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terça-feira, 11 de março de 2014

Only Lovers Left Alive - Jim Jarmusch (2013)


Essa deveria ter sido a terceira resenha de um filme do Jim Jarmusch aqui nesse blog, mas a resenha de Homem Morto (Dead Man, 1995), mas esta se recusou a sair, muito simbolismo para analisar em apenas uma assistida. Only Lovers Left Alive (sem título no Brasil ainda, mas pode acabar como algo entre Apenas Amantes Sobrevivem, Uma Família Sanguinária ou Vampiros Rock 'n' Roll; vamos torcer pela primeira opção, ou pela terceira para efeito cômico), mais recente obra do diretor que aos poucos está se tornando meu favorito entre os "atuais", é uma obra surpreendente acessível sobre vampiros, que estavam na moda até pouco tempo atrás, mas acho que já saíram.


Desde o século dezenove, Adam (Tom Hiddleston - Vingadores, Meia-Noite em Paris) e Eve (Tilda Swinton - Adaptação, Moonrise Kingdom) são casados. Embora nunca fique claro quando eles se conheceram ou quando se tornaram o que são, deixando apenas como dica  algumas observações de Eve sobre o século quinze e sobre como Adam perdeu a diversão que foi a peste negra e a inquisição. Atualmente, Adam vive em Detroit, gravando músicas em segredo, para si próprio, em completa reclusão; Eve, em Tânger, Marrocos (lugar que tenho muita vontade de conhecer), cercada de livros e frequentemente visitando outro vampiro, o poeta e dramaturgo Christopher Marlowe (John Hurt - O Homem Elefante, Homem Morto -, no terceiro trabalho com Jarmusch). Não é porque os dois vivem separadamente, que se divorciaram ou deixaram de se amar, continuam sempre se falando por skype - pois é, olha os vampiros na modernidade - e compartilham uma conexão que só um casal de séculos compartilharia. Ainda assim, Adam está meio deprimido com a humanidade (zumbis, como ele chama os não-vampiros), então Eve vai lhe fazer uma visita para animá-lo e, quem sabe, levá-lo à Tânger de uma vez. Tudo se complica quando Adam, Eve e Christopher têm um sonho premonitório com a vinda da irmã de Eva, Ava (Mia Wasikowska - Jane Eyre e aquela versão desnecessária de Jack Sparrow e Alice no País das Maravilhas pelo Tim Burton), sumida por oitenta e sete anos, mas ainda uma jovem problemática.


Sendo direto, esse talvez seja o melhor filme de vampiros já feito, com exceção dos clássicos do terror, como Nosferatu e Drácula (aquele com o Bela Lugosi no papel principal), mas estes não são padrão comparativo já que são gêneros totalmente diferentes. Only Lovers Left Alive é um filme de vampiro sem gênero. Tá, pode ser visto como um romance, mas não é o foco. O conceito chave da obra, muito claramente, é a eternidade.



Logo de início somos apresentados com um fato sobre os personagens, eles são extremamente cultos. Como não seriam, afinal? Tempo não lhes faltou nem faltará. Mas a forma como isso é demonstrada é cheia de sutilezas e são esses detalhes que fazem o filme. Por exemplo, todos nós temos aqueles autores clássicos que tratamos como deuses, certo? O motivo disso é a impressão de intangibilidade que a vida deles nos dá. Não consigo imaginar como Lord Byron viveu, só conheço sua obra centenária, portanto tenho imenso respeito pelo que ele representa. Adam foi contemporâneo dele, jogou xadrez com ele, por isso pode dizer que ele foi um babaca pomposo. Shakespeare para mim é outro gênio intocável. Para Christopher Marlowe - outro detalhe interessante, esse personagem realmente existiu, apesar de não ser vampiro -, Shakespeare foi um analfabeto superestimado; compreensível visto que os dois nasceram do mesmo ano e muito da obra de Shakespeare foi inspirada no trabalho de Marlowe. Eve não só tem uma biblioteca vasta, mas também multilingual. Convenhamos, você leitor que me lê, se tivesse todo o tempo do mundo, não aprenderia também todos os idiomas só para poder ler livros em seu idioma original? Eve lê chinês, árabe, inglês, espanhol e esses são só os idiomas que eu identifiquei, e não se limitando apenas aos clássicos; em sua mala, ela carrega de Dom Quixote - um romance pioneiro do século quinze - até Infinite Jest - romance contemporâneo, de David Foster Wallace.


