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domingo, 28 de setembro de 2014

Momento Musical #2 - Joni Mitchell, The Grateful Dead, Dave van Ronk


Muito tempo depois do primeiro momento musical, volto com mais sugestões para vocês, meus leitores ávidos pelas minhas indicações imperdíveis. Dessa vez, como se tratam de artistas de discografia vasta e variada, sugerirei apenas um disco de cada, aquele que define cada músico, de certa forma, aquele que marca o ápice da carreira de cada um.

Joni Mitchell - Blue


Lançando em 1971, esse foi um dos principais discos lançados pela geração responsável por reviver (mais uma vez) o folk americano, meio que o transgredindo no processo. Falarei mais disso quando chegar a vez do Dave van Ronk, mas, basicamente, a música folk é a música repassada de geração pra geração, contando histórias, uma espécie de retrato de um povo (cada cultura tem sua forma de música "folk", que poderia se traduzir como popular, mas, na música, a palavra popular tem má fama, então digamos que é "do povo", parece o mesmo, mas reflita e verá que não é). Essa geração, Joni Mitchell, Bob Dylan (principalmente o Dylan), Leonard Cohen compunham suas próprias músicas. Eis a transgressão, música folk costuma ser tradicional, contada por alguém sei lá eu quando e repassada e reformulada eternamente. Eles criaram suas próprias "histórias de geração". E Joni Mitchell, ninguém a de me convencer que essa mulher não é um anjo com essa voz...Blue virou um clássico dessa geração, cada faixa vale a pena. Ela é (ainda viva!, embora meio fora de área) uma grande compositora, musicista (tocando piano, violão, dulcimer, talvez outras coisas que eu não esteja sabendo) e, se não bastasse, canta desse jeito aí que vocês estão ouvindo agora - porque vocês estão ouvindo que eu sei. Precisa de mais apresentações?

The Grateful Dead - From the Mars Hotel



Já falei que essa é uma das minhas bandas de rock favoritas? Bem provável. Esse blog já tem mais de dois anos, não me lembro de tudo que já postei aqui (só esperem por possíveis resenhas repetidas daqui mais dois anos, quando eu senilizar de vez), mas acho que tem uma resenha do disco American Beauty. Acontece que essa banda é meio ame ou odeie. Se você gosta de psicodelia, aperte o play no vídeo e você se divertirá pra cacete. Se não...dê uma chance, porra, não custa nada, já tô jogando o disco todo aqui pra você, nem vai te dar o trabalho de procurar. Como em tudo que Grateful Dead faz, envolve mistura de gêneros, mistura de drogas e improvisos aos montes. Você vai ouvir blues, country, rock, jazz, e coisas entre esses gêneros que ainda não foram definidas por ouvidos humanos acadêmicos e sóbrios.

Dave van Ronk - Inside Dave van Ronk


Não consegui achar esse disco inteiro, mas eu sei que se vocês gostarem dessas faixas vocês vão acabar procurando o resto. A história é a seguinte, os meus leitores mais ligados ao cinema devem ter visto o filme do ano passado dirigido pelos irmãos Coen, Inside Llewyn Davis (ou, na pior das hipóteses, a paródia pornô desse filme, chamada Inside Llewyn Davis), embora eu lhes esteja devendo essa resenha. Bom, se vocês viram o filme, sabem que foi baseado na vida de Dave van Ronk, e o título do filme é uma referência direta a esse disco, e a capa do disco que o Llewyn Davis lança no filme é igual a capa do disco van Ronk.


Mas quem foi Dave van Ronk. Estava falando da ressurreição da música folk na década de 60. Na verdade essa foi uma de várias ressurreições, já que foi Woody Guthrie que popularizou o estilo na década de 30-40 (notem que estou falando exclusivamente do folk americano), depois Peter Seeger (falecido em janeiro desse ano) e outros vieram na década de 40 e 50. Dave van Ronk, no estilo desses caras, surgiu entre as décadas de 50 e 60 e liderou a geração do Greenwich Village (Joan Baez, Mimi & Richard Fariña, Carolyn Hester, Bob Dylan etc.). Mais tradicional que seus sucessores, ele costumava, como seus antecessores, fazer releituras de músicas tradicionais, mas do muito particular dele. Dylan o considerava um mentor, o que já deveria ser mais que suficiente certificado de qualidade.


