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sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Her [Ela] - Spike Jonze (2013)


Então nos encontramos novamente depois de tanto tempo, não é Spike Jonze? Primeiro em Being John Malkovich (Quero Ser John Malkovich, 1999), depois Adaptation (Adaptação, 2002); e por algum motivo eu achei que dessa vez seria mais fácil, sem o Charlie Kaufman (Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças; Sinédoque, Nova York) escrevendo a história, eu estava errado. Você ainda vai tirar de mim o pouco que resta da minha sanidade.


Esse vai ser difícil de resenhar, por isso vou enrolar mais um pouco. Esse é meu parágrafo "meta", dedicado ao Charlie Kaufman, falando sobre a resenha ao invés de resenhar. Acontece que, para analisar direito esse filme, eu vou precisar fazer uma autoanálise primeiro. Pois é, sou levado a crer que Ela é capaz de causar uma experiência totalmente individual em seus espectadores. A ideia geral pode ser a mesma, as impressões, os efeitos, as reações, essas eu sei que não devem existir duas iguais. Vejam só, explicando a resenha eu meio que já vou resenhando devagar, viu que maravilha? Isso é ótimo. Acho que não tem outro jeito, vou falar da sinopse e depois vou bancar o psicanalista e vocês cuidem para proteger seus neurônios porque a viagem vai ser foda.


Tudo começa com Theodore Twombly (Joaquin Phoenix) escrevendo - narrando, para ser mais preciso - uma carta de aniversário de casamento para um casal de idosos; essa é a profissão dele, escrever cartas para os outros, meio que um cartão online personalizado - detalharei melhor o futuro de Ela mais para frente na resenha. Ele é solitário, apesar de ter alguns amigos, como a Amy (Amy Adams) e seu marido - que não é bem um amigo, mas veio no pacote -, só que, desde o divórcio com sua esposa, Catherine (Rooney Mara - também dedicarei um parágrafo para falar das mulheres desse filme, aguardem), ele não tem sido o mesmo. Anda dedicando seu tempo a videogames, uma espécie de telessexo futurista, e outras fugas que seu mundo oferece. Até que é lançado o OS1, um sistema operacional capaz de "simular" - ou seria melhor dizer desenvolver? - emoções humanas. Ele compra uma, ela se chama Samantha (Scarlett Johansson, só a voz, porque inteira seria bom demais pra ser verdade) e os dois formam uma ligação quase imediata, até que o tempo vai passando e os dois se apaixonam. Pois é.

Li algumas resenhas sobre esse filme e percebi que a maior parte foca no conceito do OS1 e o que ele representa, ignorando o resto do mundo futurístico apresentado, e isso acabou fazendo que muitos estranhassem o amor entre o ser humano e a "máquina". Analisando o contexto, é possível perceber que não é tão bizarro, apesar de tudo. Pra começar, de todos os filmes de ficção científica que eu já vi, esse foi o que menos exigiu da minha suspensão de descrença e o que mais me pareceu "possível", principalmente porque ele não representa um futuro distante - você não verá carros voando, nem robôs, no entanto imagens 3D, redes sociais avançadas, computadores móveis, multifuncionais e portáteis movidos por comando de voz, são comuns e, convenhamos, plausíveis, visto que esse parece ser o caminho que as novas tecnologias estão trilhando: interatividade, portabilidade e interconexão. O desenvolvimento de um computador com "consciência" e capaz de chegar muito próximo das emoções pode parecer questionável, mas uma maior elaboração sobre esse ponto exigiria que eu questionasse a origem das emoções humanas em si e eu não sou a melhor pessoa para isso - simplesmente não sei, nem sei se alguém sabe, sobre os detalhes biológicos das emoções humanas e aprofundamento do que chamamos de consciência, no entanto ambos esses conceitos são trabalhados no filme e vão te perturbar profundamente.