Ainda, mesmo tendo todo o tempo do mundo, eles parecem valorizá-lo mais que os mortais. Por isso Adam e Eve aplicam o termo zumbi para a humanidade. Quando Adam fica muito filosófico e questionador, Eve pede para que ele deixe de se preocupar com essas coisas e aproveito o que ele tem e sabe, faça música, dance com ela pela sala. E a forma que eles se dedicam às suas paixões, acho que essa foi a parte que mais me pegou no filme todo. Tantas vezes eu li um livro certo de que aquela leitura seria a razão de eu negligenciar mais tantas milhões de obras que eu nunca teria a chance de conhecer, sequer ouvir falar. E todos os dias eu descubro músicas novas (mesmo quando são antigas) e filmes e livros e formas de artes que nunca me tocaram antes mas por algum motivo passaram a tocar depois de um tempo ou depois de um artista (passei a ver a pintura de forma diferente após Jackson Pollock, Francis Bacon, Edward Hopper, René Magritte e Edgar Degas - esse último também mudou minha visão estética do balé). Literalmente, a cada segundo o ser humano tem potencial para aprender alguma coisa e esses vampiros tem segundos a dar com pau. Sem falar do espaço temporal que eles ocuparam. Nós falamos de Tesla, Darwin ou quem seja, Adam ouviu as teorias diretamente da boca dos teóricos. É um conceito fascinante, mesmo só na ficção.


O que me pareceu é que Only Lovers Left Alive é o primeiro filme inteligente com vampiros. Normalmente o vampiro é um monstro ou uma figura aterrorizante, aqui não. Eles têm instintos predatórios, mas, como disse a Eve, não estamos no século quinze. Um cadáver chupado até a última gota de sangue com uma marca de dentada no pescoço chamaria atenção; vários desses seria o caos. Por isso eles têm seus esquemas de movimentação de sangue. Sem falar que, na versão de Jarmusch, vampiros são suscetíveis às impurezas do sangue humano - doenças, drogas, álcool, tudo isso afeto o sangue e prejudica o vampiro dependendo das quantidades. Mas o que eu mais gostei de tudo, é que a história me pareceu mais uma carta de amor de Jarmusch para os seus próprios gostos. Como eu mencionei no parágrafo anterior, parece que ele percebeu a sua própria mortalidade e projetou seu desejo de poder aprender mais sobre o que ele gosta para sempre. Isso se demonstra na trilha sonora - em parte tocada pela banda do diretor, SQÜRL, outra parte compostas de músicas que ele gosta -, as referências literárias, as referências científicas e até uma referência à cogumelos (mais especificamente o famigerado Amanita muscaria), que o diretor passou a estudar após uma má experiência comendo um fungo selvagem.

Yasmine Hamdan - excelente cantora que eu só descobri por causa desse filme.
O filme acabou me saindo melhor do que o esperado. Já conheço alguma coisa da obra do diretor, por isso tinha minhas expectativas, mas algo me dizia que a banalidade do tema poderia fazer com que ele se perdesse, mas não. Poderia citar como defeito a falta de um objetivo na história. Não existe um começo meio e fim, tudo parece um grande meio, mas então reparei que pode ter sido proposital. O que é a vida imortal se não um grande meio, não é?

Senhoras e senhores, um alaúde; sem mais.
Os lados positivos seriam todo o resto. A beleza das cenas, a poesia do relacionamento entre Adam e Eve, a inteligência, a inventividade muito bem-vinda a esse gênero tão batido, a música, o fato de que Jarmusch nunca subestima a inteligência do espectador (exemplo: a palavra vampiro nunca é dita durante o filme), os detalhes da vestimenta e da aparência geral dos vampiros. Não vi defeitos, pronto.


Nota: 5/5


Bônus: a música "principal" da trilha sonora.

2 comentários:

  1. Mais uma vez, um filme que eu não conhecia.
    Gostei muito da resenha e fiquei com vontade de assistir, principalmente por vc ter falado bem e ter dito que pode ser um dos melhores filme de vampiros.
    Achei a história meio diferente e gostei de saber que eles são pessoas cultas, faz muito sentido.
    Ah, também faz sentido o que disse, sobre o filme ser só "meio", muito interessante esse pensamento.
    Vou assistir e depois digo o que achei. :)

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    1. Esse é bem novo. Só vi resenhas dele por sites estrangeiros - e poucas - e uma ou duas nacionais feitas por sites de jornalismo sério, com acesso aos festivais e com críticos pagos para ver o filme. Tenho o orgulho de dizer que fiz a primeira resenha amadora desse filme no Brasil.
      Esse é o diferencial do filme, a inteligência, e só por isso já vale a pena. Sugiro que assista mesmo.

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