Ao contrário de muitos que ele veio a influenciar, nunca gozou de muito sucesso com o público. Não tinha carro e se recusava a viajar de avião. Sempre morou no Greenwich Village, até a morte, e se tornou ícone quase religioso da música local. Infelizmente, raros são os casos de artistas isolados que conseguem ganhar dinheiro com sua arte. Na maior parte desses casos, quem perde é o grande público.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Nos Embalos de Sábado à Noite (Saturday Night Fever) - John Badham [1977]

A imagem mais satirizada da década de 70. Não é porque o filme é bom que ele não tem motivos de ser ridicularizado.
Das minhas primeiras memórias sobre a minha relação com o cinema, um filme meio que se destaca. Em retrospecto, eu era novo demais quando assisti Nos Embalos de Sábado à Noite pela primeira vez, acho que não tinha nem dez anos de idade. Mas acho que devia estar em uma fase particularmente curiosa, pois me lembro de ter ido à finada Blockbuster com meus pais e me metido na sessão de Clássicos. Nessa mesma época, assisti Cantando na Chuva. A única coisa que esses dois filmes têm em comum é que, quando os vi pela primeira vez, não entendi absolutamente nada sobre o que eles representavam. A diferença é que anos mais tarde eu voltei a ver Cantando na Chuva, enquanto Nos Embalos de Sábado à Noite (que por questão de economia chamarei de agora em diante de SNF) não me interessou tanto assim. Isso até esse fim de semana, quando finalmente decidi ver de novo. Surpreendentemente, ainda me lembrava de muita coisa dele.


Se tem uma coisa que todos conhecem desse filme é a primeira cena. Tony Manero (John Travolta), vendedor de tinta, andando pela rua ao som de Staying Alive, do Bee Gees. Depois do trabalho, sempre que pode, ele gasta todo seu dinheiro para dançar na discoteca 2001: Odissey. Conhecemos suas amizades, seu estilo de vida, o aparente hedonismo, a falta de preocupação com o futuro, enfim, um grupo normal de jovens. Enquanto durante o dia ele não passa de um vendedor de tinta, desprezado pela família, na discoteca ele é o rei e todos o amam. A discoteca, então, organiza um concurso de dança. É aí que ele encontra Stephanie (Karen Lynn Gorney), uma mulher que busca um futuro em Nova York, mas que não está nem um pouco interessada em Tony. Mesmo assim ela enxerga o talento em Tony e aceita entrar no concurso com ele. A convivência faz que Tony decida mudar em certos aspectos, vendo que nem tudo na sua vida pode se manter igual para sempre.


1977 foi o ano em que a música disco e as discotecas atingiram seu auge. Nessa época, esses lugares eram o equivalente ao que uma balada sertaneja é hoje no Brasil. Por isso mesmo, embora as músicas presentes na trilha sonora de SNF sejam tão datadas a ponto de ser possível identificar só de ouvido o mês em que elas foram gravadas, o tema se mantém universal, simplesmente porque Tony Manero e seu grupo, o tipo de pessoa que eles representam, ainda existe, mudando apenas a aparência, penteados, roupas, etc. Mesmo assim, SNF se tornou um dos filmes mais subestimados de seu tempo com o passar dos anos. Vejam bem, é verdade que foi a obra mais lucrativa da década de 70, mas desde 79, quando a discoteca se tornou um ícone da decadência, o filme se tornou motivo de piada, John Travolta mal conseguiu arranjar trabalho, assim como qualquer um dos envolvidos nessa produção. A pior parte disso tudo, não é nem merecido. SNF talvez seja o melhor filme retratando a geração de seu tempo.


SNF é um filme sobre jovens escapistas que muitas vezes beira o niilismo. A forma que Tony, mesmo encontrando alguma paz enquanto dança, não vê futuro algum no ato; o irmão dele, antes visto pela família como um sinal de esperança por se tornar padre, perde a fé; Stephanie, a única no filme com alguma perspectiva, não deixa de ser tão decadente quanto todos os outros. É como se o filme dissesse que, para essas pessoas, não há futuro desejável e só resta escapar nem que seja por uma noite de sábado. Isso fica claro mesmo na primeira cena de dança, quando todos os presentes na discoteca formam uma espécie de dança em conjunto, deixando os problemas de lado por um momento. Crítico de cinema Gene Siskel dizia que essa era sua cena favorita entre todos os números de dança cinematográficos, assim como dizia SNF ser seu filme favorito. Essas cenas leves de dança são contrabalançadas com o realismo da relação entre os personagens. Em um momento eles dançam, em outro há um estupro; em um momento eles se preparam para o concurso, no outro um dos amigos de Tony cai de uma ponte. Esse detalhe é o que separa SNF de um Flashdance e o deixa mais próximo de qualquer filme sobre decadência geracional.


