razoavelmente confortável, apesar de simples. Só que essa vida de emprego fixo é uma tortura para Jasmine e aos poucos ela vai quebrando.


Antes de mais nada, tenho que comentar a estruturação do filme. As coisas mais recentes que vi de Woody Allen costumam ser lineares, já esse, embora tenham começo, meio e fim bem localizados, tem um formato completamente diferente do esperado. A "doença mental" de Jasmine envolve ela se perdendo em momentos de um passado que ela quer reprimir - seja por vergonha ou saudade. Ou seja, ela começa a imaginar aqueles velhos tempos de fortuna e literalmente revive a cena, conversando com convidados que não estão lá, fazendo comentários, contando histórias e falando sozinha no meio da rua; esses momentos de loucura, então, servem para que cenas do passado de Jasmine se misturem ao presente e o espectador se aprofunde sobre a vida de todas as personagens, quase como um fluxo de consciência neurótico.


O que me leva a personagem, Jasmine. Que criatura complexa. Nem de perto agradável e difícil de gerar qualquer forma de simpatia, mas tem algo nela que te impede de odiá-la. Algo na vida de Jasmine grita vítima e a Cate Blanchett expressa essa dualidade com maestria. Uma hora ela é uma mulher perdida em busca de redenção, noutra ela volta a julgar aqueles ao seu redor como inferiores, principalmente as escolhas românticas de sua irmã. O desespero escorre pela personagem, como se ela soubesse de todos os seus problemas, de como ela teve sua vida destruída e a de todos ao seu redor, sem necessariamente ser inocente. Mas quase dá para perceber um desejo pela mudança, dificultado pela desconfiança que todos, justificadamente, têm por ela.


Tendo descrito a Jasmine, deixe-me dedicar ao menos um parágrafo à Cate Blanchett. Essa foi a performance do ano, mesmo eu não tendo visto muitos outros filmes de 2013. O próprio Woody Allen, exigente e perfeccionista que ele é, disse que não precisou dirigi-la, só a contratou e saiu do caminho. E é isso que parece, que o filme foi obrigado a sair do caminho dela. Não que os outros atores não sejam extremamente competentes, não percebi um elo mais fraco nesse filme, mas todos ficam invisíveis na presença da Cate, até mesmo o diretor.


Vejam bem, Woody Allen é extremamente autoral, todos os filmes dele têm um pedaço nada sutil da sua personalidade. Blue Jasmine não é tão diferente, em se tratando de direção (as imagens da cidade, o jazz, os monólogos, o existencialismo e até um pouco da comédia estão lá), mas ele não está no enredo, mesmo que algum personagem tenha sido feito para representá-lo. Entendam, essa atriz tem tanta presença que até apagou o diretor da cena. E isso não é ruim, pelo contrário, é impressionante. Já se está ouvindo muito da performance dela em Blue Jasmine e muito ainda vai se ouvir, e me alivia saber que é tudo bem merecido. Jasmine talvez seja a personagem mulher mais forte de Woody desde Annie (Dianne Keaton). Verdade que as duas são opostos, praticamente, mas estou falando de presença de cena, não personalidade. Ah, só pra constar, se você lendo isso nunca viu Annie Hall, veja - só um aviso não relacionado à resenha.


De todos os filmes do Woody que eu já vi, que foram muitos, mas não todos, esse foi o mais pesado. Talvez por tratar de problemas psicológicos e da decadência de uma família, assim como as pretensões e ridículos e mentiras da alta sociedade, tudo com um tom trágico e humor negro, não espere terminar a sessão com um sorriso no rosto. Mas tampouco espere sair entendiado, Blue Jasmine te agarra a alma e te incomoda a mente por semanas, os detalhes da história te mantém questionando e as vidas em cena te fazem refletir sobre a sua própria vida. Esse foi o primeiro da minha lista 2013 e, devo dizer, o ano começou muito bem. É Raphael, esse até que foi fácil, agora quero ver tu resenhar Her sem ter colapso mental.