Só que isso não explica o motivo de eu ter visto a relação de Theodore e Samantha, não só como plausível, mas previsível. Bom, isso é por causa da solidão. Tá aí outro conceito problemático. Creio que, com exceção da morte, a solidão é o maior medo do ser humano. Não o medo de estar sozinho, eu mesmo sou bastante recluso, digo o medo de ser sozinho. E isso vai além do simples ato de ter ou não companhia. Tive momentos de extrema solidão acompanhada, maiores até do que em noites de sábado isolado no meu apartamento. E sei, de fato, que não sou o único. É chato admitir, mas o ser humano é solitário e sofre por isso, precisa de sociabilidade, nem que seja só para mostrar para os outros que não se é sozinho. Existe uma noção de tristeza em não ter companhia, a sociedade não gosta, as pessoas olham torto e questionam, o recluso é visto como louco em certas situações, por isso é tão comum ver pessoas forçando a companhia, querendo mostrar o quanto eles são "bem resolvidos" e sociáveis. Um filósofo ou psicólogo provavelmente seria mais apropriado para esse texto, o que me conforta é que Spike Jonze não fez faculdade. Se ele pode fazer um filme desses mesmo sem ter estudado, eu posso me arriscar a falar sobre - tenha força, Raphael, continue, você ainda está fazendo sentido.

Esse medo de estar sozinho é exposto nas redes sociais. Lembram quando nada disso existia? Eu lembro muito bem. Particularmente falando, não gostei de toda essa história de facebook, twitter e os caralho à quatro. Nunca fiz parte, nem farei, mas entendo e observo quem participa. Raro ver alguém na rua que não esteja com os dedos num celular, falando com alguém ou vendo outros falarem, querendo fazer parte de uma conversa. Essas pessoas costumam estar cercadas de gente, mesmo assim preferem bater um papo com a caixa de plástico. Claro, tem outra pessoa do outro lado da caixa, mas e se não tivesse? Se as respostas fossem as mesmas, faria diferença se a pessoa do outro lado tivesse ou não um corpo? Provavelmente, por razões sexuais, dependendo do seu interesse na outra pessoa, mas existe uma porcentagem de chance que o corpo da outra pessoa no celular seja irrelevante. E isso só vai aumentar, a cada nova invenção esses celulares e redes sociais criam uma nova dependência. Não vai nunca eliminar a necessidade do contato físico, mas o filme nunca dá a entender que eliminaria. Repito, Theodore tinha amigos e uma esposa, era um cara normal, só teve a sua solidão potencializada devido ao trauma do divórcio - trauma visto que ele não queria a separação.


Outra demonstração disso no filme é o já mencionado telessexo. No filme, não se trata de um número telefônico específico e pago. É mais ou menos uma rede social. Você está sozinho na cama à noite e pede para o seu computador procurar outras pessoas no mesmo estado, interessadas em um auto-erotismo acompanhado à distância. Cada interessado deixa sua isca em mensagem de voz e vão se pescando e se escolhendo. O que vem a seguir é o típico telessexo: "o que você está vestindo?" "eu? quase nada." "vai! me sufoca com um gato morto! vai!" (essa cena é do filme e é hilária)

Tendo em vista tantos fatores, somados à pornografia que domina 99,9% da internet hoje em dia, é de se surpreender que, caso uma empresa criasse um computador, algumas pessoas iriam tentar se relacionar com a coisa. De início seria estranho, até que os casos aumentariam em quantidade e isso seria o suficiente para tornar o fenômeno aceitável - o que acontece no filme. Ainda assim, certas pessoas resistiriam e com razão. Catherine, ex-esposa de Theodore, expõe esse lado com clareza. Ele só está se entregando para a máquina porque é mais fácil. Seres humanos são difíceis de lidar, a OS1 não tem esse peso. Por outro lado, pouco separa a OS1 de um ser humano, além da falta de um corpo físico. Samantha é ciente de si, auto-reflexiva, aprende com experiência, parece capaz de sentir emoções - embora seja questionável o quanto das emoções são reais ou programadas, mas isso é questionável para o ser humano também, em se tratando das origens das emoções -, tem senso de humor - isso é mais do que pode se dizer de alguns seres humanos -, compõe música, tem percepção artística e criativa, é compassiva, só não tem corpo mesmo.


Como se não bastasse, Ela não se mantém apenas nos conceitos básicos de relacionamentos interpessoais afetivos ou não, mas também desenvolve um lado existencialista quando a Samantha aprende a se perceber como um ser igual a qualquer outro; ela repara na mortalidade e limitações do homem e agradece por sua condição de máquina. É melhor eu parar por aqui, mas acho importante apontar que o terceiro ato do filme lida com certos conceitos budistas de iluminação que me são fascinantes. Basicamente, o que os criadores da OS1 fazem é pegar a obra completa de Alan Watts - filósofo especializado em budismo - e dão um jeito de, baseado nos arquivos que ele deixou, replicarem sua consciência em um sistema operacional, porque esse seria o segundo passo, reviver os grandes gênios para que seus conhecimentos se eternizassem e avançassem. É impressionante e, por mais que soe incrível quando descrito dessa maneira, é tangível, é possível acreditar em algo assim acontecendo em 30 ou 50 anos - chute alto porque eu não faço ideia da nossa atual colocação tecnológica.