Relacionáveis que os personagens possam ser, nenhum é agradável. Tony é um narcisista ignorante, os amigos dele são misóginos e homofóbicos, Stephanie é pretensiosa e arrogante. Não é um filme de heróis e vilões, todos são pessoas.  O roteirista, Norman Maxler, reza a lenda, costumava gravar conversas reais entre estranhos em lugares públicos para melhorar o realismo dos seus diálogos. Não sei se é verdade ou não, mas os diálogos em SNF serviriam de evidência favorável. A forma que eles falam, muitas vezes desconexa e sem eloquência, serve justamente para aumentar a humanidade de todos. Nesse momento o filme deixa de ser sobre dança, e se torna sobre esse grupo de pessoas que, para esquecer seus problemas, dançam. As críticas que vieram nos anos seguintes, sobre como esse filme vangloriava a música disco, se tornam infundadas, já que a atmosfera de cinismo que permeia a história fazem do filme o exato contrário.


Adiei o filme por tanto tempo, achando que seria mais um romance cheio de dança, acontece que não é.  O peso com que certos temas são tratados no filme chegam a surpreender. É um clássico esquecido pelos motivos errados, que vale a pena ser revisitado.

Nota: 4/5

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Alguns poemas traduzidos de Frank O'Hara

Olá, você que ainda esbarra com esse canto obscuro e empoeirado da internet. Eu lancei um livro semana passada. Tá na Amazon. Talvez você goste de ler.

O link: https://tinyurl.com/yy394a8y

Meus agradecimentos a quem vier a comprar. Comprou? Leu? Gostou? Deixa lá um comentário pras pessoas ficarem sabendo que o livro é bacana.




Nascido em 1926, Frank O'Hara foi um poeta e crítico de arte americano famoso pelos versos autobiográficos, pessoais, inspirados pelo jazz, surrealismo e pelo expressionismo abstrato. Morreu cedo, aos 40 anos, atropelado por um Jeep em Fire Island, tendo lançado algumas coleções de poesia e vários artigos de não-ficção sobre os artistas que estavam fazendo sucesso naquela época em Nova York (Jackson Pollock, William Kooning, Franz Kline etc.). No Brasil, que eu saiba, a obra dele ainda é praticamente desconhecida, sendo que nenhum de seus livros foi traduzido por aqui. Até agora. Aqui vocês vão encontrar 5 poemas dele traduzidos por mim. Os originais eu tirei desse site, caso alguém queira ver: http://www.frankohara.org/ Por hoje é só, divirtam-se com a leitura.


ANIMAIS

Você se esquece de como nós éramos antes
quando ainda éramos de primeira classe
e o dia veio gordo com uma maçã na boca

de nada adianta preocupar com o Tempo
mas nós tínhamos alguns truques nas mangas
e fizemos umas curvas fechadas

todos os pastos pareciam nossas refeições
não precisávamos de velocímetros
de gelo e água nós fazíamos coquetéis

Eu não iria querer que fosse mais rápido
ou verde que agora se você estivesse comigo Ó você
foi o melhor de todos os meus dias

CANÇÃO
      
Eu estou preso no trânsito em um táxi
o que é típico
e não só da vida moderna

lama sobe trepada pela treliça dos meus nervos
a maioria dos amantes de Eros terminam com Venus
muss es sein? es muss nicht sein*, eu vos digo


como eu odeio doença, é como uma preocupação
que se torna realidade
e simplesmente não deve ser capaz de acontecer

em um mundo onde você é possível
meu amor
nada pode dar errado para nós, diga-me


AVE MARIA
  
Matronas da América
                               deixem seus filhos irem ao cinema!
tirem eles de casa assim eles não ficam sabendo do que vocês aprontam
é verdade que ar fresco faz bem para o corpo
                                                             mas e quanto a alma
que cresce nas trevas, gravada em imagens prateadas
e quando vocês envelhecerem como envelhecerem vocês devem
                                                                         eles não vão lhes odiar
eles não vão lhes criticar eles não vão saber
                                                            eles estarão em algum país glamouroso
que eles viram pela primeira vez numa tarde de sábado ou matando aula