Nota: 5/5


quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Venenos de Deus, Remédios do Diabo - Mia Couto (2008)


É, Mia Couto está se tornando um dos escritores atuais mais interessantes para mim. "Venenos de Deus, remédios do Diabo" é o segundo livro dele que eu leio, o primeiro tendo sido "Terra Sonâmbula" - o qual não resenhei, porque não soube como e preferi não dizer nada a falar merda -, e, embora eu não queira me adiantar aqui, foi um daqueles livros cuja leitura flui quase que sozinha.

A história se passa em Vila Cacimba, no Moçambique, onde Sidónio Rosa, português, vem servir de médico. Na Vila, contudo, ele trata em especial de um senhor, Bartolomeu Sozinho, mecânico naval aposentado e que vivia de cama, em estado terminal. O velho é casado com dona Munda, e os dois vivem brigando, cheios de rancor um pelo outro. Só que Sidónio tem outro motivo para estar lá, além da medicina, ele tem a memória da filha desse casal, a desaparecida Deolinda, que ele conheceu - no sentido bíblico - em Lisboa, mas que o deixou ao voltar para casa. Se mete na história também o corrupto administrador da Vila, Suacelência, inimigo de longa data de Bartolomeu, cuja participação nos fatos é duvidosa - logo explicarei esse trecho.

"O médico Sidónio Rosa encolhe-se para vencer a porta, com respeitos de quem estivesse penetrando num ventre. Está visitando a família de Bartolomeu Sozinho, o mecânico reformado de Vila Cacimba. À porta, a esposa, Dona Munda, não desperdiça palavra, nem despende sorriso."

A poesia em prosa do Mia Couto é genial. Aprendiz declarado de Guimarães Rosa, ele consegue criar uma linguagem própria, típica do Moçambique, cheia de poesia e mágica, para pintar sua terra sofrida. Não tem como não se prender pela narrativa tão misteriosa. 

A narração, em si, quase não se mete na história. Descreve cenários, aponta gestos, mas sempre que pode dá espaço ao diálogo. São os personagens que regem o enredo de verdade, o narrador está lá apenas para inserir melhor o leitor, mesmo assim, muito pouco, pois nada é confiável em "Venenos de Deus, remédios do Diabo" (viram o que eu falei da participação duvidosa, falei que ia me explicar, tá aí). Aos poucos vão se revelando mentiras sobre a vida de Munda e Bartolomeu, sobre Suacelência, Deolinda, e até Sidónio, embora de longe o mais inocente do livro, tem seus segredos.

"O velho Bartolomeu vai trocando os pés para esconder um buraco na peúga. Até no morrer ele era minucioso. Um esgar a proteger-lhe os olhos do fumo do cigarro, o reformado mecânico inspira e geme por turnos.
- Vê estas olheiras? Já são maiores que a cara inteira. É fígado, o fígado já me chega aos olhos.
O fígado, para ele, não é um órgão. É um fluido que circula pelas entranhas. À porta da morte, a pessoa não passa de um saco de bílis.
- E depois nunca mais saio deste maldito barco.
- Refere-se aos enjoos?
- Aos enjoos, a esta porcaria deste balanço, parece que ainda estou na merda do navio."

Difícil falar sem revelar grandes pedaços da história. E o melhor mesmo é encarar essa leitura às cegas, esperar que tudo vá se revelando e ir se deixando conduzir pela poesia. Por outro lado, isso empobrece a resenha. No entanto, tendo dito isso, se o papel da crítica é só apontar ao seu leitor se ele deve ou não ler determinada obra, vai por mim e leia "Venenos de Deus, remédios do Diabo". É um romance belo e perfeitamente construído, digno de cada um dos elogios que recebe.

Nota: 5/5 

Trechos retirados do primeiro capítulo, disponível para leitura aqui:
http://www.companhiadasletras.com.br/trecho.php?codigo=12649