Fazia tempo que eu não lia a última frase de um livro e sentia um arrepio na espinha. Eu sei, eu sei, resenhas exigem construção, justificativa, e eu estou pulando etapas, mas é bom que fique claro que esse deve ser um dos melhores livros escritos nos últimos dez anos. Tendo se tornado uma espécie de fenômeno literário na Noruega, colecionando elogios hiperbólicos como "novo Proust", e pondo de volta no mapa a literatura norueguesa, o livro me chamou a atenção, mas eu estava cético. Quais seriam as chances afinal de uma série de 6 livros, totalizando mais de 3.500 páginas, autobiográfica, ser interessante? Por que eu haveria de me interessar pela vida pessoal de um escritor norueguês desconhecido?
Pulando entre vários momentos da sua vida, Karl Ove (permitam-me omitir o sobrenome) narra como era o relacionamento entre ele e seu pai, falando da infância, adolescência, até a idade adulta, quando ele recebe a notícia de que seu pai morreu e como isso o afetou. A ordem dos acontecimentos, no entanto, não segue uma estrutura. Em um momento ele pode estar falando do seu presente, do esforço que é escrever um livro e ao mesmo tempo cuidar dos três filhos e dar atenção à esposa e dividir as tarefas domésticas e ainda ter que se preocupar com dinheiro e a própria qualidade do que se está escrevendo, então, em meio a um passeio na parque, ele pensa em algo e, a uma maneira proustiana, passa a divagar sobre essa lembrança, extensivamente, então logo volta a narrar o passeio no parque, e o leitor, por sua vez, está tão preso à prosa magnética de Karl Ove que nem se importa com os saltos no tempo e no espaço, acompanha tudo no mesmo ritmo, como se ele também estivesse no parque e também tivesse lembrado daquele momento no passado que o leitor não viveu, mas é como se tivesse vivido. E que o leitor dessa resenha tenha em mente que quando eu falo extensivamente eu quero dizer uma página completa dedicada ao preparo de um chá, 150 páginas sobre a limpeza de uma casa antes de um velório, 511 página no total, sendo que o livro não é exatamente cheio de acontecimentos - tenham em mente também que isso não é uma crítica.
No fim do livro, o leitor acaba sabendo mais sobre Karl Ove do que sobre alguns de seus familiares (eu, por exemplo, tenho certeza que sei mais sobre a vida desse autor que sobre a vida de meus pais), mas isso não dá a impressão de uma literatura egocêntrica ou solipsista, pelo contrário, ao conhecer esses detalhes, não só factuais mas emocionais, da vida de Karl Ove, o leitor acaba por rever momentos do seu próprio passado que podem ter feito que ele se sentisse igual ao autor, isso quando os momentos e sentimentos não são exatamente iguais - o que me fez questionar a variedade da experiência humana.
Nada no livro é extraordinário. A autobiografia costuma ser forma de literatura apenas para celebridades ou figuras trágicas - quando não os dois. É comum associar esse gênero com uma história de superação, uma tentativa de imortalização, e coisa assim. Não é o caso em Minha Luta. Nunca no livro ele tenta disfarçar suas vergonhas ou ironizar - o que seria mais comum - as derrotas da sua vida. O livro, pelo contrário, começa com uma humilhação. Nada grave, apenas um momento da infância no qual ele se sentiu humilhado. Tão banal que nem seria necessário incluir na história, só agravaria a vergonha da situação. Mesmo assim ele faz. É isso que torna o primeiro volume de Minha Luta um livro tão especial, a honestidade do autor para com ele mesmo.
Obviamente tanta honestidade não vem sem represália. Pelo que li por aí, a primeira medida da família do pai de Karl Ove foi tentar impedir a publicação do livro. Então, quando isso não surtiu efeito, ameaçaram processá-lo. Para evitar que isso acontecesse, o autor criou nomes falsos para os membros da família de seu pai, todos os outros nomes (da sua mãe, da sua esposa e ex-esposa, dos seus filhos, do seu irmão, dos seus amigos do tempo de escola) são verdadeiros. Essa foi a polêmica gerada pelo livro. Que um escritor foi capaz de colocar sua própria vida e a de todos os que conviveram com ele desde quando ele era criança no papel e distribuir pelo país (na Noruega, os volumes do livro já venderam mais de 500 mil cópias, e o país tem pouco mais de 5 milhões de habitantes). Não conseguindo impedir a publicação, a família do pai de Karl Ove cortou relações com ele. Seu casamento quase não sobreviveu às verdades pessoais que ele incluiu nos livros. Vai saber o que os filhos dele não vão pensar quando finalmente lerem os livros. Mesmo assim ele fez. Fez aquilo que todos nós morreríamos de medo de fazer, falar a nossa versão da verdade para o mundo. Pior nossa versão da verdade sobre nós mesmos.
Chega a ser impressionante que o livro não fique exaustivo. Já falei da cena do chá, mas não é só isso. Se você já se empolgou com um autor a ponto de falar que leria a lista de compras dele, esse é seu dia de sorte, em Minha Luta você lerá a lista de compras do autor. É um momento chato na leitura? Não. Por incrível que pareça, ele consegue gerar no leitor um nível de interesse surpreendente considerando o quão trivial é o conteúdo do livro. Talvez seja por isso mesmo que tenha se tornado um fenômeno. A banalidade seja tão universal que todos se identificam e buscam no livro alguma forma de resposta, que obviamente o livro não tem. O autor, afinal, é um ser humano, e não um guru. Tampouco ele sabe as respostas para as nossas perguntas, ele também vive se perguntando sobre as coisas.
Uma leitura desse tipo já me fazia falta. Não me identifico dessa maneira com uma história faz tempo, por isso até já fiz questão de comprar o volume dois. Vou dar uma pausa antes de começar a leitura, imagino que uma hora ou outra, sem a devida distância, eu vá me cansar da vida dele. Às vezes eu acho que é para isso que a literatura serve, para essa transfusão de consciência, para que o leitor seja capaz de sair do eu e entrar na vida do outro por um instante (outro real ou fictício), para que o leitor possa pensar como outra pessoa. Esse é o livro ideal, se é isso que você procura.
Nota: 5/5
Trecho no site da Companhia das Letras: http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13088.pdf