eles podem até lhes ser gratos
                                                  pela primeira experiência sexual deles
que lhes custou apenas uns centavos
                                              e não perturbou a paz do lar
eles saberão de onde vem as barras de chocolate
                                                                    e os sacos gratuitos de pipoca
tão gratuitos quanto sair do cinema antes do fim do filme
com uma estranha agradável cujo apartamento fica no Edifício Paraíso na Terra
perto da Ponte Williamsburg
                                               ó matronas vocês terão feito os pivetinhos
tão feliz que mesmo que ninguém os pegue no cinema
não fará diferença
                                               e se alguém os pegar será apenas puro tempero
e eles estarão verdadeiramente entretidos de qualquer forma
ao invés de vadiando pelo quintal
                                                       ou nos quartos deles
                                                                                     lhes odiando
prematuramente já que vocês não terão feito nada horrivelmente maldoso ainda
exceto por protegê-los das alegrias mais sombrias
                                                                o que por sua vez é imperdoável
então não me culpem se vocês não seguirem esse conselho
                                                                         e a família se destruir
e seus filhos ficarem velhos e cegos em frente a televisão
                                                                                      vendo
filmes que vocês não deixaram eles verem quando eram jovens


HOJE

Ó! cangurus, lantejoulas, sodas de chocolate!
Vocês são mesmo lindas! Pérolas,
gaitas, jujubas, aspirinas! todas
as coisas que eles sempre falaram sobre

ainda fazem de um poema uma surpresa!
Essas coisas estão conosco todos os dias
até mesmo em cabeças-de-praia e caixões. Elas
têm significado. Elas são fortes como rochas.

DORMINDO SOBRE A ASA

Talvez seja para evitar alguma grande tristeza,
como em uma tragédia da Restauração o herói clama “Durma!
Ó pois o longo profundo sono e então esqueça!”
que se voa, flutuando por sobre as cidades sem costa,
guinando ascendente da calçada como um pombo
o faz quando um carro buzina ou uma porta bate, a porta
dos sonhos, vida perpetuada em amores coloridos em tons
e belas mentiras todas em línguas diferentes.

O medo também se vai, como o cimento, e você
está sobre o Atlântico. Onde fica a Espanha? onde fica
quem? A Guerra Civil foi travada para libertar os escravos,
foi? Uma repentina corrente baixa de ar te relembra da gravidade
e sua posição a respeito do amor humano. Mas
aqui é onde estão os deuses, especulando, perplexos.
Umas vez que você está desamparado, você está, dá pra acreditar
nisso? Nunca acordar para o triste esforço de um rosto?
sempre viajar por sobre qualquer vastidão impessoal,
estar por fora, para sempre, nem dentro nem para!

Os olhos rolam adormecidos como se virados pelo vento
e as pálpebras flutuam levemente abertas feito uma asa.
O mundo é um iceberg, tanta coisa é invisível!
e foi e é, e ainda a forma, ela pode estar dormindo
também. Essas características gravadas no gelo de alguém
amado que morreu, e você é um escultor sonhando espaço
e velocidade, sua mão apenas poderia ter feito isso.
Curiosidade, a mão apaixonada do desejo. Morte,
ou sono? Há velocidade o suficiente? E, mergulhando,
você renuncia tudo que você fez por si mesmo,
o reino do seu auto-navegar, pois você deve despertar

e respirar seu próprio calor nessa imagem amada
esteja ela morta ou meramente desaparecendo,
como o espaço está desaparecendo e sua singularidade.

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*Alemão para "deve ser? não deve ser". Jogo com a pergunta de Beethoven no quarteto de cordas nº 16, opus 35 (no caso, a frase é "muss es sein? es muss sein!"). Nesse caso, a pergunta serve para questionar os padrões de sexualidade, tema que ainda era "novidade" na época (entre aspas, já que homossexualidade é coisa discutida desde a Grécia Antiga), vide o verso "a maioria dos amantes de Eros (sexo) terminam com Vênus (mulher)", então segue "deve ser? não deve ser".

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Dias Perfeitos - Raphael Montes [2013]


Depois de ler dezenas de resenhas positivas sobre esse livro, ver a entrevista com o autor no Jô, ver a capa do livro em todos os cantos dos sites de todas as livrarias pelos últimos seis meses, decidi dar uma chjance a Dias Perfeitos. Fui com um pé atrás no início, não tenho muita experiência com livros desse gênero - e até esperava mais um livro policial, considerando todo o marketing -, mas agora posso dizer que não me arrependo. Sugiro apenas que, caso você não tenha lido o livro ainda, evite resenhas e a entrevista no Jô. Não que qualquer um desses vá te contar o final, mas se você acabar pensando um pouco, deixa tudo muito óbvio.