Falando do filme, para variar um pouco, visualmente falando é tudo muito impressionante. Até onde eu sei, foram gravadas cenas em Los Angeles e em Shangai, mesclando esses dois mundos para dar uma noção de Estados Unidos futurista, sem perder a noção da realidade. O que mais me impressionou, desde a primeira cena, foi o uso das cores. Tudo é vibrante e belíssimo de se ver, o que me faz apontar, diferentemente da maioria desses filmes "experimentais", Ela é bastante acessível. Os conceitos filosóficos, por mais densos e complexos que sejam, não ofuscam a experiência de compartilhar uma vida ou uma história que um bom filme costuma trazer. A técnica não intimida, Ela consegue equilibrar a inteligência e o entretenimento perfeitamente, sendo capaz de agradar ambos os mundos. É possível assisti-lo para pensar - de fato, é a maneira mais aproveitável e indicada - ou para passar um tempo, num fim de semana chuvoso.

Só agora eu reparei em um padrão nos ângulos de filmagem durante os diálogos...
Isso me lembra da "Criança Alien", o personagem do videogame que Theodore está sempre jogando. A primeira vista ele é alívio cômico, um bichinho que fica mandando o Theodore se foder a cada dois minutos (dublado pelo Spike Jonze). Só que tem mais, eu estava falando da visualização plausível de um futuro próximo, é mais que óbvio que videogames iriam ter um papel. Faz tempo que eu não jogo nada, uns cinco anos ou mais, mas eu me lembro de como estavam as coisas naquele tempo e faço ideia de como devam estar hoje. A percepção dos personagens e interação entre jogador e personagem são fatores que estão sendo cada vez mais trabalhados, então um jogo como aquele me pareceu extremamente preciso, um jogo que permite ao jogador completa projeção de si no personagem. Em outra cena, essa projeção é muito bem demonstrada, quando ele sai para um encontro com uma mulher de verdade pela primeira vez após o divórcio, ele descreve a criatura (Criança-Alien) e a maneira que ele fala sobre o personagem é quase uma auto-descrição, um ser extraterrestre, solitário, sem família, perdido em um mundo estranho; por isso os dois são tão ligados, mesmo que a criança não seja real e, na verdade, seja bem irritante, ela é Theodore, o menino é uma projeção causada por alta inteligência artificial. E o próprio encontro é..., bom, se eu começar a descrever cada cena, vou acabar estragando o filme pra todo mundo, mas vejam e vocês vão entender do que eu estou falando. Cada segundo em Ela é como um ensaio sobre os relacionamentos humanos, em algum momento o filme vai falar de você, quando você menos esperar.

Voltando a história da projeção, isso me lembra outra cena - falei que ia parar de descrever, mas essa não estraga nada. Conforme as pessoas foram entrando em relacionamentos afetivos com seus sistemas operacionais, outras começaram a se oferecer como corpo na relação. Não por dinheiro, não é uma forma de prostituição, só uma pessoa que, sensibilizada com o relacionamento entre a pessoa e sua OS1, tem vontade de fazer parte e servir como corpo intermediário sexual. Esse conceito pra mim foi fascinante, esse desejo de outra pessoa "querer fazer parte" daquele amor, oferecendo a si próprio para tanto. É aquela questão da solidão, seres humanos querem fazer parte das coisas. Assim como o videogame, parece, a primeira vista, algo tão avulso de se incluir no filme, que não afeta de maneira alguma a superfície do roteiro central - embora afete o subtexto -, mas torna todo aquele mundo tão mais real e cheio. Tira aquela impressão solipsista de que o mundo do filme existe para o protagonista e ele deve estar envolvido em tudo que nele ocorre. São detalhes que enriquecem e muito a obra, para aqueles dispostos a prestarem atenção.