Começa com o narrador (em 3ª pessoa) falando da amizade de Téo, um jovem carioca estudante de medicina, antissocial, psicopata, vegetariano, não bebe, não fuma, não fode, que cuida da mãe paraplégica, com Gertrudes, uma defunta usada para exame na faculdade. Ela a única com quem ele consegue se entender, o resto das pessoas ele detesta e não compreende. Ele era um cara quase normal, ia a igreja aos domingos com a mãe, era estudioso, até que é forçado a ir a um churrasco e conhece Clarice, basicamente o oposto dele, extrovertida, que bebe, fuma, come carne, está há um tempo trabalhando no roteiro de seu filme, é essencialmente liberal em se tratando de política e sexo, com uma beleza peculiar e espontaneidade que conquistam Téo logo de cara. Ele, logo, faz aquilo que todo psicopata deve fazer e a persegue por aí, história vai história vem e ele a sequestra e a leva para fazer a viagem descrita em seu roteiro (chamado Dias Perfeitos), na esperança de que, no confinamento, ela o conheça melhor e se apaixone por ele.

Como eu disse, estava na impressão de que esse seria um livro policial. Não estava de todo errado, mas não é bem isso. Dias Perfeitos é uma inversão bem interessante do gênero policial, em que o leitor, ao invés de acompanhar a investigação, acompanha o criminoso. Sabe-se que o caso está sendo investigado enquanto o enredo se desenvolve, mas não se fica sabendo de nada, é o ponto de vista do Téo que é acompanhado. E, nesse caso, muito bem. A narração, apesar de onisciente e em terceira pessoa, entra na mente do protagonista e ouvimos a história pelo filtro mental dele, ou seja, somos levados a encarar suas ações absurdas com toda a racionalidade de um psicopata. Téo está convencido e, portanto, tenta convencer o leitor de que suas ações são por amor, são mais do que tudo necessárias para o bem-estar e o futuro de Clarice, mesmo que para isso ele precise a manter sedada, enfiada dentro de uma mala et cetera, et cetera.

Nesse sentido, visto que se trata de um mistério, o livro é impecável. Muito bem escrito, ritmado da maneira certa, com todas as reviravoltas obrigatórias do gênero. Prende o leitor até a última página. Eu que sou um leitor lento não demorei uma semana para terminar esse livro. Não é à toa que o livro recebeu tanta atenção, tanto da crítica quanto do público, vejo agora que é bem merecido.

Chega a ser impressionante a forma que o leitor é levado a pensar igual ao psicopata. Em certo momento, o raciocínio tão claro de Téo chega a disfarçar a brutalidade dos seus atos, maquiando o que deveria ser uma leitura um tanto perturbadora. Não que a leitura fique leve em qualquer momento, não fica. A violência física e psicológica preenche todo o enredo e a minúcia das descrições transfere a dor do ato para a mente do leitor com facilidade, mas, como eu falei, o filtro mental da loucura do Téo não deixa que isso torne a leitura tão pesada quanto deveria ser.

Tendo dito isso, nada é perfeito. O final, como a essa altura todos devem ter ouvido, é polêmico. Não vou entrar em detalhes e já adianto que gostei, com algumas restrições. Se a narrativa até os momentos finais era excelente, detalhada e bem resolvida, é na conclusão que ela tropeça. Ficou claro para mim que Raphael Montes teve aquela ideia para terminar o livro, repito que achei muito boa, no entanto percebeu que para chegar a esse final específico ele teria que atropelar um pouco a lógica, ignorar certos obstáculos, tudo para poder alcançar o destino. Pois é, para mim, isso atrapalhou bastante. Foi a corrida nos dois últimos capítulos que me impediu de dar nota máxima ao livro. Mesmo assim deixo claro que é minha visão pessoal, muita gente não pareceu ter sentido a mesma coisa. Para não estragar a leitura dos que ainda não leram, sou obrigado a ser mais vago do que gostaria, mas acho que, para quem já leu, estou sendo claro o suficiente.

Esse defeito, embora tenha me desanimado, não torna o livro ruim. Digo novamente que é muito bem escrito e construído. Ouvi dizer que o primeiro romance dele, Suicidas, é ainda melhor, o que me deixou bem curioso, provavelmente o lerei num futuro próximo. Também muito me interessa o futuro desse autor, que só tem 23 anos, se não me engano. Os direitos também já estão vendidos para fazer um filme adaptando esse livro, o que me anima - embora a burocracia para se fazer um filme no Brasil seja no mínimo intimidadora, então vai saber o que será feito e quando. Eu indico a leitura, principalmente se você gosta desse gênero policial/mistério/suspense.

Nota: 4/5

Leia um trecho aqui: http://www.companhiadasletras.com.br/trechos/13671.pdf