Quero falar um pouco da atuação, porque as interpretações me impressionaram bastante, mas antes, um pouco de superficialidade. Ok, um monte de atrizes lindas em um filme só não é nada impressionante, Woody Allen fez isso durante toda a sua carreira. Mas Olivia Wilde, Rooney Mara, Amy Adams (essa mulher não envelhece! Desde antes da primeira temporada de The Office - 11 anos atrás? - que ela se mantém esse espetáculo!), Portia Doubleday; não é à toa que a Scarlett Johansson só pôde aparecer em voz, se ela aparecesse inteira as câmeras pegavam fogo. Mas, como eu disse, isso é comum em filme - talvez Ela nem apresente as atrizes mais bonitas de Hollywood, apesar de eu ter certeza que, pelo menos na categoria olhos, elas estão lá no topo -, a questão chave aqui é que todas elas parecem reais. Amy Adams, em cenas casuais - como ela descansando em casa -, não usa maquiagem, tem o cabelo bagunçado, aparência cansada; ela é gente, uma mulher como qualquer outra, e, eu não sei vocês, mas isso me impressiona, parece que potencializa a beleza da mulher. Rooney Mara também tem cenas assim em seus flashbacks da relação com Theodore e é a mesma coisa. Achei um toque interessante, principalmente em Ela, já que o conceito chave das personagens aqui é que ninguém é perfeito, ou deve ser perfeito, ou quer ser perfeito - nem a máquina, apesar de tudo. Esses toques, como falta de maquiagem, fortalecem muito o conceito, não sei se intencionalmente ou não.

Agora sim, que tirei isso do meu sistema, vou falar das atuações. Como o Joaquin Phoenix não está concorrendo ao Oscar? Eu sei que esse prêmio já não vale mais nada, se um dia valeu, e que, mesmo que ele fosse nomeado, não ganharia (esse ano vai para o Chiwetel Ejiofor ou para o Leonardo DiCaprio), mas é uma questão de respeito. Afinal, o cara atuou sozinho quase o filme inteiro, reagindo e respondendo para uma voz que não estava lá. Verdade, muita gente fala sozinho, mas ele tem que ouvir a resposta e reagir naturalmente, isso é difícil. O mesmo vale para a Scarlett, foi só um serviço de voz que ela fez, mas foi extremamente competente.  Ela também teve que reagir e responder para coisas que não estavam com ela e, pior de tudo, sem nem mesmo ter um cenário para ajudar a entrar na personagem.


Todo o resto do elenco teve uma performance excelente, mas acho que o destaque, além dos protagonistas, iria para a química entre Joaquin Phoenix e Amy Adams. O contexto entre eles é que os dois são amigos, só tiveram um caso muito tempo atrás, mas os dois se casaram com outras pessoas e cultivaram uma longa amizade. Para que os dois representassem de maneira convincente, Spike Jonze trancava os dois autores quase todos os dias, por uma ou duas horas, em uma sala, para fazer os dois conversarem e se conhecerem melhor. Além disso, em muito do diálogo foi permitido improvisar, para que ficasse mais natural, tudo isso é visível e muito bem feito. De qualquer forma, é difícil não simpatizar com algum dos personagens, até mesmo os menores.


Em geral, Ela é um estudo do futuro das relações humanas, levando como base o presente, triste, mas que entretém e faz rir em muitos momentos, e, mesmo com toda a melancolia do tom e a solidão daquelas vidas, mantém uma visão positiva, mesmo que bem sutil, o que é raro nesse tipo de filme. Dos filmes lançados em 2013 que eu vi até agora, esse foi o melhor. É certo que não vai ganhar o Oscar, mas, por enquanto, Ela é o favorito para ganhar o Prêmio Raphael de Cinema 2013, na categoria de melhor filme, tenho que ver os outros antes de tomar uma decisão. Lembrando que, em 2012, houve empate técnico na categoria entre Holy Motors e Amour, vejamos se algo assim acontece novamente. Por questão de curiosidade, abaixo tem um vídeo de uma entrevista com o diretor e elenco de Ela, no festival de cinema de Nova York, é bem esclarecedor e eu usei algumas informações para preparar esse texto (tá, por causa de problemas técnicos, não consegui jogar o vídeo aqui, mas é fácil de achar, joga "Her Q&A" na busca e vai tá lá, logo de cara, só verifique se é a conferência do Festival de Cinema de Nova York) - que, por sinal, foi minha resenha mais longa.

Nota: 5/5





2 comentários:

  1. Excelente artículo para una excelente película. Te invito a que leas el mío también.
    Saludos
    David

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  2. Achei seu blog por acaso, mas preciso comentar: achei sua resenha per-fei-ta! Assisti Ela ontem, e ele é tão bom que é do filme que vc vai digerindo aos poucos... toda hora lembro de um detalhe, rio de uma piadinha, e é bem com vc falou, em algum(ns) momento(s) ele fala direito com você!

    (ah, e adorei as musiquinhas da playlist do blog tb! =) )

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